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Edmund Burke: abstracionismo, dogmatismo e real política

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Edmund Burke from Historical and Posthumous Memoirs of Wraxall 1884 2Em política, como em quase todos os aspectos da vida humana, abundam as correntes, as subcorrentes, as estruturas teóricas e as subestruturas teóricas. Escolas se formam e se subdividem, pensando e refletindo sobre as questões de seu escopo geral – no caso da política, a melhor maneira de entender o funcionamento da sociedade humana e assumir uma posição específica para agir nessa sociedade. Todas essas correntes pretendem ter as melhores respostas; quando se voltam contra postulados fundamentais como Estado de direito e liberdade de mercado, ou se harmonizam com a tirania que não se revela benéfica em nenhum aspecto passível de consideração, contradizem o que os fatos e a experiência humana já demonstraram. Esses últimos princípios se apresentaram de forma mais consistente e organizada e se consagraram, exercendo efeitos práticos, durante o período de advento do chamado Liberalismo clássico, com figuras como Locke. A partir daí, essas ideias foram retrabalhadas e reanalisadas, dando origem a diferentes entendimentos de suas aplicações e da extensão delas. Um pensador e político irlandês que, na Inglaterra do século XVIII, representou o Partido Whig, apimenta discussões a respeito até hoje; qualquer que seja a opinião do leitor a respeito dele, queremos propor um contato com as lições que ele pode oferecer e temas que pode suscitar.

Falo de Edmund Burke (1729-1797), tido por muitos como o marco fundador de um pensamento “conservador moderno” – chamado por alguns autores de “liberal conservador”, embora haja quem considere a expressão um oximoro ou uma aberração, e respeito isso -, que procura estabelecer uma síntese entre a valorização das reformas graduais e da temperança em política, justificadas com base em valores morais substantivos e instituições e referências culturais testadas e experimentadas pelo tempo, e as mais básicas ideias que surgiram no movimento de contestação ao poder absoluto dos monarcas – com mais força ainda no Reino Unido de que fazia parte. Em nome dessa postura geral, como demonstra o seu An Appeal from the New to the Old Whigs, em discussão com outros membros de seu partido mais inclinados às ideias dos radicais franceses, sustentou suas posições com base em excertos dos seus antecessores. Diga-se de passagem, essa deferência aos legados do passado e às tradições clássicas não é, em Burke, um chamamento ao imobilismo; Mordecai Kaplan, um teólogo judaico, disse certa vez que “o passado possui um voto, mas não um veto”. Assim entenderia Burke, quando diz que um Estado ou ordem de coisas, para conservar sua essência positiva, precisa se modificar.

Nunca neguei minhas aderências burkeanas, que serão provavelmente (e compreensivelmente) incômodas para os sociais-liberais, libertários, anarco-liberais ou liberais clássicos mais plenamente categorizados e hostis a esse enfoque.  Devo lembrar, porém, que figuras que preferiam se referir a si mesmas puramente como liberais, como Friedrich Hayek, o brasileiro Og Leme – figura de peso na história do Instituto Liberal do Rio de Janeiro – e ninguém menos que Adam Smith (que dizia que nenhuma pessoa que ele não tivesse conhecido pessoalmente tinha uma percepção da economia social tão similar à sua quanto Edmund Burke) também as tinham. Hayek se identificava politicamente como um “Old Whig burkeano”, e José Guilherme Merquior (ele mesmo autodeclarado social-liberal), fez referência destacada à composição realizada por Hayek com as ideias de Burke. Lord Acton o considerou um dos maiores liberais de todos os tempos, junto com Gladstone (este muito admirado por Joaquim Nabuco) e Macaulay. Dito isso, o enriquecimento do movimento pela liberdade advirá, entendemos, de um conhecimento amplo de todas as diferentes tendências e escolas que surgiram nesse bojo, abrindo-se espaço a que todos tracem suas estratégias prediletas e articulem seus argumentos como bem desejarem. Não trago, porém, a figura de Burke para discutir os fundamentos do liberalismo ou do conservadorismo, tampouco para discutir “esquerda” ou “direita” – estes últimos conceitos muito mais retóricos que portadores de uma significação de consenso universal. Trago para apresentar uma visão pessoal de como entendo que essas diferenças devam se traduzir em política prática.

