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A nostálgica e inconstitucional ideia de civilização

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Dentre as inúmeras expressões geniais que são nostalgicamente repetidas em nosso cotidiano, principalmente por nossos avós – cuja sabedoria supera em muito a de qualquer ministro do Supremo Tribunal Federal –, uma das que mais me encanta é a de que “o diabo está nos detalhes”.

Quando li o artigo A Nostálgica Ideia de Intervenção Militar ‘(in)Constitucional’, tive a impressão de subir de elevador para casa – o movimento desinteressado e carente de contemplações, destituído de interesse por si próprio e voltado unicamente para o fim para o qual fora feito: chegar a algum lugar ao qual se objetivava chegar. A argumentação fora aparentemente correta e dotada dos mais repetitivos argumentos adequados, a conclusão fora acertada e óbvia: de fato, ditaduras não resolvem nada.

Contudo, sou um amante das caminhadas e não consigo me movimentar, mesmo que por meio de elevadores ou através de textos, sem apreciar a paisagem e seus detalhes. E foi flanando pelo referido texto que tropecei na contundente afirmativa de que “a nostalgia é um sentimento fantasioso que se presta apenas para inspirar sentimentos poéticos, nada mais”.

Deste tropeço, vim a cair numa toca de coelho; e foi escorregando infinitamente pelas consequências lógicas do desdém do Sr. Botelho pela nostalgia e pela fantasia, também pela poesia, que cheguei num país bem diverso daquele cujas maravilhas exalta o autor.

O certo sempre será óbvio; isso não quer dizer que fácil de se atingir; mas o óbvio pode ser óbvio ou somente parecer óbvio. Uma mentira repetida mil vezes se torna óbvia, e, portanto, aparentemente certa, mas ainda se tratará de uma mentira.

De fato, ditaduras são terríveis. O império do poder desmedido e ilegítimo sempre será opressivo, pois contrário ao que torna o homem homem: a fantasiosa, nostálgica e poética ideia de que há espaço para que todos exerçam sua liberdade.

Uma ideia sem aplicabilidade prática, de fato. Para que ser humano e civilizado se os chimpanzés sobrevivem até hoje em seu tribalismo rudimentar? Quando o primeiro primata olhou para seus primos e os julgou; quando o primeiro primata julgou seus primos e se diferenciou; quando o primeiro primata julgou e se diferenciou, e se esgueirou para uma caverna, não para fugir dos perigos externos, mas para fugir do pragmatismo que impera na natureza e torna seus primos seus possíveis inimigos; quando ele chamou a caverna de casa e suas crias de filhos; foi nesse momento que esse primata se tornou humano. O que torna um mero primata especialmente humano é sua capacidade de nostalgicamente fantasiar a poesia que existe na vida como algo tão real quanto o que é meramente pragmático.

A ideia de civilização é fantasiosa, pois advinda da poética ideia de que todo ser humano é um valor em si e, mesmo assim, ainda pode escolher por conviver com outros seres humanos; ideia essa retirada da experiência comum, do que vivemos até hoje – pois, apesar de tudo, ainda não nos extinguimos e, ainda assim, somos felizes. É invocando a nostalgia que aprendemos a respeitar as decisões corretas dos nossos antepassados, corrigindo os erros que, no entanto, eles não conseguiram corrigir.

É assim que nossos avós definem progresso; pois eles têm valor também e merecem ser escutados; mas principalmente, eles têm valor enquanto vivos e terão ainda valor depois que morrerem, pois esse valor não depende da vida a se viver, mas da vida já vivida.

No entanto, um adolescente definiria progresso como o abandono da nostalgia e, como todo adolescente, enfrentaria a vida como se todo problema fosse um novo problema, usando as mesmas supostas soluções que nunca resolveram problema algum, abandonando o aprendizado do passado por ser meramente nostálgico. Algo muito parecido com o Brasil e suas sete constituições, três ditaduras e o discurso monotônico de que democracia salva.

