Bastiat e a função da Lei
A Lei, de Bastiat, versa sobre a função da lei e dos legisladores, tendo sido publicado em 1848, no aflorar das revoluções europeias que se convencionou chamar de Primavera dos Povos. O livro busca combater as ideias coletivistas e socialistas que surgiam na França, tendo como principal lema a afirmação de que “A Lei é a força comum organizada para fazer obstáculo à injustiça”.
A fim de objetivar aquilo que entende por injustiça e, com isso, combater o próprio viés socialista de expansão do Estado, Bastiat defende que a lei não pode autorizar ou efetivar aquilo que um indivíduo, por si só, não poderia fazer a outro indivíduo sem cometer um crime. É com base nisso que Bastiat defende que a busca pela “fraternidade” não é função da lei, defendendo que qualquer forma de distribuição social, orientação do mercado ou intervenção na vontade do indivíduo seria uma “espoliação legalizada”. Dito isso, as intervenções à liberdade individual por via da lei deveriam se restringir a permitir que os indivíduos exerçam inofensivamente suas faculdades, aplicando-as ao seu desenvolvimento físico, intelectual e moral.
Talvez a ideia mais sensata que surge desse raciocínio é a de que Bastiat defende sim um Estado que deve proteger o indivíduo da agressão de outros, pois a nenhum indivíduo é facultado exercer suas faculdades de modo a agredir outro indivíduo, exceto se em legítima defesa. Pensemos aqui sobre casos emblemáticos de poluição do meio ambiente, em que um grupo de empresas é punido por exercer suas atividades (faculdades) de modo a tornar a água de certo local imprópria ao consumo, ou o ar excessivamente poluído, causando danos comprovados a uma comunidade local (ofendendo um grupo de indivíduos). Por certo devemos dispor de um poder judiciário que puna esse tipo de atividade, uma vez que se trata de uma chamada “externalidade negativa” que atinge pessoas que sequer participavam daquele processo de produção ou consumo. Em outras palavras, tem-se a hipótese de uma coletividade de indivíduos causando dano físico a outra coletividade de indivíduos.
Em verdade, o que se defende em A Lei é que o Estado não aja como ente condutor da vontade dos indivíduos, utilizando-se de incentivos para que ajam, produzam, doem ou comportem-se de uma dada forma, conforme idealizada por legisladores.
Isso significa dizer que ao Estado não cabe, por exemplo, tributar o indivíduo em prol da promoção de bem-estar social, pois estaria destinando tais recursos ao que Bastiat conceitua como uma forma de filantropia forçada pelo Estado. A lei também não deveria utilizar-se de subsídios para conduzir um indivíduo ou empresa a agir de uma forma idealizada pelo legislador. Ao implantar tal política, o legislador estaria substituindo a vontade do indivíduo e, com isso, julgando-se mais bem capacitado a tomar decisões nas mais variadas searas da vida humana.
Para citar um exemplo brasileiro recente de subsídio fiscal, que caracterizou talvez uma das maiores espoliações já realizadas na indústria automotiva brasileira e, mais recentemente, se mostrou um fracasso, usemos o caso do programa Inovar Auto[1]. Tratou-se de uma política de incentivo fiscal para companhias que produziam e/ou importavam carros no país, que puderam se utilizar de incentivos fiscais para seus produtos importados, caso possuíssem fábricas em território nacional. Na prática, diversas montadoras se habilitaram para usufruir do benefício e instalaram fábricas no Brasil, mas que se mostraram extremamente ineficientes, pois não tinham ganho de escala frente a um mercado consumidor brasileiro pequeno[2]. Tendo o subsídio durado até 31 de dezembro de 2017, seguido de um recente aumento no custo de componentes destes automóveis, viu-se uma emblemática saída do país por diversas montadoras[3].
O resultado? Anos de capital financeiro e intelectual investidos em empresas que deixaram de existir, pessoas desempregadas e pouquíssimo ganho de eficiência para a indústria nacional. Houve uma indução de comportamento, com instalação de empresas ineficientes mantidas por aparelhos (subsídios). É esse o tipo de comportamento estatal que Bastiat combate em A Lei.
O autor também sustenta que, ao agir dessa forma e prometer soluções de bem-estar social, o Estado atrai para si essa responsabilidade. Com efeito, a sociedade adota para si o Estado como panaceia de suas mazelas, buscando na figura do legislador um super-herói e culpando-o sempre que tais objetivos não são alcançados. Essa realidade impõe que a sociedade conviva com recorrentes revoluções, conforme exemplifica o autor, ao citar o exemplo da França e os diversos levantes vistos no país após a revolução francesa de 1789.
Portanto, as reflexões trazidas por Bastiat não podem ser ignoradas, pois são atemporais e trazem relevantes questionamentos para a sociedade atual, no que tange à função da lei e dos legisladores.
[1] https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-exterior/pt-br/assuntos/competitividade-industrial/setor-automotivo/inovar-auto#:~:text=O%20Programa%20de%20Incentivo%20%C3%A0,econ%C3%B4micos%20e%20seguros%2C%20investir%20na
[2] https://braziljournal.com/marcos-lisboa-licoes-da-saida-da-ford-do-brasil/
[3] https://autopapo.uol.com.br/noticia/brasil-perdeu-10-fabricas-de-carro/#:~:text=Ford%20S%C3%A3o%20Bernardo%20do%20Campo,CE)%3A%20desativada%20em%202021
*Cícero Pereira é advogado no Mattos Filho, formado em Direito pela PUCRS com extensão no currículo de Law and Economics da Universität Bonn, na Alemanha.