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“Conciliação política no Império (1831-1855)”: o desafio do sistema representativo

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Li de um fôlego só o excelente livro Conciliação política no Império (1831-1855), publicado em 2017 pela Paco Editorial. O autor é o amigo Fábio Santa Cruz, doutor em História pela Universidade de Brasília, professor e estudioso da época imperial, que tem sido rico interlocutor em nossas reflexões particulares.

O trabalho, além de caracterizado por saudável didatismo, conta com um estilo de texto muito envolvente, capaz de instigar o leitor a querer continuar acompanhando os capítulos subsequentes da narrativa que constrói sobre um dos períodos mais sangrentos e turbulentos da história pátria. Subsidiariamente, sob o pretexto de ensejar uma reflexão sobre o conceito de conciliação política e sua aplicação objetiva ao cenário monárquico, o texto dá conta, à sua maneira, de contribuir para ponderações sobre o problema nuclear com que se defrontava o liberalismo do século XIX no Brasil e que, de muitas maneiras, segue atual: a consolidação e o aperfeiçoamento do sistema representativo.

O objetivo do autor é descrever o período que vai da abdicação de D. Pedro I, em 1831, até 1855, com a reta final do gabinete ministerial conhecido como “Gabinete da Conciliação”, que sacramentou o advento da fase mais áurea e estável do Império. Porém, sua abordagem investiga os antecedentes, remontando ao período do reinado de D. João VI. Com isso, permite uma apreciação enriquecedora do processo de formação das correntes políticas que se enfrentaram ao longo do ciclo monárquico, antes da consolidação do bipartidarismo dominante no Segundo Reinado.

No ciclo posterior à Revolução do Porto, que estabelece o liberalismo em Portugal, mas, ao mesmo tempo, reivindica o retorno de restrições ao então Reino do Brasil que recordariam os tempos de exclusivismo colonial, os habitantes da América portuguesa se dividiram, aponta o professor, em três grupos: os que ele chama de recolonizadores, apoiadores do projeto português da Revolução do Porto; os joaninos, contrários ao rebaixamento das prerrogativas conquistadas pelas províncias brasileiras; e os radicais, grupo que queria mudanças mais profundas, alguns chegando às raias do republicanismo e do revolucionarismo francês, que comporiam as facções extremistas que o professor Antonio Paim trataria pela alcunha de “democratistas”. O duelo entre “recolonizadores” e “joaninos”, basicamente, foi o que caracterizou as batalhas pela independência do Brasil, estendidas até 1823.

No Primeiro Reinado, Fábio vê convertida a posição anteriormente ocupada pelos joaninos em um novo grupo que denomina bloco parlamentar, ainda tendo que se ver com a balbúrdia dos radicais, bem como com os membros do chamado “polo português” ou pedristas, ligados ao palácio e que atuavam como fatores de complicação em seu relacionamento com o imperador. A violenta tensão leva ao fim do Primeiro Reinado em 1831 e ao início do período Regencial, foco da análise desenvolvida.

Conforme o autor sugere em sua Introdução, seu livro pretende ilustrar os desafios de um processo político de conciliação com os esforços extremamente difíceis dos estadistas do Império de assentar suas instituições em um cenário de lideranças destreinadas para a política no sistema representativo liberal, em que literalmente as soluções eram buscadas pela via das armas e o país sofreu ameaças de fracionamento. Em sua abordagem, ele apresenta a conciliação como um acordo entre correntes e grupos de interesse que não se dissolvem e não deixam de divergir, mas que entendem precisar de um razoável nível de concórdia, dando “visibilidade às ideias convergentes de interesses políticos anteriormente desavindos”.

Como bem aponta o autor, esses processos experimentam questionamentos, com grupos políticos apontando a conciliação como uma capitulação a ideias adversárias, e costumam ser frágeis e sujeitos a intermitências. Contudo, algumas conciliações políticas “resistiram às adversidades”, e o período estudado caracteriza, na visão de Fábio, um dos casos “que atraem muita atenção entre os estudiosos deste assunto”. No caso estudado, o objetivo de algumas lideranças políticas por perseguir uma conciliação tinha um interesse explícito e essencial: “consolidar a existência do novo Império sul-americano” após as conturbações da Independência e do Primeiro Reinado e impedir que as desavenças continuassem a ser resolvidas por conflitos bélicos e ameaças de divisão territorial. A tese central do livro é que “a busca pela conciliação política no Império do Brasil influenciou decisivamente os debates parlamentares da época” e passou por três grandes fases: uma de expansão das ideias conciliatórias, outra de crise dessas mesmas ideias e uma terceira “em que a conciliação política chegou ao seu auge no âmbito do regime monárquico brasileiro”.

