A Grécia como berço do ideal democrático e liberal (Parte I)
Atenas é a última das grandes cidades gregas a aparecer na história, portanto, o Estado jurídico ático pressupõe um longo processo de evolução que esboçaremos sucintamente aqui, ressaltando os pontos mais relevantes para a tradição democrática, liberal e humanista que pretendemos expor e defender.
Justiça, lei e ordem
Embora A República de Platão e a Política de Aristóteles sejam comumente referidas como as primeiras grandes obras a teorizarem a política, é preciso considerar que a própria cidade grega clássica (a pólis, de onde provém o termo política) antecede esses escritos, que são, na verdade, reflexões tardias acerca da singular formação política grega, cujo processo se desenvolveu entre o fim da idade média grega até a época de Sócrates e dos sofistas.
Não se trata apenas de um desenvolvimento político, mas do desenvolvimento cultural e do refinamento espiritual grego, que tem no surgimento da polis e da política uma de suas etapas e de suas culminâncias. Esse processo de evolução confunde-se com a consolidação da justiça (díke) como o mais alto ideal a ser buscado, como a areté (virtude) por excelência.
Na obra Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age, Philippe Nemo divide didaticamente esse processo da formação política grega em três etapas: a primeira seria a legitimação das noções de justiça (themis, dikè) e ordem social (eunomia) por meio do aparecimento e da valorização de tais noções nas obras de Homero e Hesíodo; a segunda seria a tomada de consciência de que a justiça só pode ser garantida por intermédio de uma lei (nomos) igual para todos (isonomia) que deve ser escrita, e a terceira etapa seria a conscientização de que a própria lei pode ser tirânica e que, por isso, deve poder ser criticada, passando a possibilidade dessa crítica pela distinção entre natureza (physis) e convenção (nomos)[1].
A nova moral grega começa a se delinear na obra de Homero: “embora Homero ainda sustente o ideal de destreza guerreira como a mais alta medida de valor da personalidade humana, na Odisseia já se percebe uma elevada estima pelas virtudes espirituais[2]”. Nessa obra, já existe, por exemplo, a noção de que os julgamentos proferidos podem ser corrompidos, donde a importância de um senso de justiça, virtude atribuída ao personagem Ulysses.
Embora houvesse, na Grécia arcaica, uma administração da justiça, não havia leis públicas fixas, muito menos escritas. Esse antigo estado de coisas está descrito da obra de Homero, como bem nos explica Werner Jaegar na sua obra Paideia: a formação do homem grego, no capítulo intitulado “O estado jurídico e seu ideal de cidadão”. Enquanto themis é a justiça decretada por um Deus ou por um rei, díke é um veredito que se opõe à hybris (aquilo que é desregrado ou perverso):
“É com outro termo que se designa, em geral, o direito: thémis. Zeus dava aos reis homéricos “cetro e thémis. Thémis era o compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres senhores. Etimologicamente significa “lei.” Os cavaleiros dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei proveniente de Zeus, cujas normas criavam livremente, segundo a tradição do direito consuetudinário e o seu próprio saber. O conceito de díke não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto thémis.”[3]
No período da pólis, posterior aos tempos homéricos, esse significado técnico da díke será alargado, relacionando-se mais ao elemento normativo que se encontra no fundo daquelas antigas formas jurídicas:
“Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for prejudicado pela hýbris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária ao direito. Enquanto thémis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade, e à sua validade, díke significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra díke se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então o recebera apenas como thémis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à díke tornou-se de dia para dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.”[4]
