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Em defesa dos valores da classe média (parte II): corporativismo e meritocracia

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Aluízio Couto

Um valor burguês bastante popular entre a classe média é a meritocracia. A distribuição de bens como cargos, salários e status social deve ser feita de acordo com o esforço e a capacidade das pessoas. A ideia guarda alguma semelhança com a concepção aristotélica de merecimento. Imaginemos uma distribuição de flautas à população. Naturalmente, o número de flautas é menor do que o número de pessoas, tornando necessário um critério de distribuição. Quem deveria recebê-las? Para responder a pergunta, faz-se outra: afinal, para quê as flautas são feitas? E a resposta tipicamente aristotélica é: as flautas são feitas para serem bem tocadas. Por isso, devem ser dadas aos melhores flautistas, pois eles são excelentes naquilo que fazem.[i]

Dois milênios depois, alguns burgueses de países protestantes elevaram a ideia de excelência no trabalho à qualidade de um valor em si mesmo. Eles pensavam que os frutos do trabalho eram não apenas uma consequência de seu esforço, mas um testemunho dado perante Deus do cumprimento do dever. Posteriormente, com o capitalismo já estabelecido, a presença da religiosidade já não era tão comumente vista nas pessoas que adotavam o modo de vida protestante. Como o capitalismo venceu não apenas nos países protestantes, mas no ocidente inteiro, a meritocracia venceu junto. Todos sabiam que a posição de uma pessoa era em grande parte consequência do que ela até então havia feito.

Há poucas semanas, o professor da UFSM Renato Santos de Souza escreveu um artigo contra a meritocracia enquanto valor da classe média brasileira. Souza desenterrou a declaração de Chauí. Segundo ele, a professora havia identificado um fenômeno insidioso: o reacionarismo da classe média. Mas ela não havia dado a razão pela qual nossa classe média é reacionária. Souza acredita ter achado a razão: a meritocracia. O diagnóstico dado por Souza foi elaborado a partir da reação dos nossos doutores ao programa “Mais Médicos”, que trouxe de outros países – sobretudo de Cuba – profissionais com a missão de trabalhar em regiões carentes do Brasil. Diz Souza:

Estudantes de medicina e médicos parecem exibir um padrão de pensamento e ação muito coesos e com desvios mínimos quando se trata da sua profissão, algo que não se vê em outros segmentos profissionais. Isto não pode ser explicado apenas pelo que se convencionou chamar de “corporativismo”. Afinal, outras categorias profissionais também tem potencial para o corporativismo, e não o são, ao menos não da mesma forma. Então deveria haver outra interpretação para isto.

Bem, naqueles episódios do Mais Médicos, apesar de toda a argumentação pretensamente responsável das entidades médicas buscando salvaguardar a saúde pública, o que me parecia sustentar tal coesão era uma defesa do mérito, do mérito de ser médico no Brasil.[ii]

A razão pela qual ele rejeita o mero corporativismo como explicação para o comportamento da classe médica é uma má razão: outros segmentos, estudantes incluídos, fizeram precisamente o mesmo quando tiveram chance, e não precisamos recorrer a nada além do corporativismo para explicar o comportamento. Um bom exemplo é a Federação Nacional dos Jornalistas. Os burocratas da federação defenderam com um empenho incomum que somente formados em jornalismo poderiam exercer a profissão. Uma dos argumentos usados era o de que reservar o mercado aos diplomados preservaria a qualidade do jornalismo.

Mas o melhor exemplo é a classe dos advogados, cujo corporativismo toca o inacreditável. Em 1994, a Ordem dos Advogados do Brasil aprovou a lei n° 8.906 que, entre outras coisas, tornava privativa dos advogados qualquer postulação ao Poder Judiciário. A Associação dos Magistrados do Brasil, então, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade e derrubou a medida. Se a ação fosse mal sucedida, qualquer ida a um tribunal de pequenas causas renderia honorários a um advogado.

