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“Ação Humana e a Teoria do Conhecimento”: densa publicação do Instituto Escafandristas

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O Instituto Escafandristas é uma organização do movimento liberal brasileiro dedicada a estimular pesquisas acadêmicas relacionadas ao liberalismo e editar pequenas publicações que transformem essas pesquisas em livros. A iniciativa, que merece todo o nosso apoio, já lançou três títulos. Pude apreciar um deles, Ação Humana e Teoria do Conhecimento – Uma leitura kantiana de Von Mises, de João Martins Timóteo da Costa, que exemplifica a densidade do conteúdo dos trabalhos que o instituto faz virem à luz.

João Martins é fundador e diretor do Escanfadristas, além de licenciado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. A iniciativa do livro surgiu quando, lendo A Ciência Econômica e o Método Austríaco de Hans-Hermann Hoppe, chamou-lhe a atenção, entre 2019 e 2020, a alusão do ilustre autor anarcocapitalista a uma conexão entre a filosofia de Immanuel Kant, marco absoluto do pensamento moderno, e o economista austríaco do século XX  Ludwig von Mises, que fez escola entre muitos liberais e libertários. João já tinha uma afinidade prévia com o Kantismo, o que o fez perceber que, dada a densidade do conteúdo do filósofo prussiano, poderia ajudar os liberais a entenderem melhor as alusões hoppeanas a essa presença kantiana em Mises.

A pesquisa, que foi seu trabalho de conclusão de curso, como ele mesmo explica, “surge da constatação de que há uma possibilidade clara de demonstrar a importância do arcabouço epistemológico kantiano para o estudo da Economia”, especificamente “a partir da aproximação da filosofia de Kant à perspectiva singular de Ludwig von Mises sobre o escopo e a metodologia da ciência econômica”. Em outras palavras, o autor trabalha uma série de conexões entre a chamada Filosofia Crítica de Kant e a conhecida Praxeologia – ou “ciência da ação humana” – misesiana.

Seu objetivo, porém, como cumpre enfatizar, é “constituir um arcabouço interpretativo segundo o qual seja possível compreender Mises em termos de Kant”. Não se trata, como ele ressalta tanto ao começo quanto ao final do opúsculo, de “determinar a extensão da influência explícita ou implícita da obra de Immanuel Kant em Ludwig von Mises” – embora seja explícito e notório há bastante tempo que essa influência existe em algum grau, bem como que essa influência já existia nos economistas austríacos anteriores a Mises -, mas sim empreender “uma análise bibliográfica sobre a permissibilidade e as vantagens de uma interpretação coextensiva da obra dos dois autores”.

A Praxeologia (do grego “práxis”, ação, hábito, prática, e “logia”, doutrina, teoria, ciência) seria uma ciência destinada a estudar os princípios gerais da ação humana, enfrentando o historicismo alemão, o institucionalismo americano e o polilogismo tão típico do pensamento marxista, porque Mises julgava ser possível encontrar um “denominador comum”, um fundamento universal que acomodasse as pluralidades humanas sob um critério único passível de demonstração analítica. A ação humana, em distinção ao comportamento dos animais, foi vista por ele como algo “propositado”, “a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz” para “procurar alcançar fins e objetivos”. A Praxeologia não trataria de julgar o valor dos objetivos humanos, as origens psicológicas e/ou sociais desses objetivos, ou o que mais houver de plural nessa determinação – embora o reconhecimento dessa pluralidade seja um dos componentes mais importantes de sua postulação; assentaria a sua objetividade no reconhecimento do subjetivismo. Seria, além disso, uma apreciação embasada no “individualismo metodológico”, isto é, “lida com as ações individuais dos homens”, que, universalmente, se destinariam a substituir uma “situação menos satisfatória por uma mais satisfatória”. O que torna algo satisfatório, o que cada indivíduo prefere e deseja, Mises não tinha a pretensão de definir. O que ele estabeleceu como regra foi que, fosse o que fosse que desejassem, eles tentariam obter. O ser humano não buscaria jamais obter o contrário do que deseja, sair de uma situação em que esteja mais satisfeito para uma em que o estaria menos; todos os meios que movimentasse, tudo aquilo com o que e sobre o que “agisse”, tenderia a buscar um estado de coisas em que estivesse mais satisfeito do que estava antes.

