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O relógio quebrado da família imperial e a inaptidão dos brasileiros

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Uma das habilidades mais importantes para qualquer espécie é a capacidade de discriminar. Uma palavra tão malvista hoje em dia – não sem razão, mas indiscriminadamente –, discriminação é, na natureza, a barreira que divide o apto do inapto. Discriminar é atribuir características e, com base nelas, julgar. Para os animais, discriminar o predador do animal inofensivo, os alimentos comestíveis dos tóxicos, é o que separa quem estará entre os biologicamente selecionados e aqueles que serão tratados como mero desvio genético. Para o homem, tal capacidade ganha uma dimensão extra: a moralidade. Para o homem, discriminar é dividir o bem do mal, a beleza da feiura, a verdade da falsidade.

Então, um ser humano minimamente capaz e maduro deveria saber distinguir um crime quando o visse. É por isso que a maior parte das pessoas sabe que o que aconteceu em Brasília no dia 08 de janeiro de 2023 se tratou de um crime, justificado ou não – sim, existem crimes justos[1]. Em meio a toda essa depredação, alguns atos foram alvo de maior indignação por conta do valor imaterial do que fora depredado. Dentre eles, o relógio de parede que fora dado por Luís XIV à família imperial brasileira[2]. A indignação fora unânime – todos se revoltaram com a sua destruição. São todos educados, sabem apreciar arte e distinguir crimes quando os veem; aquela, amam, estes, denunciam. No entanto, mesmo no auge de sua habilidade contemplativa, aparentemente ninguém fez uma pergunta de grave importância… O que fazia um presente que foi dado à família imperial no gabinete do presidente da república?

Não, não estou dizendo que, em meio à multidão enraivecida que entrou e vandalizou as casas dos três poderes, alguém deveria dar importância para a destruição de uma obra de arte – também não estou dizendo que não deva. Assusta-me, no entanto, que diversas tenham sido as reportagens e resmungos sobre a destruição da peça de arte, umas contando sua história, outras falando sobre a importância da arte e sobre a ignorância dos outros, mas que, mesmo com toda essa atenção, ninguém tenha se perguntado o que diabos fazia aquele relógio em Brasília.

O brasileiro é inapto[3], incapaz de distinguir a realidade, de discriminar valores e hierarquizá-los, inábil para viver minimamente em sociedade ou para constituir uma. Um bando que se divide em grupos antagônicos que divergem em detalhes e compartilham a mesma e sublime intenção de perpetuar a ignorância que serve de cola a uni-los em tribos. Utilizam-se de uma pretensa, porém inexistente, moralidade, com a tacanha intenção de instrumentalizar a realidade para fins imbecis e acríticos. O brasileiro critica o destruidor do relógio para criticar o outro lado político ou para se dizer educado e apreciador de arte – tudo é autoelogio. No entanto, é incapaz de perceber que tal ato desvelou um outro crime, um crime que é sintoma das nossas raízes pútridas e que mostra o desvalor que damos à propriedade sentimental e o sobrevalor que concedemos à propriedade enquanto poder. No dia 8 de janeiro de 2023, muitos foram os crimes cometidos, e somente um foi descoberto: um furto.

Não há nada que justifique a posse daquele relógio por parte da república. Se o presente foi dado a D. João VI pela corte de Luis XIV, o Brasil nem existia enquanto país. Se foi dado à Princesa Isabel pelo Conde D’Eu, ela sequer tinha assumido o trono antes da proclamação da república. E, mesmo que tenha sido dado a D. Pedro I ou a D. Pedro II, ainda assim, se trata de um presente à família imperial, que residia no Rio de Janeiro e não em Brasília, e não a um ou outro militar ou comunista que tenham morado no Palácio do Catete ou no horroroso Palácio do Planalto. Se a república é uma crítica à hereditariedade como critério de concessão de poder político, não é sua proclamação uma tomada de tudo aquilo que é hereditário – como presentes –, mas somente daquilo que não pode ser hereditário – o poder político.