Jaeger destaca ainda que, na acepção mais ampla, a palavra díke trazia consigo, na sua origem, o sentido de igualdade, e que foi na exigência de igualdade, implícita no conceito de díke, que se consolidou a medida justa para a atribuição do direito, dando início a uma evolução política que, por extensão sucessiva da ideia de igualdade, levaria à instauração da democracia:
“Esse matiz de igualdade na palavra díke mantém-se no pensamento grego através de todos os tempos. Depende dele a própria doutrina filosófica do Estado dos séculos seguintes, a qual trata apenas de conseguir uma nova elaboração do conceito de igualdade, que, na versão mecanizada em que subsistia no Estado jurídico democrático, opunha-se abruptamente à doutrina aristocrática de Platão e Aristóteles sobre a desigualdade dos homens.”[5]
A democracia enquanto governo do povo ou das massas não deriva necessariamente da exigência da igualdade de direitos e de leis escritas, mas o Estado de direito sim. O que hoje chamamos de Estado democrático de direito ou democracia liberal tem início, no Ocidente, com uma consciência jurídica na qual os ideais de liberdade e igualdade mesclam-se de um modo quase indiscernível. Essa vontade de justiça que está na origem da nossa formação cultural e política desenvolve-se na vida comunitária da pólis e “converte-se numa nova força formadora do homem, análoga ao ideal cavaleiresco do valor guerreiro nos primeiros estágios da cultura aristocrática[6]”. Esse novo ideal humano da pólis antiga é aceito pela filosofia do século IV a.C., sendo a antiga cidade-estado, segundo Jaeger, o primeiro estágio na caminhada do ideal humanista e a raiz da ética filosófica de Platão e Aristóteles.
Se a obra de Homero tergiversa entre uma moral arcaica e uma moral pré-cívica, a obra de Hesíodo surpreende – do ponto de vista da contraposição à moral aristocrática da Grécia arcaica e guerreira – ao expor, em Os trabalhos e os dias, uma grande valoração do trabalho, da paz e da justiça.
A justiça e o trabalho se complementam: Zeus, que condenou o homem ao trabalho, concedeu-lhe também a justiça para que trabalhe em paz[7], sendo o próprio trabalho indutor da justiça. Hesíodo afirma, na referida obra, que existem duas formas de luta: uma negativa, destrutiva, praticada pelos aristocratas, e outra positiva, que direciona a mesma força vital para o trabalho, sendo o motor de uma competição sadia e de uma concorrência fecunda; o trabalho, a produção e a emulação que a impulsionam seriam uma espécie de remédio para as querelas civis e as guerras[8]. A mensagem que brilha, portanto, nos versos de Hesíodo é a de que o reino do direito deve suplantar o reino da força e que a sociedade não deve se apoiar sobre a violência e a hýbris. Por mais que prevaleça o direito do mais forte, o ideal de um Estado de Direito se delineia:
“Vimos que foi a ideia do direito que deu ao ansioso pensamento do homem um ponto firme de apoio, naqueles tempos de violentas alterações da ordem social econômica, motivadas pelas tentativas de uma maior participação possível nos bens do mundo. Hesíodo foi o primeiro a apelar para a divina proteção da Díke, na sua luta contra a cobiça do irmão. Celebra-a como protetora da comunidade contra a maldição da hýbris e designa-lhe um lugar ao lado do trono do altíssimo Zeus.”[9]
O período que vai do reaparecimento da escrita até o estabelecimento da democracia em Atenas, sob Clístenes, convencionalmente chamado de Arcaico (750 – 500 a.C.), marca a consolidação da pólis e daquilo que muitas vezes foi chamado “milagre grego.” Essa evolução de Atenas começa, de certa forma, com o arconte Drácon. Isso porque, embora tenha editado leis severas (“draconianas”), tais leis foram supostamente estabelecidas no intuito de reestabelecer a ordem e pôr fim a um conflito social, refreando a vingança após um massacre relacionado a um golpe de Estado de Cilón. Para Jaeger, porém, as proverbiais leis draconianas significaram “mais uma consolidação das relações recebidas que um rompimento com a tradição[10]”. De todo modo, importa notar que essas leis foram escritas, tendo sido decidido que elas seriam aplicadas a todos indistintamente, o que representa um primeiro passo em direção ao ideal de isonomia.