A fase de ascensão seria aquela que imediatamente sucede a abdicação. As forças imperiais, obrigadas a constituir governos transitórios chamados de Regências, no que se assemelhou bastante a uma experiência republicana, se viam tomadas da intenção de estabelecer os acordos conciliatórios necessários para que as turbulências cessassem. O rearranjo de forças, entretanto, levou à conhecida divisão entre restauradores (advogando a volta do Primeiro Reinado), exaltados (basicamente os herdeiros dos radicais) e os moderados (aqueles que autores como Otávio Tarquínio de Sousa chamariam de “liberais moderados” e caracterizariam a ortodoxia política do Segundo Reinado). O espírito conciliador não conseguiria seguir ileso.

Em meio a uma série de lances que envolveram uma tentativa de golpe de Estado e até um “golpe” consumado – o da Maioridade antecipada de D. Pedro II –, bem como uma sucessão de revoltas e guerras regionais que irrompiam tanto por pressão dos restauradores quanto, de forma mais prolongada, pela ânsia revolucionária dos exaltados, Fábio descreve a disposição de forças que protagoniza a maior parte da narrativa que se dispõe a contar. De um lado, uma associação entre parte do grupo dos moderados e parte do grupo dos exaltados formará o que ficou conhecido como Partido Liberal (ou “luzia”); de outro, uma associação entre outra parte do grupo dos moderados e os ex-restauradores formará o chamado Partido Conservador (ou “saquarema”). Essas duas grandes coalizões representarão o bipartidarismo monárquico pela maior parte das décadas de duração do Segundo Reinado.

A leitura do professor, alicerçada em ricas descrições dos embates travados tanto no Parlamento quanto pela violência, é a de que o bloco luzia representava o anseio por conciliação, sustentando reformas descentralizadoras, como o Ato Adicional de 1834, visando à aproximação com os revolucionários e correntes mais radicais a fim de anistiá-las tanto quanto possível, incorporando seus próceres à estrutura institucional do Império e encerrando as beligerâncias intransigentes. Os luzias seriam, portanto, uma voz mais propícia a crer na brandura do tratamento a ser dispensado aos revoltosos e grupos mais radicais como a melhor metodologia a ser empregada para equacionar o grande desafio de assentamento pacífico das instituições. O bloco saquarema, ao contrário, na maior parte do período, representaria a defesa de uma repressão dura aos descontentes rebelados, vistos como uma ameaça institucional e existencial, e a necessidade de maior centralização política para apaziguar as turbulências.

Acredito que a abordagem escolhida é uma forma respeitável de julgar o cenário. Creio que, em algum momento, seria mesmo necessário absorver boa parte dos descontentes e conciliar interesses para pôr termo ao caos. Penso, entretanto, que tenho mais simpatias saquaremas que o professor Fábio. Se posso concordar em que não era possível apostar todas as fichas na repressão implacável para equacionar a crise, ao contrário do que diriam alguns dos saquaremas abordados no livro – e em que, com a conivência dos saquaremas, o Brasil já exibia, mantendo elementos da tradição burocrática portuguesa, joanina, pombalina e patrimonialista, aspectos centralizadores e de excessiva regulamentação que alguns de seus opositores luzias apontavam com justiça, antecedendo muitas das críticas feitas pelos liberais de hoje -, tendo a considerar, entretanto, que o grupo do Partido Conservador tinha uma percepção mais realista das circunstâncias sociológicas do país, como já tive oportunidade de “palpitar” em outras ocasiões.

