Visconde de Uruguai versus Tavares Bastos: o grande debate do Segundo Reinado

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O Império Brasileiro, momento inaugural de nossa trajetória como nação independente, foi uma construção reconhecidamente alicerçada em bases teóricas liberais. A partir do desfecho do período Regencial, particularmente o Segundo Reinado é inequivocamente uma experiência política inspirada no liberalismo do século XIX.

Duas posturas gerais, apesar das divisões internas e especificidades de cada agente político, se defrontaram ao longo do período de reinado de D. Pedro II (1825-1891): a dos chamados “saquaremas” ou “conservadores” e a dos chamados “luzias” ou “liberais”. Entretanto, tanto uns quanto outros são dois grupos políticos egressos de um mesmo grupo original: o dos “liberais moderados” que derrotaram, na Regência, os restauradores (“caramurus”) e os “liberais exaltados”, próximos ao republicanismo e às vezes até à secessão.

Conservadores e liberais da monarquia, portanto, em sua maciça maioria, eram ambos espécies diferentes de liberais dentro do contexto do século XIX. Para provar essa premissa, decidi sintetizar as ideias expostas em duas obras seminais dos dois grupos políticos: da parte dos saquaremas, o notável Ensaio sobre o Direito Administrativo, de autoria de Paulino José Soares de Sousa, o Visconde de Uruguai (1807-1866), e, da parte dos luzias, o audacioso livro A Província, de autoria de Aureliano Tavares Bastos (1839-1875).

Ensaio sobre o Direito Administrativo

Redigido por um dos estadistas mais importantes da monarquia, filho de pai brasileiro e nascido na França, o Visconde de Uruguai, esta obra lançada em 1862 condensa relevante parcela do pensamento saquarema em alguns de seus postulados básicos, bem como reúne material dos debates parlamentares desde a “revolução de 7 de abril de 1831” que marcou a abdicação de D. Pedro I (1798-1834).

O principal propósito de Uruguai ao redigir o trabalho é comparar as experiências administrativas de países como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos ao Brasil, uma nação muito jovem e que precisava se inspirar em outros modelos e tradições para arquitetar algumas de suas instituições, sob a égide da Constituição de 1824.

O livro dedica boa parcela de seu primeiro tomo a estabelecer conceituações básicas do Direito, entre elas particularmente a divisão que o autor considera importante ser feita entre o Direito Constitucional, versando sobre o poder político, e o Direito Administrativo, que “se refere mais propriamente à autoridade administrativa e à administração”, tendo “por fim principal a aplicação das leis de ordem pública, a gerência e direção de interesses que não são meramente políticos”. Ambos, o poder político e o administrativo, estão em geral sob a égide do Poder Executivo, mas são diferentes. Tal distinção se torna muito importante quando o livro expõe com clareza o pensamento político de Uruguai, em que ele considera estarem as duas esferas, à época, bastante confundidas.

Uruguai desenvolve uma ampla abordagem dos cargos, funções e estruturas por que, do poder central até o âmbito municipal, as questões da administração pública eram levadas a efeito naquela década de 60 do século XIX. Só então ele adentra as questões que efetivamente dividiam os saquaremas dos luzias.

Uruguai a todo momento se refere aos adversários como adeptos da “opinião chamada liberal”. Ele o faz porque, em nota, afirma, para provável surpresa de alguns incautos contemporâneos, que a sua posição é que seria a verdadeiramente liberal. As referências teóricas que Uruguai cita, das quais se serve sem moderação para fundamentar suas posições, vêm marcadamente do liberalismo francês, de Benjamin Constant (1767-1830) e Alexis de Tocqueville (1805-1859) aos liberais doutrinários franceses como François Guizot (1787-1874).

Estes últimos pensadores estavam preocupados com a organização da sociedade francesa após o caos revolucionário reinante desde 1789, pretendendo preservar e consolidar determinados princípios do liberalismo e do sistema representativo, mas garantir também a ordem social e política perdida, preferindo rejeitar uma política revolucionária abstrata. Foram por isso chamados, por nomes como Victor Hugo (1802-1885), de “liberais conservadores”. Porém, seria injustiça considerar Uruguai intransigentemente avesso aos britânicos e americanos, pois demonstra grande interesse em seus sistemas políticos e também explora, por exemplo, um dos fundadores americanos, Alexander Hamilton (1755-1804).

