Comércio não é guerra

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Leio no Globo que o Brasil se prepara para retaliar os EUA em US$ 829 milhões, por conta dos subsídios do governo norte-americano à produção e exportação de algodão. Negociações entre os dois governos para tentar um acordo vinham sendo  mantidas há, pelo menos, 4 anos, mas parece que não chegaram a bom termo.  Quando esta notícia apareceu pela primeira vez na imprensa, ainda em 2010, publiquei o seguinte artigo, que, pelo visto, continua bem atual:

Vamos retaliar (os nossos consumidores)

Brasil ganhou da Organização Mundial do Comércio (OMC) o direito de retaliar os EUA em US$ 829 milhões, por conta dos subsídios do governo norte-americano à produção e exportação de algodão. A retaliação preparada pelo governo brasileiro estabelece, em princípio, o aumento da alíquota de importação de 102 produtos, conforme publicado no Diário Oficial da União no último dia 8 de março. Entre esses produtos destacam-se o próprio algodão (inclusive tecidos de), trigo, automóveis, equipamentos eletro-eletrônicos, medicamentos, aparelhos e próteses ortopédicas, pneus, complementos alimentares, cosméticos, leite em pó e produtos químicos.

“Faz parte do jogo do comércio internacional”, foi o comentário que mais ouvi a respeito do assunto. Pode ser. Mas será que este jogo vale a pena?

Para efeito de raciocínio, imagine o leitor que o governador de São Paulo decidisse “proteger” os empregos da indústria automobilística de seu estado, concedendo alguma isenção fiscal às montadoras paulistas. Agora imagine que, sentindo-se prejudicada pela concorrência desleal, a FIAT mineira resolvesse pressionar o governador daquele estado para que tomasse providências. E este, pressionado pelo forte lobby, resolvesse “retaliar”, sobretaxando uma centena de produtos fabricados em São Paulo, a fim de pressionar seu colega paulista a voltar atrás.

Há alguma lógica econômica nesse tipo de política de guerra? Sacrificar a maioria dos consumidores para beneficiar meia-dúzia de produtores é justo?

O primeiro aspecto que chama a atenção é a utilização do termo “retaliação”. É sugestivo que os governos, e até uma organização supostamente criada para promover o livre-comércio entre nações, usem este tipo de linguagem bélica. Sim, pois não há nada mais pacífico do que o comércio entre indivíduos e empresas. Realizado de forma voluntária, o comércio é, ao contrário do que supõem esses senhores da guerra, um fortíssimo indutor da paz. O comércio constrói pontes, estradas, portos, aeroportos. O comércio une os povos através de um fim comum, que é a vantajosa troca de produtos e serviços. É paradoxal, portanto, que os governos imponham barreiras ao livre-comércio entre cidadãos e empresas como se estivéssemos em meio a uma guerra, quando na verdade ninguém compra ou vende nada senão porque assim deseja, ou melhor, porque considera a transação vantajosa.

A riqueza de uma nação se mede pela quantidade de produtos e de serviços disponíveis para as trocas. Portanto, quanto mais abundante for o mercado, não importa a proveniência dos bens, maior será a riqueza e o conforto dos indivíduos. Não por acaso, durante a guerra, a primeira coisa que o seu inimigo tentará fazer é barrar a chegada de suprimentos até você, bombardeando e inutilizando suas linhas de suprimento (ferrovias, rodovias, portos, etc.). É incrível, portanto, que em tempos de paz os nossos próprios governos procurem fazer exatamente aquilo que um inimigo faria em tempo de guerra: criar barreiras para a livre circulação de mercadorias.

Churchill costumava dizer que a diferença entre um estadista e um demagogo é que o horizonte deste são as próximas eleições, enquanto o daquele são as próximas gerações. Eis porque o protecionismo, malgrado amplamente refutado pela boa teoria econômica, continua tendo grande apelo entre os políticos.

No caso em questão, o governo brasileiro pretende compensar um erro do governo americano (que pune seus cidadãos fazendo-os bancar, por meio de subsídios, meia-dúzia de produtores ineficientes) castigando os seus próprios cidadãos. O aumento de tarifas de importação encarece os produtos, tornando-nos todos um pouco mais pobres. A fim de beneficiar alguns poucos produtores locais de algodão e os trabalhadores empregados naquela indústria, o Governo Lula resolve punir todos os consumidores, indiscriminadamente, através do aumento de preços.

As trocas e o comércio em geral nada mais são do que uma consequência lógica do processo de divisão do trabalho. Quanto mais amplo for este processo, mais benéfico ele será para todo mundo, principalmente em função da utilização das vantagens comparativas de forma global. Como vislumbrou Adam Smith, o objetivo final de toda a atividade econômica é o consumo. O trabalho é somente o meio utilizado para alcançarmos esse objetivo. Eis aqui, em linhas gerais, o âmago do sofisma protecionista: toda a sua argumentação está calcada na priorização do trabalho, em detrimento do consumo, ou seja, na priorização da atividade meio, em detrimento da atividade fim.

O foco da política econômica no trabalho e na produção, e não no consumo, está na raiz da maioria dos problemas econômicos de um país. É a produção que deve estar voltada para o consumo, para as necessidades e anseios do consumidor, e não o inverso, como pretendem muitos. Fazer do consumidor um mero instrumento para beneficiar a produção e, consequentemente, o trabalho local, é uma estupidez.

Quando o governo americano subsidia um determinado produto sob o argumento de que está protegendo empregos e a indústria local, o que ele está fazendo, efetivamente, é transferir renda do consumidor (contribuinte) para o produtor. A própria premissa de que se estaria preservando empregos domésticos através do subsídio é equivocada, pois enquanto os consumidores estão pagando mais impostos para beneficiar aqueles produtores, estão deixando de consumir outros bens e privando de emprego outras categorias de trabalhadores dentro da mesma economia.

Em resumo, a ação demagógica do governo, metendo o bedelho onde não deveria, gerou os seguintes resultados: transferiu renda dos consumidores para determinados produtores; protegeu uma indústria deficiente e ineficiente; manteve alguns empregos numa certa região em detrimento de outros tantos em outra região; desestimulou investimentos novos em outras áreas da economia e deixou vários consumidores insatisfeitos e mais pobres.

Em resumo, devemos incentivar a escassez, no lugar de facilitar a abundância? Devemos incentivar e aplaudir as leis protecionistas, que operam dentro da lógica perversa de que a riqueza de uma nação é inversamente proporcional à quantidade de produtos e serviços disponíveis?

Responda você mesmo, estimado leitor.

Eu, definitivamente, acho que não devemos retaliar ações equivocadas de terceiros punindo os nossos próprios cidadãos, seja aumentando tarifas ou mesmo proibindo a entrada de alguns produtos. Essa atitude, além de burra, é extremamente injusta.

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João Luiz Mauad

João Luiz Mauad

João Luiz Mauad é administrador de empresas formado pela FGV-RJ, profissional liberal (consultor de empresas) e diretor do Instituto Liberal. Escreve para vários periódicos como os jornais O Globo, Zero Hora e Gazeta do Povo.

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