Por sua vez, a teoria epistemológica kantiana englobava a noção de Conhecimento Transcendental, que seria “o tipo de conhecimento “que em geral se ocupa menos dos objetos que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori. Pretendendo superar as tradições rivais do Racionalismo e do Empirismo, que João apresenta como constituindo conjuntamente, em confronto com a visão de Kant, uma macro mentalidade que poderíamos chamar de “Realismo Transcendental”, Kant propunha que, na investigação de qualquer coisa, nunca apreendemos a “coisa-em-si”, mas uma representação dela à luz de estruturas apriorísticas indispensáveis que se organizam na mente humana, a saber: as estruturas da Estética Transcendental, “a partir das intuições puras do Espaço e do Tempo”, e das Categorias, “como as de substância e acidente ou de causa e efeito”. Esse sistema kantiano é chamado de Idealismo Transcendental, não se agarrando nem a uma perspectiva absolutamente racionalista nem absolutamente empirista.

Confrontando os dois sistemas, além da associação entre “o subjetivismo epistemológico de Kant e a teoria subjetiva do valor propagada pela tradição austríaca de Economia”, João sustenta que as Categorias de Entendimento propostas por Kant são similares ao que ele chama de Categorias de Ação na Praxeologia misesiana. A Praxeologia partiria da ideia da ação como o emprego racional de meios para atingir um determinado fim, qualquer que fosse, derivando dessa ação conceitos como valor, riqueza, troca, preço e custo. Mises proporia que “o que nós sabemos sobre as categorias fundamentais da ação – agir, economizar, preferir, a relação entre meios e fins, e qualquer outra coisa que, junto a estes, constitua o sistema da ação humana – não é derivado da experiência. Nós concebemos tudo isso internamente, assim como concebemos verdades lógicas e matemáticas, a priori, sem referência a qualquer experiência. Tampouco poderia a experiência levar qualquer um ao conhecimento destas coisas se ele não as compreendesse (partindo do que há) dentro de si mesmo”. A semelhança com as postulações do Idealismo Transcendental é evidente.

Adicionalmente, João defende que, “de uma perspectiva kantiana, o conhecimento está indissociavelmente relacionado à ideia de representação e (…) a representação não produz o objeto quanto à sua existência real. Representar é, portanto, uma ação humana, e, neste sentido, o fato de que Mises determine a ação como sendo a categoria fundamental da Epistemologia não é apenas bastante razoável, mas também bastante importante”.

Mais adiante, João ressalta a distinção que Mises fez entre o mundo dos fenômenos físicos, químicos e fisiológicos e o mundo do pensamento, do sentimento e do julgamento de valor – em suma, entre as questões dos domínios da natureza e as questões dos domínios da mente humana. Em consequência disso, ele demarcou um dualismo metodológico, negando às Ciências Naturais qualquer peso sobre a Praxeologia e a Economia. O autor relaciona essa concepção à percepção kantiana de que “a capacidade de dirigir-se a fins e até mesmo o fundamento da própria moralidade e, consequentemente, da aplicação da lei não fazem qualquer sentido se dissociados do princípio segundo o qual o homem se vê sujeito à liberdade em sentido transcendental”, porque “somos incapazes de fazer sentido de nossa experiência de objetos que nos são internos (em sentido transcendental) sem apelar necessariamente à ideia de liberdade”. À luz da análise que empreende, conclui que “a exigência misesiana de um dualismo metodológico é perfeitamente condizente com a distinção kantiana entre objetos tomados em sentido empírico e em sentido transcendental. A Praxeologia encontraria, portanto, um pilar intelectual em Kant, que sustentaria não só as Categorias de Ação, mas também a exigência do dualismo metodológico”. Por outro lado, “a descoberta de uma regularidade na sequência e interdependência dos fenômenos do mercado” pela Praxeologia ofereceria contribuição enriquecedora à teoria kantiana.

No restante do opúsculo, João analisa o desdobramento do pensamento misesiano nas situações concretas descritas pelas Ciências Sociais, com destaque para o esforço por evidenciar que a visão de Mises baseada nas Categorias de Ação praxeológicas seria mais próxima, comparativamente, das teorias de Kant do que a teoria dos “tipos ideais” de Max Weber, não obstante este também fosse kantiano. Por fim, aprecia brevemente elaborações críticas a uma leitura kantiana de Mises, como a que pretende fazer em seu trabalho, para defender a solidez de sua própria proposta.

A Epistemologia não está entre minhas ocupações vulgares e a filosofia kantiana exibe grande densidade conceitual que oferece certo desafio a quem não está constantemente “treinado” em seus exercícios intelectuais. As breves páginas desta obra de João Martins, claramente versado no campo, apresentam essa característica, mas, por isso mesmo, podem ser um estimulante intelectual poderoso para os interessados em abordagens mais complexas quanto aos autores que mais nos são caros.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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