Burke foi uma figura pouco compreendida por muitos; prestou apoio a reivindicações dos colonos americanos que se separaram da Inglaterra, bem como aos colonizados indianos, e – poucos sabem – defendeu os homossexuais e os católicos de seu tempo da perseguição e da punição por pena de morte. Disse que divisões partidárias, mesmo as internas de um mesmo partido, são essenciais para um “governo livre”. Defendia a ampla liberdade de mercado. Mas sua realização mais conhecida é o livro Reflexões sobre a Revolução em França (1790), uma crítica à Revolução Francesa. Muito resumidamente, ele acreditava que os revolucionários, influenciados de maneira exaltada por teóricos como Rousseau, pretendiam afrontar os limites da ordem espontânea da sociedade, com conquistas formadas com o tempo e não por esquemas centralizadores tirânicos que se propõem a impor a solução definitiva dos problemas, subvertendo tudo que está estabelecido para pôr no lugar os sistemas abstratos e supostamente magníficos a que estão agarrados – dogmaticamente e com profundo e cego fundamentalismo. Com suas especificidades, foi o mesmo diagnóstico que Hayek traçou para os dilemas do século XX, e que podemos traçar ainda hoje.

As aplicações jacobinas dos teóricos que inspiraram a Revolução, denunciadas por Burke com uma ênfase nunca tão caracteristicamente igualada, demonstraram o risco até antiliberal de um utópico democratismo radical, que não leva em consideração a importância das instituições fortes e da representação política. Mostram também os riscos da cegueira de um fundamentalismo isolacionista agressivo e obstinado, servindo de matriz ideológica para todos os pensamentos utopistas que não conseguem lidar pacificamente com a realidade humana – realidade em que precisamos nos restringir a negociações e discussões em torno de pautas, tanto comuns quanto destoantes, saindo dessas negociações, sob forma de síntese, as consequências concretas. Era aí que queria chegar.

Dentro daqueles que esposam as ideias da liberdade, existem diferenças profundas – e é natural, porque não formamos e não devemos formar uma grande seita de esquisitos, apartados da sociedade em devaneios exóticos. E essa sociedade é inevitavelmente plural. Muitos questionam como se deve agir diante disso. Minha percepção é de que não devemos procurar tornar igual o que não é e não quer ser, mas podemos e devemos nos unir em prol de causas e bandeiras que sejam comuns a todos, a partir de um responsável e equilibrado pragmatismo – tal como, por exemplo, adeptos de diferentes credos se unem contra o aborto. Isso não é “fundir” ou desnaturar a identidade filosófica das correntes específicas a que nossos pendores e entendimentos nos tenham conduzido. Isso é simplesmente a real política, que não trará prejuízo a quem entende seu lugar e a dimensão de suas possibilidades, e o risco de querer, com afobação, ultrapassar isso para fazer imposto o seu ponto de vista. Digo mais; sociais democratas, em uma luta contra uma ideologia ou uma legenda totalitária, também são alianças circunstanciais positivas de todos os movimentos que defendem os princípios das liberdades e do Direito, posto que são DEMOCRATAS – e isso já é muito diante das propostas ditatoriais extremistas e populistas que se revestem desse rótulo para subjugar as consciências.

Tenho visto, por exemplo, algumas vozes se levantando contra a aliança dos movimentos populares de rua com os partidos políticos, com vistas ao impeachment. Em prol de um purismo dogmático, esses ficarão idealizando em abstrato uma saída que não virá sem passar pela via da representação política. Por isso, deixemos claro: não podemos permitir, é verdade, que partidos que se mantiveram, na oposição, quietos e covardes, cegos, surdos e mudos aos reclames do povo, aguardando até o último momento para tomarem posições mais firmes, venham agora pautar todo o processo que desembocará, esperamos, na queda do petismo e de Dilma Rousseff. No entanto, no momento em que precisamos deles para defender a saúde de nossa democracia – ou, no dizer aristotélico, nossa República -, não podemos ter “nojinho” de nos articularmos com eles pela causa comum. Assim com tudo, entre nós e com os outros.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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