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A Ditadura de Seda: sobre a liberdade na China

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No artigo introdutório intitulado A ameaça global da China aos direitos humanos, que acompanha o relatório de 2020 da ONG Human Rights Watch, recentemente divulgado, a China é pesadamente criticada por várias atitudes que demonstram seu autoritarismo e truculência em sua política tanto interna quanto externa.

Devido ao peso que esse país possui no mundo, reitero aqui as críticas que a HRW faz contra o governo chinês e levanto aqui uma reflexão liberal contra o problema que é a cultura da liberdade sacrificada por trocas econômicas.

Não é de hoje que organizações internacionais condenam retrocessos nas liberdades individuais mundo afora. Variando conforme o contexto histórico, a humanidade já enfrentou diversos cenários nos quais governos autocráticos (ou mesmo democracias persecutórias), seja por ideologias ou razões ideais, relativizaram os direitos civis e deixaram tragédias marcadas na história. Nesses enfrentamentos, algumas iniciativas oficiais exigiam prevenção e fiscalização nesses cenários de crise, buscando evitar o fim último da violação de direitos: a morte. O sucesso dessas medidas pode ser analisado caso a caso, mas não neste texto.

O que nos importa aqui é como a China, “mancheteada” pela imprensa como a mais nova defensora do livre-mercado em contraposição à América trumpista, pode ser a mais próxima sociedade distópica em relação à suspensão das liberdades civis – e o pior, com potencial de espalhar isso pelo mundo inteiro. 

O argumento é simples: a China tem a maior população do mundo. Com as reformas de Deng Xiaoping e a abertura econômica controlada do país, assistimos a uma grande transição econômica de uma sociedade populosa majoritariamente rural alcançando status de classe média em 40 anos, como mostram os índices mais recentes. A imagem clássica de uma criança operária nas fábricas da Nike ganhando centavos na sua hora de trabalho (e ainda existente) foi substituída pelos ganhos da globalização; um país que cresce em PIB porcentagens de dois dígitos e aumenta a renda per capta ao ponto do chinês médio já ganhar o mesmo que seu par no Brasil.

Nesse cenário de grande pujança econômica, a China aumentou cada vez mais sua participação no mundo (economicamente, diplomaticamente, militarmente, culturalmente…) e se tornou o grande destino da maioria das exportações, com magnitude que vários países dependem da economia chinesa para sustentar empregos e remessas de lucro. Com a mais recente iniciativa, a “Iniciativa Cinturão e Rota”, a China agora financia inúmeros governos de países em desenvolvimento e é uma instituição de crédito para países desenvolvidos. No fim das contas, a defesa do livre-mercado é natural para um país que quer cada vez mais estender seus interesses globalmente. Porém, isso gera consequências. 

Embasado no sucesso material do país e em conversas que teve com chineses na capital paulista, Luís Felipe Pondé em coluna recente para a Folha de São Paulo provoca o valor que nós, defensores de direitos civis, damos aos mesmos em oposição à estabilidade e bem-estar. Para um povo que conheceu por grande parte da sua história a fome, a guerra e a instabilidade, não fazia mal, mesmo sob a égide do autocrata personalista Xi Jinping, ter estabilidade ao sacrifício de certas liberdades.

Com base no conforto material recentemente alcançado, o governo chinês aumenta seu prestígio ao mesmo tempo em que aumenta a censura, a tortura e a morte de vários povos dentro do imenso país. A Human Rights Watch denuncia o “Estado orwelliano” que a China se tornou, auxiliado pelos avanços tecnológicos para eterna fiscalização. Xi Jinping se tornou o secretário do Partido Comunista Chinês mais poderoso desde Mao Tsé-Tung. Conseguiu vitórias importantes na política interna, ao conquistar a reeleição permanente e ao se inserir no culto à personalidade, reservado aos seus antecessores Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping. 

A censura do país é gigantesca, estendendo seus braços na internet e na mídia. Enquanto milhões saem da pobreza, o governo chinês aumenta sua força combatendo “separatistas” e “traidores”, como nos conflitos com os tibetanos e na Caxemira. A concentração dos muçulmanos na província de Xinjiang, sofrendo condições análogas à escravidão e ao genocídio, é o mais recente e assustador exemplo de onde a China chegou. Rompendo a comum crença de que o apogeu econômico iria destruir a própria ditadura, o governo chinês demonstra resiliência implacável, deixando cada vez mais as empresas de seu país subservientes aos contratos estatais e em levar a ideologia chinesa em frente. 

O maior problema é como a China ainda mantém grande apoio internacional e forte apelo na mídia, principalmente quando é necessário mostrar alguém que respeite a globalização e o mercado em contraponto a Donald Trump. Esquecem-se que por trás do mercado e da ascensão de milhões, outros milhões morrem, quando não centenas de milhões pagam em liberdades podadas todos os dias. As instituições que deveriam fiscalizar o país fazem vista grossa por receio de afastar seu maior mercado consumidor, quando não credor, enquanto a China estimula a cultura da tirania ao vetar resoluções do Conselho de Segurança da ONU, favorecendo ditaduras por todo o mundo. 

Ainda cabe falar sobre como a censura chinesa afeta universidades (que dependem de seus órgãos de fomento ou bolsas), empresas (que devem se posicionar numa agenda pró-China quando se trata de alcançar o mercado chinês) e a cultura (impossibilitando a crítica midiática ou a mera expressão contrária aos desmandos de Pequim, Hollywood sendo um forte exemplo).

Os tentáculos chineses em níveis de “livre-mercado” só mostram como a nossa diplomacia não exige contrapartida humanista da China ou como órgãos oficiais temem se posicionar contra o tigre asiático. Nem mesmo a Organização para Cooperação Islâmica, composta por 57 países, emitiu nota pela perseguição contra 13 milhões de islâmicos na já falada região de Xinjiang. Muitos deles, necessitados dos investimentos chineses.

Em resposta a Pondé (que não vi como nada mais que uma provocação saudável quanto ao porquê de termos nossos valores), é importante salientar porque defendemos a liberdade como valor principal nas nossas sociedades. Ser livre não é um fetiche aburguesado, mas apenas uma constatação básica de que a sociedade humana deve preservar a liberdade para que a violência ou a imposição não se tornem regra nos sistemas políticos. Ao se preservar a não intromissão de alguém para com outrem (liberdade negativa conceituada pelo filósofo Isaiah Berlin), defendemos que ninguém tenha o direito de ter sua vida dominada ou regulada por um órgão estranho, que se manifesta pela força. É a partir da liberdade que evitamos genocídios, defendemos a vida das pessoas e a possibilidade de elas decidirem o que fazer com as suas próprias vontades, obviamente, respeitando o outro. 

Quando a forma econômica começa a agir desrespeitando esses valores, é hora da sociedade civil, em suas últimas facetas, agir. O boicote, a exigência de cumprimento de certas regras globais de convivência, a defesa dos direitos humanos na sua manifestação civil são exemplos de vacinas contra o autoritarismo, que deve ser evitado a todo custo para manter uma sociedade livre e sem intervenções estranhas de pessoas e órgãos poderosos. É defendendo a liberdade como princípio que não acabamos com ditadura no fim. 

E claro, o mais importante: o alvo na tirania pode ser sempre você.

*Sobre o autor: Felippe Araújo é mestrando em História Política.

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