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A Grécia como berço do ideal democrático liberal (Parte III)

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Aristóteles: justiça, lei e prudência

A cidade (polis), segundo Aristóteles, é a forma da comunidade humana na qual o homem pode florescer e realizar todas as suas virtudes, mais especificamente a virtude mais excelente: a justiça. A polis não é uma formação artificial, mas uma construção natural, espontânea; viver em comunidade é um atributo essencial do homem. Mas o homem não é um animal gregário como outros animais que vivem em sociedade; ele é um animal político. A sua peculiaridade é o logos, a capacidade racional, discursiva, deliberativa que faz com que a comunidade humana se constitua não apenas como garantia da sobrevivência, mas também como um espaço de realização da justiça.

Em uma comunidade natural ou sociedade primitiva há diferenças e desigualdades. A diversidade é natural e é benéfica para a prosperidade, mas há algumas desigualdades que equivalem a injustiças e que podem e devem ser mitigadas pelo homem. Quer se trate da justiça distributiva (cada um recebe do bem comum uma parte igual) ou da justiça comutativa (as coisas trocadas devem ter o mesmo valor), a justiça é, para Aristóteles, uma forma de equidade. Essa forma superior de justiça só pode ser realizada no interior da polis, por intermédio da lei, que deverá submeter todos igualmente (isonomia).

Ao distinguir o uso teórico e o uso prático da razão, Aristóteles troca a contemplação platônica da ideia de bem pela pergunta acerca do bem possível de ser atingível pela ação humana. A justiça também é pensada nessa esfera prática, sendo ressaltada na definição dada por Aristóteles como uma de suas principais marcas o fato de concernir ao bem alheio.

Em um sentido amplo, Aristóteles identifica a justiça com a obediência ao nomos, isto é, o conjunto de normas sociais. Esse termo, porém, é empregado pelo filósofo com certa ambiguidade, significando não apenas as leis, mas também os costumes, as formas da vida de dada sociedade. Em relação a essa moralidade social, Aristóteles nem a despreza nem a aceita acriticamente, mas busca nela o que há de verdadeiro e bom, levando em consideração que o êxito de uma legislação depende, em boa medida, de sua conformidade aos usos e costumes da sociedade no interior da qual ela é elaborada.

Na acepção mais estrita, como vimos, nomos corresponde às normas de direito positivo. Em relação a elas, tem-se que são boas as leis que promovem o bem comum e orientam as ações no sentido da virtude, desencorajando o vício. Orientar, porém, não equivale a obrigar, pois, para Aristóteles, um dos requisitos do ato virtuoso é a escolha livre da virtude por ela mesma, independente de coação ou interesses.

Os produtos da arte legislativa são considerados justos, pois, por definição, as leis visam ao bem comum. Sabe-se, porém, que nem todos os legisladores dominam a arte de legislar com perfeição e que há constituições retas e corrompidas. Mesmo assim, é preferível que uma sociedade seja regida por leis imperfeitas do que largada ao caos da ausência de lei, o que configuraria o fim da comunidade política.

Vê-se que Aristóteles confere grande importância à lei como critério de justiça, embora mantenha a ressalva de que leis podem ser mal formuladas ou servir a fins injustos. Sendo expressa em termos gerais e abstratos, a lei tende a preservar um princípio racional que guarda alguma distância das paixões e dos interesses particulares suscitados em cada situação concreta. Embora o homem prudente permaneça como critério último de correção moral, é forçoso notar que são poucos os homens prudentes no sentido idealizado por Aristóteles. Daí a importância da lei, que obriga o legislador a refletir também em abstrato, já que nem todo homem é capaz de discernir com prudência o que é melhor em cada situação concreta.

A boa ordenação política de uma sociedade, porém, não se constrói apenas considerando o lado dos governantes. É preciso levar em conta também a comunidade destinatária das normas. Em qualquer sociedade haverá aqueles que, tendo cultivado bons hábitos, tenderão naturalmente a fazer o que é certo, submetendo-se às leis justas, e aqueles que, não os tendo cultivado, encaminhar-se-ão naturalmente para o vício, caso não haja sanção rigorosa que os coloque no reto caminho. As leis, são feitas, portanto, para serem obedecidas, seja por inclinação, seja por medo da punição.