O problema é que, na opinião de Uruguai, as instituições francesas do liberalismo doutrinário, pela sua originalidade e relativa independência de um longo processo histórico de formação, tinham maior aplicabilidade ao contexto sócio-político brasileiro do jovem Império. Ele desenvolve esse raciocínio sempre comparando o pensamento constitucional e político vigente nos demais países com o debate jurídico brasileiro, procurando sustentar o que é aplicável ao contexto brasileiro e o que não é.

Para Uruguai, assim como para os saquaremas em geral, algumas instituições claramente estabelecidas pela lei fundamental brasileira – como o Senado vitalício e com representantes escolhidos pelo imperador em lista tríplice eleita, a existência formal de um grupo de pessoas em torno do imperador para aconselhá-lo (o Conselho de Estado), o Poder Moderador e a centralização política, com a possibilidade de ação do monarca sobre as províncias a partir dos presidentes de província nomeados pelo poder central – eram necessárias ao estado social brasileiro.

Os opositores luzias queriam que o Poder Moderador fosse exercido apenas com a referenda dos ministros, executores, sob a chefia do imperador, de outro poder, o Executivo. Tal Poder Moderador, exercido privativamente pelo imperador D. Pedro II, dava-lhe o poder de convocar a Assembleia Geral extraordinariamente; sancionar os decretos e resoluções da Assembleia; prorrogar, adiar ou dissolver a Câmara dos Deputados – mas obrigatoriamente convocando a eleição de outra; nomear e demitir os ministros de Estado; escolher os senadores da lista tríplice e perdoar e moderar penas.

A teoria por detrás desse poder adveio justamente de uma adaptação da obra do liberal Benjamin Constant. A argumentação de Uruguai é sempre no sentido de sustentar que esse poder tem suas atribuições específicas, não é tirânico e estava previsto na Constituição precisamente como um instrumento de compensação das turbulências dos outros poderes, sendo justamente inutilizar a sua razão de ser e a sua independência da política partidária sujeitá-lo aos ministros. Ele também procura sustentar que o Poder Moderador não diferia essencialmente da relevância do monarca em outras monarquias, ainda que, na prática social brasileira, sua atuação se fizesse mais intensa e corriqueira. Seus atos são “puramente moderadores, conservadores, que tem na Constituição corretivo próprio, e que pela sua natureza e alcance, sem o emprego dos meios dos quais só dispõe o Executivo, não podem atingir fins criminosos; como, por exemplo, destruir a forma de governo, a independência, integridade da nação, etc.”, tampouco “obrar contra os direitos individuais dos cidadãos marcados na Constituição e que têm por base a liberdade, segurança e propriedade”.

De premissas similares decorre o grande tema evocado na disputa entre saquaremas e luzias: a centralização. Para Uruguai, justamente por separar as duas esferas, a centralização administrativa deve ser reduzida ao máximo aplicável, a fim de que as localidades possam cuidar de seus negócios. Porém, devia haver centralização política no Brasil. Quando ela surgiu, diz ele, “não tínhamos, como a formaram os ingleses por séculos, como a tiveram herdada os Estados Unidos, uma educação que nos habilitasse praticamente para nos governarmos a nós mesmos”.

Para Uruguai, as reformas descentralizadoras feitas pelo Ato Adicional de 1834 haviam colocado o Poder Legislativo central exageradamente refém de decisões das Assembleias Provinciais, emperrando o processo político, tornando necessária a Lei Interpretativa do Ato Adicional, formalizada em 1841 pelos saquaremas. Ele julgava também que as províncias, ciosas de mais poder, haviam reduzido o poder e a vitalidade dos municípios. Além disso, o ponto mais importante era que as eleições do Império eram afetadas pela falta de desenvolvimento do self-government entre nós, sobretudo em virtude da escassa comunicação entre as regiões, da falta de instrução dos brasileiros, da enorme decantação entre as concentrações demográficas e do domínio que as parcialidades políticas locais exerciam sobre a máquina política, sufocando oposições. Não éramos “uma nação acostumada por muito tempo ao gozo prático de certas liberdades locais; afeita a respeitar as suas leis e os direitos de cada um; que adquiriu com a educação e o tempo aquele senso prático que é indispensável para tratar os negócios”, como a Inglaterra e os Estados Unidos fizeram.