É desse jeito que o adolescente olha para as três ditaduras militares e acredita que a solução recai sempre na constituição mais nova e no quão democrática ela se auto conclama e entrega o poder desmedido para instituições que também se auto conclamam democráticas, mudando esteticamente a ditadura violenta para uma ditadura suave e educada, longa e sutil, que, diferentemente da bruta e brusca ditadura militar, não morre jamais – aos moldes de Orwell.

No entanto, o jovem esquece que violência não cria poder, ela só destrói – como bem disse Hannah Arendt. Ele esquece que é a ameaça de violência que mantém o poder e esquece que a própria definição de Estado é a ameaça de violência legitimada e, portanto, limitada – pelo povo. Esquece, no entanto, que o Estado é formado de três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, e que todos eles agem por meio da ameaça de violência.

O erro do Sr. Botelho em seu artigo foi acreditar que só o mais óbvio dentre os três poderes – por ter mais potência para a prática da violência – é o que pode incidir numa ditadura. Isso vem da incapacidade de olhar para o passado com ternura. O ponto em que o Sr. Botelho erra é em ter medo das ditaduras do passado, sem fantasiar, no entanto, que pode ele mesmo estar vivendo uma ditadura no presente.

Todos os três poderes podem construir um governo totalitário. Todos os três poderes podem extrapolar os seus limites, cada um a seu modo, e se tornarem obstáculos ao exercício da humanidade. Há formas de se fazer isso harmonicamente, como fora feito nos governos Lula e Dilma, em que o pacto totalitário fora baseado no conluio mútuo entre todos os três poderes; há como se fazer de forma mais arriscada, e é aí que aparece toda a questão.
Só o Poder Executivo pode tomar o poder e iniciar um governo totalitário de forma brusca e sem negociatas, exatamente por ser o detentor dos tanques. Só o Poder Executivo consegue escancarar a triste realidade da liberdade: a de que ela é sensível e precisa ser vigiada constantemente.

Porém, toda mensagem violenta é sempre simbólica. É quando sabemos que perdemos algo que notamos o quanto aquilo era importante. É essa a benção e a maldição do Poder Executivo, o peso de ser paquidérmico; de nunca ser sutil, de ser sempre estabanado. Cada atitude despótica do Poder Executivo é ao mesmo tempo tendente a eliminar a liberdade dos indivíduos e tendente a aflorá-las; afinal, quanto mais claramente tirânico é um governo, mais próximo de cair pelas mãos do povo ele estará.

No entanto, os outros dois poderes não compartilham da mesma indelicadeza do Poder Executivo. Dotados da falsa promessa de representação popular e da mentirosa escusa do conhecimento sobre o Direito, tanto o Poder Judiciário quanto o Poder Legislativo são potenciais ditadores silenciosos; rastejam para o despotismo sem que notemos, e lá permanecem sem que protestemos.

Pior ainda que isso: enquanto o Poder Executivo não tem o poder do discurso para si, ambos os outros dois poderes têm a infeliz capacidade de dar aparência de legalidade, civilidade e intelectualidade para atos ilícitos, bárbaros e toscos; transformando déspotas em justos, bandidos em heróis e ignorantes em intelectuais; refinando atos tirânicos e transformando-os em fundamentados pelo necessário progresso. Ou seja, mesmo uma ditadura militar pode se tornar legal e requintada, constitucional e polida, se houver a ratificação dos papagaios do Congresso e a anuência das hienas da Suprema Corte.

O problema é, contudo, que a ditadura dos dois poderes mais educados engana o povo; principalmente o moderno, sedento pela aparência de sofisticação e intelectualidade. E é o povo, sempre o povo, que é o responsável por destruir ou por apoiar ditaduras.

O que vem ocorrendo no Brasil, desde a primeira de todas as ditaduras militares em 1889, o primeiro dos grandes erros, é que desde então todas as ditaduras surgem como uma forma de superar a ditadura anterior; e o povo permanece calado, esperando, dia após dia, pelo dia em que os tiranos lhe entregarão algum poder. Cada tomada de poder, seja pelos tiranos, seja pelos oligarcas, nunca é democrática.