Os dispositivos legais podem ser avaliados segundo o critério de adequação à concepção de justiça presente em uma dada constituição ou segundo a adequação a um critério básico de justiça ao qual a própria constituição deve estar submetida. Aristóteles sustenta, portanto, uma dimensão natural dos padrões de justiça, ancorada na noção de bem comum e naquilo que é bom para o homem conforme a sua natureza. Existe, pois, uma dicotomia natural-legal no interior da justiça política:

“Da justiça política, parte é natural, parte legal – é natural aquilo que tem em todo lugar a mesma força e não existe em razão de as pessoas pensarem isso ou aquilo; legal, aquilo que é originalmente indiferente, mas, uma vez que tenha sido estabelecido, não é indiferente.”[1]

Ao dar exemplos de normas gerais ou decretos considerados como justo legal, Aristóteles procura esclarecer que não há nada legalmente justo ou injusto antes que a norma tenho sido convencionada. A força normativa do justo legal é sancionada, portanto, pela autoridade, ao contrário do justo natural, cuja força normativa é revestida de caráter moral, independentemente de ser sancionada ou não por uma autoridade política. Não se trata de pôr em questão a necessidade da existência de algumas normas cujo fundamento reside na própria autoridade reconhecida como detentora de tal poder, mas de apontar também para a existência de um justo natural que, em alguns casos, deve ser apresentado como padrão.

O justo natural, porém, não é concebido como algo imutável ou absoluto. Para Aristóteles, embora tudo possa mudar, ainda assim há algo justo por natureza,[2] o que equivale a dizer que o justo natural dependerá das circunstâncias e deverá ser avaliado caso a caso. Se, por um lado, não há no direito natural regras abstratas a serem deduzidas a priori, há, por outro lado, uma base ou critério fornecido pelo justo natural que é independente da relatividade da opinião ou da autoridade constituída.

Existem, em suma, o justo natural e o justo legal, devendo este ser estatuído com vistas àquele: o justo legal deve consistir em uma especificação do justo natural através da deliberação do legislador, o que nem sempre ocorre de maneira adequada.

Embora haja situações nas quais o justo e o injusto só podem ser determinados a partir da avaliação do caso concreto, há também algumas ações que, por natureza, são sempre injustas e outras que, no mais das vezes, são justas. As leis devem ser justas e orientar a conduta na direção daquilo que se concebe como justiça. Não basta, porém, apenas a concepção de leis justas; é preciso que se fixe na sociedade o hábito de obedecê-las. De acordo com o exposto, evidencia-se a importância da prudência (phrónesis) ou, mais especificamente ainda, do homem prudente para a avaliação daquilo que é justo em cada caso particular.

A ética é classificada por Aristóteles como uma ciência prática, motivo pelo qual não se deve buscar nela a mesma precisão que se busca nas ciências teóricas. As ciências práticas lidam com a ação humana, esfera essencialmente sujeita à mudança e à indeterminação; abordá-las com a racionalidade do físico ou do matemático equivaleria a distorcer a essência de seus fenômenos mais relevantes.

A ciência prática preocupa-se com o homem enquanto ser autoconsciente e enquanto fonte de ação. A finalidade da ciência prática não é exatamente um conhecimento, mas o aprimoramento da ação. Diferentemente da ciência teórica, que é demonstrativa e se dá por análise dos princípios ou causas, a ciência prática é deliberativa e pressupõe uma certa capacidade de lidar com a contingência, pesar razões rivais, além de moderar e dirigir emoções a fim de agir com acerto. A phrónesis (sabedoria prática ou prudência) é essa capacidade.

Aristóteles segue, no essencial, a ética socrático-platônica, no sentido de aderir à doutrina que aponta a racionalidade como sendo a parte mais excelente da alma e a via boa como aquela conduzida segundo os preceitos dessa parte mais excelente. Há, porém, uma diferença importante em relação a Platão no que concerne ao bem a ser buscado: não se trata, em Aristóteles, de ascender dialeticamente ou asceticamente até a ideia de Bem transcendente, até o Bem em sim, mas se trata de inquirir acerca do bem imanente e realizável pelo homem.

A phrónesis não determina os fins a serem atingidos pelo homem (estes são postos pela virtude ética que encaminha o querer da forma correta), mas ela aponta os meios idôneos para que o indivíduo alcance o fim almejado pela reta razão. Isso mostra que a phrónesis não pode ser considerada uma mera razão instrumental utilizada para escolher os melhores meios independentemente do fim. Pelo contrário, ela é o saber que possibilita a eficácia da intenção moral. É por isso que Aristóteles afirma que não é possível ser virtuoso sem ter prudência nem ser prudente sem ser virtuoso. É que a phronesis não é uma virtude qualquer, localizada, situada; ela é a condição necessária (mas não suficiente) de todas as virtudes éticas, sendo também aquilo que, de certa forma, as unifica[3]. Na ética aristotélica, trata-se menos de destacar dentre as virtudes cardeais uma que seria a mais excelente do que apresentar a phronesis como a condição de efetivá-las.  

