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As velhas Fake News: o “matador de mendigos” e o inimigo da malta

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A temática das Fake News é uma das mais sensíveis da contemporaneidade. Não nego que o advento das redes sociais e seus algoritmos acrescente algumas cores novas ao velho problema da difusão da mentira pelos diferentes meios de comunicação – ainda que, na mesma proporção, a Internet torne mais fácil o acesso a fontes e discursos alternativos a quem o deseje. Porém, vejo sempre com preocupação a maneira por que o tema é explorado, principalmente por líderes de esquerda, notórios por sua mania descontrolada de regulamentação.

Não se pode permitir que a preocupação com a divulgação de engodos, quer por veículos tradicionais, quer por páginas de nicho, se transforme em combustível para os censores de plantão. Uma das formas de evitar que isso ocorra é realçar o diagnóstico de que há exagero em enxergar no que ora se discute uma absoluta novidade.

Nos últimos dias, deparei-me com uma página no Facebook, supostamente mantida por historiadores, intitulada Iconografia da História. Na manchete do link publicado pela página, lia-se: “Carlos Lacerda: o governador que matava mendigos”. Dizia a publicação: “É perigoso apoiar medidas que visam à ‘limpeza das cidades’. Na História, temos vários casos que não deram certo”.

Pontuei para os donos da página que o que faziam era, isto sim, uma iconografia da mentira. Trata-se de uma publicação própria de canalhas e falsários, sem caráter, reciclando uma manipulação que data dos anos 60 e já está mais do que desmentida. O alvo? Para nenhuma surpresa, o maior ícone do anticomunismo brasileiro, o governador do então estado da Guanabara, Carlos Lacerda, líder da antivarguista União Democrática Nacional. Pela provocação malcriada, fui “bloqueado” pelos administradores da página.

Aos fatos, conforme reunidos pelo biógrafo de Lacerda, John Dulles, em seu clássico Carlos Lacerda – A Vida de um Lutador: em dezembro de 1962, descobriram-se, na região em que o rio Guandu desemboca na baía de Sepetiba, doze cadáveres. O jornal Última Hora de pronto se pôs a acusar o governador Carlos Lacerda de estar comandando, com métodos nazistas – porque fascistas e nazistas no Brasil são sempre os anticomunistas, os liberais, os conservadores, nunca a esquerda e  os desenvolvimentistas -, o extermínio de mendigos (não serei politicamente correto em me obrigar a substituir a expressão usada na época por “moradores de rua”, se até a oposição a Lacerda se expressava nesses termos; qual é o problema?). Existia, de fato, um Serviço de Repressão à Mendicância (SEM), mas cuja tarefa, julgue-se o que se queira hoje, era pagar passagens aos mendigos para que retornassem às suas cidades de origem.

Na noite de 17 para 18 de janeiro, José Mota, subchefe do SRM, e quatro funcionários levaram seis mendigos a uma ponte e os jogaram no rio da Guarda, próximo ao Guandu, após roubarem os poucos recursos de que dispunham – uma barbárie, sem dúvida, como tantas a que assistimos ainda nos dias de hoje. Um dos mendigos, porém, sobreviveu, escapou e relatou os fatos à Última Hora.

A alegação de Mota à polícia foi de que, tendo recebido a ordem quinzenal de deportação de mendigos insanos, resolveu, em combinação com seus cúmplices, assassiná-los. Lacerda imediatamente mandou – mesmo infringindo com isso, por excesso de zelo, o estatuto do funcionalismo do estado da Guanabara – demiti-los sumariamente, junto com o chefe do SRM, Alcino Pinto Nunes, que, no entanto, havia sido inocentado pelos subordinados.

A oposição instaurou uma CPI na Assembleia Legislativa estadual em 1963 e tentou responsabilizar Lacerda pelos homicídios. Todo tipo de exploração midiática, como uma tentativa de “pintar” Lacerda como um psicopata, com a ajuda de um “psiquiatra amador”, foi empregada. Eis o que diz Dulles:

“Falando pela televisão, Lacerda exibiu uma fotografia tirada em dezembro de 1962, na qual Juscelino Kubitschek aparecia ladeado pelo chefe do SRM Alcino Pinto Nunes e o assassino confesso José Mota, e disse: Os policiais que matam mendigos não são meus; eu os herdei’.”

Eram funcionários, portanto, anteriores à formalização do estado da Guanabara, recebidos como herança pelos critérios políticos de admissão de funcionários do governo federal; José Mota havia trabalhado no gabinete do presidente Juscelino Kubitschek, então inimigo político de Lacerda, e o chefe do SRM havia pertencido à guarda pessoal de Getúlio Vargas e tinha sido motorista da esposa de Gregório Fortunato, braço direito armado do ditador que ordenou o assassinato de Lacerda em 1954. O próprio Alcino confirmou a afirmação de Lacerda. Outros jornais, como O Globo, também criticaram as caracterizações de Lacerda como mentor de assassinatos, sem qualquer comprovação ou razoabilidade. O governo instaurou um inquérito sobre o assunto rapidamente e nada de sério foi provado contra Carlos Lacerda.

Não obstante, até hoje ele é acusado de ser “matador de mendigos” pelos sucessores de Samuel Wainer e seus acólitos da Última Hora, bem como sua Secretária de Serviços Sociais, a professora Sandra Cavalcanti – que tenho o privilégio de conhecer e escreveu um dos textos de orelha de meu livro Lacerda: A Virtude da Polêmica -, ainda entre nós, recebe tratamento similar devido à remoção de algumas favelas, sempre com amplo esforço de persuasão e interação com os moradores, inclusive levando-os para conhecer as novas instalações oferecidas.

Mais antiga do que essa história, embora não tão alardeada, é a Fake News eleitoral contra o brigadeiro Eduardo Gomes em 1945. Sobre isso, repito o que publiquei em fevereiro de 2018, ilustrando artigo em que denunciava que um nefasto veículo pseudojornalístico de extrema esquerda havia distorcido criminosamente declarações do engenheiro João Amoêdo, então candidato à presidência pelo Partido Novo:

“Em fins de 1945, o brigadeiro Eduardo Gomes, representando a UDN, os tenentistas traídos e as principais forças políticas que se opunham ao Estado Novo, disputaria a eleição contra o general Eurico Gaspar Dutra. Em gesto de equívoco político, Gomes teria dito em 19 de novembro que não precisava dos votos “desta malta de desocupados que apoia o ditador” para se eleger presidente.

O getulista e petebista Hugo Borghi ouviu o discurso e descobriu que a palavra “malta” tinha duas acepções: podia tanto significar “bando” quanto ser sinônimo de “marmiteiros”, trabalhadores que percorriam as linhas férreas carregando suas marmitas. Obviamente Eduardo Gomes se referia ao primeiro significado. Mas pronto: Borghi foi à imprensa bradar que o brigadeiro desprezava os marmiteiros, os populares, os menos favorecidos trabalhadores. Foi a pá de cal, junto com toda a estrutura estadonovista, para a derrota de Eduardo Gomes.”

Eis, portanto, as provas de que mentiras para prejudicar adversários políticos existem desde há muito tempo. As Fake News de hoje não podem ser usadas como pretexto para constranger a liberdade de circulação de conteúdo e informação. Houvesse Internet e talvez as rádios varguistas não pudessem estabelecer sua mentira vil como o fizeram nos anos 40. Talvez a pecha de “matador de mendigos” para Carlos Lacerda não pudesse sobreviver tanto tempo. Ao fim e ao cabo, as armas da liberdade são mais nobres e produtivas e têm efeito mais duradouro que as armas da censura.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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