Por isso, para Uruguai, como para o pensamento conservador desde Edmund Burke (1729-1797, sabidamente um liberal Whig, que aparece no livro listado como um dos grandes estadistas britânicos), era preciso adequar os princípios, notoriamente os princípios liberais, às circunstâncias sociais, históricas, culturais e geográficas do Brasil. Isso, a seu ver, demandava uma centralização política capaz de evitar o poder das oligarquias locais, garantindo a circulação dos partidos no poder e protegendo as liberdades dos opositores. Para Uruguai, naquele momento da História, a liberdade dos indivíduos cidadãos – com que, como liberal, ele estava preocupado – estava mais ameaçada pelo mandonismo local que pelo governo central e por isso este último deveria concentrar maior abrangência e poder.

A Província: estudo sobre a descentralização no Brasil

Publicado em 1870 pelo alagoano protestante Tavares Bastos, este livro sintetiza as posições básicas dos luzias em seu debate com os saquaremas. Os luzias geralmente defendiam a extinção do Conselho de Estado e do Senado vitalício e a necessidade da referenda ministerial ao exercício do Poder Moderador (alguns, como Teófilo Otoni, caminharam para posições republicanas, mas o “partido” era, em si, monárquico). Sua principal bandeira, porém, era combater a centralização e defender a pureza de aplicação do Ato Adicional de 1834, considerado um dos edifícios legais mais relevantes e admiráveis da história brasileira.

Para Tavares Bastos, a centralização era obra dos “que desejam a eternidade para as constituições e o progresso lento para os povos”. A obra da geração que combateu D. Pedro I, para ele, teria que ter sido completada com a confederação das províncias, a supressão do Conselho de Estado e a fusão das atribuições do Poder Moderador e do Poder Executivo, tornando “a monarquia uma instituição inofensiva”. Os saquaremas como Uruguai eram, a seu ver, “homens sem fé nos destinos da democracia e na missão providencial da América”. Desde o começo, Tavares enaltece os países anglo-saxônicos como modelos em que o Brasil se poderia perfeitamente inspirar e conclamou seu partido a combater a política excessiva da ordem e da centralização para defender a liberdade.

A concepção de Tavares Bastos advogava a existência de um progresso da humanidade em direção ao maior exercício das liberdades e a centralização, política ou administrativa, representa um entrave nefasto a esse progresso. “Dispensando, contendo ou repelindo a iniciativa particular, anulando os vários focos da atividade nacional, às associações, os municípios, as províncias, economizando o progresso, regulando o ar e a luz, em uma palavra, convertendo as sociedades modernas em falanstérios como certas cidades do mundo pagão, a centralização não corrompe o caráter dos povos, transformando em rebanhos as sociedades humanas, sem sujeitá-las desde logo a uma certa forma de despotismo mais ou menos dissimulado”, esbraveja Tavares.

Em sua concepção, os EUA constituíam um exemplo muito representativo de uma tendência que se manifestava no mundo inteiro em direção à descentralização, que também avançaria na França, que “agourenta a alegria do espetáculo que tantos povos oferecem”. A Lei Interpretativa do Ato Adicional teria sido um retrocesso do Brasil, um protesto de uma mentalidade atrasada contra os avanços liberais conquistados na própria América. Para ele, as deficiências das províncias em matéria de transportes e correios, por exemplo, adviriam da sufocação empreendida sobre elas pelo Estado central.

Ao contrário do que diziam os saquaremas, a seu ver era a centralização de poder que manipulava as eleições, impedindo que houvesse vida democrática real nas províncias e municípios. Ao argumento saquarema de que o povo está deseducado para a vida democrática, ele opõe o argumento de que ele permaneceria deseducado sob a égide de um sistema por ele considerado opressor por sua centralização. “Negam ao país aptidão para governar-se por si e o condenam por isso à tutela do governo. É pretender que adquiramos as qualidades e virtudes cívicas, que certamente nos faltam, sob a ação estragadora de um regime de educação política que justamente gera e perpetua os vícios opostos”, protesta.