O maior bem, aquilo que todo ser humano busca é a felicidade, mas, considerando a constituição racional/espiritual do homem, tem-se que a autêntica felicidade pressupõe uma atividade da alma conforme a sua virtude. Embora a parte mais excelente da alma seja a razão, nela se encontram apetites, desejos, emoções que, muitas vezes, se opõem às diretrizes racionais. A virtude ética, segundo Aristóteles, dependerá da capacidade de domínio desses aspectos irracionais da alma; não no sentido de suprimi-los, mas de moderá-los a fim de alcançar o justo meio, a justa medida, a mediania ou a medida adequada entre dois excessos. Assim, a coragem será o meio termo entre a temeridade e o medo; a liberalidade o meio termo entre a prodigalidade e a avareza e assim por diante.

A virtude, portanto, depende da boa disposição da alma para observar esse meio termo, evitando, assim, os extremos viciosos. Mas o meio-termo adequado não é um algoritmo válido para qualquer situação in abstrato, ele varia de acordo com as circunstâncias e precisa ser avaliado em cada caso concreto. Reconhecendo a indeterminação dos acontecimentos, o homem mobiliza sua ampla experiência de vida, faz uso do conhecimento adquirido nas mais diversas circunstâncias e delibera, em função daquilo que é moralmente relevante, acerca dos melhores meios para atingir determinados fins. Não se pode reduzir essa capacidade deliberativa a uma mera astúcia ou esperteza porque ela está intimamente ligada à virtude, à ação moralmente boa. Embora seja uma virtude intelectual, a phrónesis não pode existir sem a virtude moral.

A phrónesis não é uma virtude ética, mas sim, juntamente com a sophia (sapiência), uma virtude dianoética (do grego diánoia, intelecto); ou seja, é uma virtude do intelecto ou da razão. Diferentemente da sophia, porém, que diz respeito ao conhecimento das realidades imutáveis e necessárias, que concerne ao conhecimento dos princípios e das verdades supremas, a phrónesis tem a ver com o conhecimento dos aspectos mutáveis da vida do homem; é uma sabedoria prática ligada à capacidade de bem deliberar dentro de um contexto contingente e circunstancial.

A deliberação é um cálculo acerca das circunstâncias e está sempre às voltas com a indeterminação, evidenciando a liberdade inerente ao homem, instado sempre a agir com intencionalidade e responsabilidade no mundo, mesmo em um contexto sobre o qual não há domínio absoluto, devido a imprevisibilidade das coisas, mas sob o qual se tem influência e poder de ação.

O horizonte daquilo sobre o que se pode deliberar, portanto, é restrito. Delibera-se sobre aquilo que depende de nós e não sobre todas as coisas. Note-se também que deliberação por si mesma não se identifica com a phronesis, uma vez que a deliberação enquanto tal pode ser posta a serviço do mal e não do bem; pode direcionar o homem para o vício, não para a virtude, donde a necessidade de destacar um outro conceito que Aristóteles põe ao lado da prudência: a boa deliberação (eubolia).

A mera habilidade de encontrar o melhor meio para qualquer fim, seja ele bom ou mau é denominada por Aristóteles de sagacidade. A boa deliberação, ao contrário, é retidão de entendimento. O homem prudente, portanto, não pesará os prós e os contras de se agir virtuosamente, mas sim determinará o melhor curso de ação a ser seguido para atingir um fim bom. Fica claro, mais uma vez, que a phronesis não é apenas um raciocínio pragmático, mas a excelência do raciocínio prático, que é indissociável de um caráter virtuoso.

[1] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. V.7.1134b17-22

[2] “Isso [a mutabilidade do justo natural], porém, não é verdadeiro desse modo não qualificado, mas é verdadeiro em um certo sentido. Concede-se que, com os deuses, provavelmente não haja de modo algum mudança, enquanto que conosco há algo que é    justo por natureza e, ainda assim, tudo seja capaz de mudar. Apesar   disso, cabe a distinção entre o que é e o que não é por natureza”. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco.  V.7.1134b27-31)

[3] REALE 1. P.221

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Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".

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