O curioso é que o Sr. Botelho menciona o genial Sir Winston Churchill para sustentar seus anseios por democracia, mas não menciona que foi o próprio Buldogue Inglês que culpara as tendências aristocráticas e efeminadas dos líderes mundiais, bem como a imposição de uma democracia deslocada e forçada no pós Primeira Guerra Mundial, pela ascensão da ditadura militarizada nazista.

Da mesma forma que a Segunda Guerra Mundial fora chamada por Churchill de “A Guerra Desnecessária”, uma vindoura ditadura militar poderia muito justamente ser chamada de “A Ditadura Desnecessária”.

Enquanto nossos ditos intelectuais – principalmente os ditos advogados – fecham os olhos para os pungentes desmandos da nossa Corte Suprema e as habituais negociatas de nossos parlamentares, apoiando os desmandos que sejam benéficos para suas ideologias ou para seus clientes, se calando diante das provocações dos poderes mais educados feitas ao poder que detêm os canhões, crescem no seio deste poder tão bruto sentimentos humanos de revolta com que dificilmente conseguiremos lidar caso cheguem às consequências mais drásticas.

Apesar da quase inevitável vontade de provocar o cachorro que está preso, é preferível que não o façamos, já que, caso este venha a se soltar, o bom senso atribui a culpa a nós, não ao cachorro. Após o vexame dado entre 1964 e 1985, é a primeira vez em que o Exército Brasileiro aparenta estar preso por uma coleira; coleira essa sempre – sempre – frágil.

Questionar a constitucionalidade de um golpe militar ao mesmo tempo em que se repudia a fantasia, a nostalgia e a poesia é ridículo sob todos os aspectos. Afinal, o que torna a toga do désposta-ministro Celso de Mello algo respeitável é simplesmente fantasia, poesia e nostalgia – respeito pela tradição de instituições que já não são há tempos respeitáveis. No entanto, sob a mira de um fuzil, togas não fazem daqueles que as vestem super-heróis.

Enquanto a ditadura dos educados demanda educação, a ditadura dos brutos só demanda armas; enquanto o poder dos educados é só ameaça, o poder do brutos é ameaça e capacidade de violência. A mania de se esconder atrás da Constituição – tão operada por nossos atuais déspostas, enternados ou togados – é simplesmente a covarde atitude de tentar manter a ditadura atual, tirânica, porém confortável e aristocrática. Quando todas as bases sentimentais e fantásticas que erigiram a nossa civilização estão sob ruínas, a única forma sensata de combater a tirania é reafirmando esse sentimento fantástico, anterior a qualquer Constituição, que se reveste da mais completa infiltração de sentimentos na racionalidade, e de racionalidade nos sentimentos: o bom senso.

Só o bom senso consegue apontar que a maioria das decisões estritamente constitucionais que o Supremo Tribunal Federal vem exarando são absurdas; só o bom senso consegue alarmar que quase todas as leis que vêm sendo democraticamente criadas pelo Congresso são imbecis. Só o bom senso consegue alertar que progresso não é desculpa para tirania, nem mesmo para burrice.

Quando não por meio do bom senso, a verdade é que o único outro caminho possível que nos resta é o aprendizado por meio da dor. Assim, lamentavelmente, se a única forma de o povo passar a dar valor às suas fantásticas liberdades, tão intrinsecamente ligadas à poesia de suas existências, é com a ascensão de um governo tirânico de punho firme, que assim o seja; pois assim será.

Não são os pedidos por ditadura militar que levam à chegada de uma, mas sim o apoio incondicional de uma ditadura politizada ou judicial que a torna inevitável, mas não menos repudiável. Que saibamos contestar a ditadura atual, educada, politizada e intelectual, para que sejamos homens livres por meio de ideias; ou, que, lamentavelmente, sejamos homens livres enfrentando a brutalidade crua diante de nós; mas que sejamos, como fantasiosamente nascemos e poeticamente fomos concebidos, livres.

*Igor Damous é advogado criminal.

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