Sólon, por sua vez, vai além de Drácon ao empreender uma codificação escrita das leis e abala o status vigente ao defender que nem a origem social nem as relações hereditárias definem os direitos. Embora os direitos ainda estejam relacionados à riqueza, a mudança não deixa de ser um progresso considerável.
Sólon foi um dos chamados “sete sábios” pela tradição. Esses sábios contribuíram vivamente para a organização da pólis e para a difusão de um pensamento laico e racional. Esses legisladores e pensadores políticos foram contemporâneos dos primeiros filósofos gregos, os chamados filósofos da physis. O próprio Thales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, foi também um desses sete sábios. Trata-se, portanto, de um momento singular de efervescência cultural e espiritual no qual se buscou apreender tanto as leis do universo quanto as leis sociais. A própria ideia de lei é a marca desse momento. O mundo não é caos, é cosmos, ou seja, ele é perpassado por uma racionalidade que o ordena, por uma lei que não é simplesmente a imposição de uma potência sagrada antropomórfica, mas é uma justiça racional:
“Sólon concebe claramente a ideia de uma legalidade intrínseca da vida social. Convém recordar que na Jônia Tales e Anaximandro, filósofos da natureza milesianos, ensaiavam por essa época as primeiras passadas na ousada senda do conhecimento de uma lei estável do devir eterno da natureza. Aqui como lá, trata-se do mesmo impulso para uma concepção intuitiva de uma ordem imanente no curso da natureza e da vida humana e, portanto, de um sentido e de uma norma interna da realidade.”[11]
Com as novas condições da vida social na polis, forma-se o cidadão como um novo tipo de homem, moldado a partir de uma moral mais refinada na qual o autodomínio, a moderação, a temperança, em uma palavra, a sophrosine passa a ser buscada como uma das principais virtudes. O ideal da justa medida se sobressai e, com ele, a evidência da necessidade da lei. A justiça (dikè) espelha uma lei comum superior que garante o acordo e harmonia entre as partes.
Sólon tem um papel fundamental na defesa desse novo ideal, aproximando dikè e sophrosyne e apresentando a obediência à lei como a atitude mais compatível com os seres racionais que somos. Já se pode falar aqui de uma ideia fundamental para o pensamento político ocidental, de um modo geral, e para o liberalismo, de modo particular: o aparecimento da lei como forma de estabelecer harmonia entre os homens não por imposição arbitrária, mas como forma legítima e consensualmente aceita de garantir a segurança e a prosperidade dos cidadãos. Aqui cabe a apresentação de uma interessante anedota destacada por Plutarco:
“Um amigo de Sólon […] vendo-o redigir as leis gargalhou e objetou que simples textos não podem nada contra as injustiças e a ambição dos cidadãos. ‘Esses textos são como teias de aranha: retêm os fracos e os pequenos que ficam presos nela, mas sob os pés dos ricos e poderosos elas se rompem’. Sólon respondeu a isso dizendo: os homens mantêm os contratos que nenhuma das duas partes têm interesse em violar e eu, de minha parte, adapto as leis aos cidadãos de modo a lhes fazer ver que é melhor praticar a justiça do que a ilegalidade”.[12]
Sólon pautou sua atuação político-legislativa pela crença na força transcendente da justiça. Embora as ideias relacionadas ao direito e à lei que ele propagava e defendia já prevalecessem na vida pública da Jônia, o entusiasmo poético com o qual ele as difundiu moldou para as gerações vindouras um novo tipo de homem, um novo ideal a ser buscado:
“Também Sólon fundamenta sua crença política na força de Díke, cuja imagem descreve com visível coloração hesiódica. […]Sólon não redescobriu as ideias de Hesíodo. Não precisava fazê-lo: limitou-se a desenvolvê-las. Também ele está convencido de que o direito tem um lugar insubstituível na ordem divina do mundo. Não se cansa de proclamar que é impossível passar por cima do direito, porque este acaba sempre por triunfar. Assim que a hýbris humana ultrapassa os seus limites, sobrevêm, cedo ou tarde, o castigo e a necessária compensação.”[13]