Em minha opinião, os saquaremas estavam certos acerca de sua tese principal: a da necessidade de uma maior centralização política no Brasil para facultar a rotação do poder e evitar a tirania partidária local, diante, sobretudo, da fragilidade do sistema eleitoral e das características de formação da opinião pública. Eles tinham, diante da nossa realidade sociológica, o que Carlos Lacerda chamaria de um “realismo cínico” – nem por isso menos realismo. Pode parecer uma afirmação contraditória diante do fato de que a descentralização ou a subsidiariedade, em teoria, são mesmo prerrogativas do pensamento liberal. Porém, cabe levar alguns aspectos em consideração; o primeiro é que nem sempre quem parece defender mais descentralização é quem está mais preocupado com as liberdades, no caso concreto; na República Velha, os castilhistas gaúchos defendiam um federalismo mais radical do que o liberal Rui Barbosa, ciosos de preservar seu regime tirânico local. O segundo é que, ao sustentar suas teses, o notável teórico saquarema Visconde de Uruguai, por exemplo – a quem o professor Antonio Paim considerava um dos maiores liberais brasileiros -, não se valia de fontes diferentes das de um Alexis de Tocqueville, célebre liberal francês que distinguia centralização política e centralização administrativa, entendendo que, em certos contextos, a primeira poderia eventualmente ser, em alguma medida, necessária. Muitos entre os conservadores, quiçá a maioria, na verdade, eram também politicamente liberais, apenas de uma vertente distinta. Por violentos e tenebrosos que fossem os enfrentamentos, o que brilhantemente ilustra o livro do professor Fábio, o duelo entre luzias e saquaremas não era um confronto filosófico tão essencial quanto o que se poderia travar, por exemplo, entre o liberalismo e o socialismo.

O nome que o professor elenca como liderança a ser destacada desse esforço luzia por conciliar moderados e exaltados, o padre Diogo Feijó, ele próprio alçado ao cargo de Regente Uno, de fato tinha uma posição de proeminência perante esse grupo político no período analisado. No entanto, como o próprio autor expressa, demonstrando as intempéries de um processo conciliatório, Feijó exibiu uma personalidade avessa ao diálogo com o Parlamento – Tarquínio diria dele que era algo avesso ao regime parlamentar do governo das maiorias – e se tornou, ele próprio, um dos líderes de uma revolta luzia, a Revolução Liberal de 1842, postura que, na prática, caracteriza tudo, menos conciliação.

Seja como for, a narrativa sedutora e competentíssima de Conciliação política no Império culmina com o chamado “Gabinete da Conciliação”, constituído pelo saquarema Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná, a partir de 1853. Nele, Fábio vê uma adesão mais significativa do saquaremismo ao ideal conciliatório, bem como a intenção de promover uma reforma judiciária e uma reforma eleitoral, a famosa Lei dos Círculos, que pretendia promover facilidades à representação das oposições no Parlamento Imperial. Entre os propósitos, estava “impedir que iniquidades cometidas com motivações políticas fossem tão frequentes como eram à época” e que “agentes do poder estatal se aproveitassem de tal poder para beneficiar as suas próprias candidaturas”.

A união de luzias e saquaremas em torno dos projetos e da estabilidade dos esforços modernizadores do governo Paraná foi um sucesso histórico, como devidamente registra o professor Fábio, da conciliação necessária ao intento de “instaurar maior estabilidade política e consolidar o Estado imperial”. Essa conciliação não implicou unanimidade ou anulação dos partidos. Significou, ao contrário, um acordo bem-sucedido para manter as divergências políticas restritas ao sistema político, capaz de equacioná-las pacificamente, sem o recurso a derramamento de sangue e exércitos. Essas divergências, daí por diante, “não continuaram provocando acentuada instabilidade política, não representaram um risco para a integridade político-territorial brasileira e não foram rusgas desmoralizantes para o país”.

Para a obtenção da estabilidade do sistema político do Segundo Reinado – a despeito da constante rotação de governos –, o professor Antonio Paim considera ter sido essencial a consciência da elite monárquica de que o sistema representativo deveria se assentar sob a fórmula de Silvestre Pinheiro Ferreira da representação de interesses, diversificados em correntes de opinião e, por fim, em partidos. A agenda teórica central do liberalismo do século XIX era conseguir fazer isso e impedir a destruição do país. O Império logrou êxito nesse propósito ao garantir que luzias e saquaremas poderiam estar representados no Parlamento e se alternarem no governo, sem se destruírem mutuamente.

Esse exemplo, exposto com maestria pelo trabalho recomendadíssimo do professor Fábio, serve de inspiração para as reflexões contemporâneas acerca dos limites de uma conciliação e, por outra, da polarização política. O enfrentamento de ideias e as divergências centrais do debate público não devem ser silenciados, mas é preciso respeitar um pacto mínimo para que tudo se verifique sempre dentro de um respeito sagrado às regras do jogo. Eis o que o liberalismo brasileiro sempre pretendeu ver realizado – e deve continuar a zelar por esse objetivo.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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