Jornalistas e advogados são unânimes quando justificam o corporativismo: é para o bem de todos. Era de se esperar que a classe médica, cujo corporativismo, depois do Ato Médico, passou a rivalizar com o dos advogados, usasse a conversa fiada sobre o resguardo à saúde pública. Portanto, se a atitude das classes dos jornalistas e advogados foi puramente corporativista e a classe médica agiu de modo igual, temos, ipso facto, razões para pensar que os médicos foram igualmente corporativistas. E se é assim, não faz o menor sentido recorrer à ideia de meritocracia. A meritocracia não explica o comportamento da classe médica, mas sim o velho desejo de possuir exclusividade.

Outro aspecto interessante do texto de Souza é a comparação da classe média brasileira com a europeia. Lá, segundo ele, a classe média foi forjada a partir de políticas de garantias públicas, ao passo que aqui, ela precisou encontrar um espaço nas raras oportunidades oferecidas pelo governo ou pelo mercado.

Para a classe média brasileira, o estado sempre foi um empecilho, pois ele rouba parte do resultado privado da atividade produtiva. O curioso é que o perfil econômico traçado pelo professor dessa classe (o perfil ideológico não me parece acurado, pois não há consenso em temas controversos como cotas e assistências sociais) não está muito distante da velha classe média europeia ascendente, cujo sucesso e permanência na vida produtiva não vieram do estado, mas apesar do estado. Tal como ocorreu com a antiga média burguesia europeia, não é uma surpresa o fato de a classe média brasileira ser meritocrática, pois ao contrário de sua contraparte européia, ela precisou enfrentar duros obstáculos para se afirmar.

A classe média brasileira, ou pelo menos parte significativa dela, possui virtudes há muito esquecidas por vários europeus: a independência e a constante busca pelo auto-respeito alcançado somente quando se sabe que os frutos e confortos da vida vêm do próprio esforço individual. Para alguns comentaristas, se por um lado o estado de bem estar social europeu revolucionou a qualidade de vida das pessoas a partir de meados do século passado, ele também contribui para a perda progressiva da consciência de que há uma conexão entre comportamento pessoal e consequências econômicas.

Talvez os protestos dos europeus contra as medidas de austeridade não sejam reivindicações de direitos, mas uma expressão do desejo por privilégios. Em artigo no “Library of Law and Freedom”, Theodore Dalrymple comentou: “a ideia de que viver com os próprios meios é uma forma de austeridade e não (salvo em circunstâncias excepcionais) o dever moral elementar de pessoas honradas mostra que, subjacente à crise econômica, há uma profunda crise moral na civilização ocidental.”[iii]

Em um país eivado de injustiças, a meritocracia não deve ser o único critério de distribuição de bens. No entanto, é um valor social importante e merece ser preservado pelas pessoas. E para o desconforto de alguns marxistas, há gente literalmente pobre cuja ética pessoal é meritocrática.

Lembro-me bem de um pedreiro de nome Afonso, responsável por quase toda a reforma de um antigo apartamento de minha mãe. Afonso era um virtuose, um estilista. Não sossegava enquanto cada parede não estivesse perfeitamente nivelada ou enquanto o sinteco da tábua corrida não estivesse perfeitamente posto. Casado, sua ambição era conquistar a vida com o trabalho e uma dose de racionalidade na gestão dos gastos familiares. Não parecia ser ressentido com quem tinha mais e nem se gabava perante quem tinha menos. Era um homem nobre, e sua nobreza de espírito já contrastava com a piedade fingida dos bons samaritanos da fausse gauche. Afonso se via como um agente em sua própria vida, e não como um autômato resultado de uma superestrutura. O ganho pelo mérito fazia parte de sua vida. E a valorização da vitória pelo esforço era parte do que tornava Afonso um homem digno. Afonso, um pobre, tinha em si as virtudes burguesas da classe média. E elas merecem ser defendidas.


[i]  O exemplo é do filósofo Michael Sandel.

[ii] O texto de Souza tem o título de “Desvendando a espuma: o enigma da classe média brasileira” e foi publicado no jornal GGN, na internet.

[iii] “Talibans of Austerity”, 2012 (Tradução livre)

Aluízio Couto é filósofo vive em Ouro Preto, MG

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