A ideia de lei traz consigo o ideal de igualdade, que se desenvolve progressivamente com Sólon, Clístenes e Péricles. Em Sólon a defesa da igualdade guarda o tom aristocrático: seu foco é igualdade diante da lei (isonomia) e não um igualitarismo radical (isomoiria). Ele sabe que a radical igualdade reclamada muitas vezes pelo povo só poderia ser obtida por meio de uma tirania, que transformaria os cidadãos em escravos. São as reformas políticas de Clístenes que democratizarão a igualdade para além da isonomia, ampliando a participação do demos nos processos decisórios da pólis, estabelecendo que todos os cidadãos poderiam participar igualmente das decisões e das nomeações políticas (seja por voto ou sorteio aleatório):
Com Clístenes, a pólis acaba se tornando um universo homogêneo, sem status hierárquicos, onde todos os cidadãos sucedem-se regularmente nos lugares de comando e obediência e pensam em si mesmos definitivamente como iguais em dignidade, juízes igualmente competentes de uma verdade racional e de uma lei que não expressa a vontade ou o privilégio de ninguém, mas são uma realidade objetiva que se impõe a todos[14].
Na época da Guerra do Peloponeso, Péricles retomará aspectos da democracia reformada por Clístenes e a luta contra o partido oligárquico, minoria que se apresentava como kaloi kagotoi (bela e boa) e que se contrapunha ao povo[15]. A fim de fortalecer o poder do demos, Péricles aprimora procedimentos políticos, criando, por exemplo, o misthós, retribuição pecuniária paga aos cidadãos atenienses mais pobres que exercessem funções públicas: é o esboço do nosso moderno aparelho de Estado[16].
Mesmo entre pensadores de pendor mais aristocrático, a noção de lei acaba ganhando aderência. Mas, junto à aceitação e defesa da lei, advém também alguns questionamentos: a lei tem caráter absoluto ou relativo? Ela está sempre em consonância com a justiça ou a justiça a transcende? O primeiro grande historiador grego, Heródoto, tendo desenvolvido suas pesquisas por muito tempo através de diversos países, verificou que os costumes e as leis que regem uma sociedade não têm a mesma fixidez e imutabilidade das leis naturais. Está posta, portanto, em Heródoto, a distinção entre physis e nomos que atingirá seu apogeu na segunda metade do século V com Protágoras e outros sofistas:
“Estava surgindo uma nova geração que começava a perceber que o nomos poderia ser uma tirania, uma série de costumes e convenções impostas aos homens que pode nem sempre querer conformar-se a ela. Após um “olhar circular” em todos os países conhecidos, pode-se preferir os costumes dos outros e ter dúvidas sobre a validade dos seus próprios costumes. O espírito crítico, mesmo revolucionário, é despertado por esta consciência decisiva, amplificada pelos sofistas.”[17]
(continua…)
[1] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. Paris : Quadrige/PUF, 1998. p.38
[2] ROCHAMONTE. C. Introdução à Filosofia política: democracia e liberalismo. São Paulo: Edições 70, 2022. p.21
[3] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p.134
[4] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.135
[5] Ibid. p.135
[6] Ibid. p.138
[7] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. p.51
[8] Ibid. p. 50-51
[9] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178
[10] Ibid. p.175
[11] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.180
[12] PLUTARCO. Vida de Sólon. Apud NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age. P. 79
[13] JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego.p.178
[14] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.84
[15] Idem.p.92
[16] Segundo Aristóteles (Constituição de Atenas), o Estado ateniense sob Péricles acabou apoiando com fundos públicos mais de 20.000 funcionários.
[17] NEMO, Philipe. Histoire des idée politiques dans l´Antiquité au Moyen Age p.103