A Federação verdadeira, a exemplo dos Estados Unidos, libertaria os espíritos e mobilizaria as disposições no Brasil. Na opinião de Tavares, baseado no que fizeram os americanos, todas as províncias brasileiras, devendo ser muito mais livres do que o eram, deveriam aceitar os seguintes princípios: “a liberdade de religião, sendo proibido estabelecer religião de Estado (o Catolicismo era a religião oficial do Brasil na época e Tavares queria mudar isso), a liberdade de imprensa, o direito de reunião, de petição, de trazer armas de defensa, o respeito da pessoa, da casa, da propriedade e das cartas, a proibição de mandados de busca arbitrários ou sem as formalidades precisas”.

Não seria, pois, nulo o poder central; teria prerrogativas, teria funções. Porém, a Federação real pressuporia que os elementos constitutivos do país seriam regiões com poderes políticos autônomos e até Constituições próprias, sem por isso desfazer-se a união entre eles. Para ele, os problemas observados em consequência das franquias descentralizadoras concedidas às províncias brasileiras foram derivados da falta de experiência com o sistema representativo, cabendo aos saquaremas como Uruguai a responsabilidade por abdicarem da evolução democrática e liberal por preconceito e afobação.

Lamentava o autor que a Lei Interpretativa criou “a polícia uniforme em todo o Império e a militarização da Guarda Nacional”. Os saquaremas queriam justamente o Judiciário e a segurança pública menos submetidos à esfera de influência provincial, enquanto os luzias como Tavares achavam que a polícia e a Justiça deveriam estar sob a esfera local. Também o presidente da província deveria ser eleito e não nomeado pelo poder central. Isso porque a seu ver, no Brasil, o presidente “é um instrumento eleitoral. É por meio deles que se elege periodicamente a chancelaria do nosso absolutismo dissimulado. Montar, dirigir, aperfeiçoar a máquina eleitoral, eis a sua missão verdadeira, o seu cuidado diurno e noturno”.

Rebatendo Uruguai, Tavares Bastos afirma que, se os saquaremas efetivamente desejassem fortalecer os municípios, teriam cuidado do assunto quando promoveram as reformas centralizadoras da Lei Interpretativa e que a evolução do Ato Adicional teria levado a isso, se houvesse sido respeitada.

Para ele, a descentralização beneficia o alastramento do ensino público e as assembleias provinciais devem liberar o ensino particular. Um ensino provincial deveria ser desenvolvido, a partir de impostos próprios da província.

Tavares Bastos defende também a extinção do trabalho escravo, com sua abolição gradual por províncias e a dedicação provincial em inserir os escravos no ensino e na vida digna. Os negócios e associações, na visão de Tavares, já eram entravados por uma série de burocracias centrais, particularmente incidindo sobre o direito de incorporação de companhias. Também a imigração deveria ser incentivada, com o vigor das províncias atuando para esse propósito. Diversas obras públicas de interesse local eram prejudicadas pelas regulamentações burocráticas do poder central – questões que, lembremos Uruguai, deveriam estar na esfera administrativa e mereceriam, portanto, maior descentralização.

Todas as reformas nesses problemas se deveriam fazer acompanhar, naturalmente, de uma reforma tributária que dotasse as províncias e os municípios de mais recursos.

Conclusão

Resumidamente, em minha opinião, os saquaremas estavam certos acerca de sua tese principal: a da necessidade de uma maior centralização política no Brasil para facultar a rotação do poder e evitar a tirania partidária. Eles tinham, diante da nossa realidade sociológica, o que Carlos Lacerda chamaria de um “realismo cínico” – nem por isso menos realismo.

Por outro lado, com a conivência deles, o Brasil já exibia, mantendo elementos da tradição burocrática portuguesa, joanina, pombalina e patrimonialista, aspectos centralizadores e de excessiva regulamentação que seus opositores luzias apontavam com razão, antecedendo muitas das críticas feitas pelos liberais de hoje.

Entrementes, a questão principal é que uns e outros, a despeito de suas abordagens antitéticas, estavam preocupados com o problema da existência de um sistema representativo, em evitar o arbítrio, dividir os poderes institucionais e proteger os direitos individuais. Em vez de inimigos fundamentais, representavam tendências distintas dentro de um mesmo fenômeno político: o liberalismo, em sua emergência e avanços naquela época.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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