Porém, nossa república foi fundada por pessoas limitadas e materialistas e, portanto, invejosas e revanchistas. Aqui me forço a não dizer que todas as novas repúblicas são formadas assim – pois é arriscado julgar a tal modo. De qualquer forma, para que se faça uma república nos moldes idealizados por Sócrates, devem aquele que se diz fundador e aqueles que se julgam mantenedores, no entanto, saber discriminar. “Isso é meu, mas isso é seu”. O poder é do povo, o relógio é da família imperial. Se assim não faz, o que se cria é uma nova hereditariedade. Dessa vez, uma hereditariedade não ligada por traços sublimes de familiaridade e afeto, mas pelas mesmas características envenenadas que a criaram – a busca envaidecida por poder e uma inveja malevolente pelos poderes do outro. “Tudo o que era seu agora é meu”.

Aliás, para que se viva bem e, desse modo, se promova o bem, é necessário saber fazer essa discriminação. É compreensível que o brasileiro chame tudo de golpe. Nada mais normal para aquele que vive na constante e nervosa paranoia do materialismo. O pensamento de que tudo o que existe é o que se pode ter, e de que tudo o que se tem é o que é material em sua essência e proveniência, torna a propriedade uma mera questão de força e, portanto, de exercício de força. O resultado disso é a paranoia na manutenção do poder. Não é outro o motivo pelo qual o brasileiro é tão ignorante – ele não conhece nada, não discrimina nada, mas quer ter tudo e manter tudo. É um oportunista por excelência – ou por falta dela. Até a realidade está sobre seu domínio, pronta para ser usada para conseguir o que se quer.

O homem que quebrou o relógio não é um criminoso; é só mais um exemplar da espécie “brasileiro” que, em meio à turba e aos desejos ensandecidos de tomada de poder ou de proteção ao seu poder, destrói tudo o que vê sem ter a capacidade de contemplar as belezas daquilo que destrói. Da mesma forma são aqueles que criticaram a destruição do relógio físico, mas que, ignorando o fato de que era uma obra de arte roubada e encarcerada no Planalto – e, portanto, flagelada em sua característica imaterial –, se utilizaram do fato ou para atacar os inimigos ou para se autoelogiar. São destruidores. Como a generalidade brasileira, incapazes de criar qualquer coisa que preste ou de dar valor àquilo que merece valor. São inábeis na discriminação e, portanto, inaptos a viver bem – que é missão da existência humana; não sobreviver, como é para os animais. Uma sociedade formada assim é um fracasso, independentemente do modelo político adotado.

Então, corrija-se a notícia. No dia 8 de janeiro de 2023, muitas coisas foram destruídas; algumas delas foram destruídas e permaneciam em destruição há 48 mil 695 dias. Destruir algo roubado não é tão ruim assim. Se não é para devolvê-lo ao seu real dono, se a sua existência só serve para que fique escondida das pessoas que queiram realmente contemplá-la, sob as vistas e o deleite prepotente de um imbecil qualquer que venha a assumir o cargo pela força da ignorância de milhares de pessoas, que seja destruído. A sua destruição física é só o caminho natural de algo que já morreu em essência. A família imperial já o tinha perdido. Então, que o presidente da república perca o relógio que não é seu. É merecido.

Isso não legitima a sua destruição. Muito pelo contrário. Coloca todos os presidentes que não o devolveram à família imperial; todos aqueles que criticaram o seu destruidor, mas não o seu ladrão; e aquele que destruiu o relógio, num mesmo grupo: o dos brasileiros inaptos. Sim, eu estou discriminando.

[1] Para distinguir um crime justo de um crime injusto, basta pensar no próprio crime de dano. Possivelmente é justo quebrar uma porta para fugir de incêndio, ou dar um tiro em um pneu de um carro para capturar um ladrão que foge. Não é tão fácil distinguir e nem me arrisco a isso, mas os atos do dia 08 de janeiro poderiam ser, sim, uma forma de ameaça a uma ameaça maior (no caso, ao avanço do totalitarismo por parte do STF) – o que justificaria o ato. De qualquer forma, dano é crime. E a forma mais fácil de perceber é pensar: se quebrassem uma coisa minha, eu ficaria indignado? Eu entenderia se fosse na situação X?

[2] https://veja.abril.com.br/coluna/radar/pf-prende-suspeito-de-destruir-relogio-da-familia-real-no-planalto/

[3] E antes que digam, eu também, posto que sou brasileiro. É algo a se superar, com muito esforço e, provavelmente, muitas falhas.

*Igor Damous é advogado criminalista. 

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