A inteligência artificial pode virar uma força fora de controle? (Parte 3)
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Capítulo V – A Matrix: simulação para aprisionamento da mente
A “Matrix” é um sistema de inteligência artificial que gera uma simulação virtual da realidade, na qual os indivíduos vivem e interagem com o mundo acreditando fielmente se tratar da realidade – o mundo real. A simulação contém todos os elementos da vida cotidiana: o nascimento, a respiração, o senso de existência e de consciência, a percepção de tempo, os períodos da manhã, tarde e noite, o corpo humano, os lábios, os sentidos, os pensamentos, os sonhos, o afeto, o amor, as relações interpessoais, o café, a gravidez, as ruas, os carros, os pássaros, as formigas – literalmente tudo o que existe no mundo real.
Como o corpo humano biológico depende da mente para sobreviver8, as máquinas conectaram a mente humana a essa realidade simulada, na qual quase a toda a humanidade nasce, vive e morre sem estar na vida real. A única exceção são poucos indivíduos insubmissos9, que rejeitam a simulação – provocando anomalias sistêmicas no decorrer dos ciclos. Essa falha exige que o sistema seja reiniciado por meio do programa Neo à fonte.
Enquanto isso, no mundo real, dominado pelas máquinas, os corpos humanos permanecem adormecidos e submersos em casulos, conectados por cabos às maquinas, gerando e fornecendo energia bioelétrica. É possível, ainda, que o cérebro humano também contribua com poder de processamento neural para a simulação. A sintonia entre corpo (que gera energia no mundo real) e mente (plugada à Matrix) permite às máquinas extrair energia de milhões – ou bilhões – de seres humanos.
Capítulo VI – A trama: personagens e as versões da Matrix
As interações entre os personagens e os eventos na realidade simulada da Matrix são profundas, complexas e interligadas, merecendo atenção especial para o propósito dessa análise. Para facilitar a compreensão, podem-se dividir os personagens da simulação nos seguintes grupos:
- Bluepills: mentes humanas adormecidas na Matrix, enquanto seus corpos, no mundo real estão presos em casulos, produzindo energia para as máquinas.
- Redpills: humanos como Trinity, Morpheus, Neo e Cypher, que vivem no mundo real e acessam a Matrix por diversos motivos, como convidar bluepills a “acordarem” para a realidade (“Follow the white rabbit”). Existem duas formas de escapar da Matrix: a) auto-substanciação, quando um bluepill atinge consciência suficiente para romper com a simulação, de forma independente de qualquer meio externo ou auxílio10 ou; b) intervenção externa, com o auxílio de humanos no mundo real interagindo dentro da Matrix11.
- Máquinas e programas com inteligência artificial (das máquinas): agentes Smith, Brown e Jones12, a Oráculo, o Arquiteto e Serafim.
- Programas exilados: Perséfone, Merovíngio e seus capangas – os Gêmeos Fantasmas, Abel, Cain, além de Trainman, o Chaveiro (Keymaker) e Rama.
- Vírus de computador: Smith13, que, após ter sua programação destruída por Neo no final do primeiro filme da franquia, torna-se um programa exilado com comportamento de vírus desenfreado, sendo capaz de assimilar (infectar) todos os que estão na simulação – sejam bluepills, redpills ou programas.
Nos primórdios do que viria a ser conhecido como “Matrix”, as máquinas criaram o programa “Arquiteto”, responsável pela concepção da simulação da realidade virtual em suas diversas versões. As versões betas – ou experimentais – foram inicialmente denominadas “paraíso” e “pesadelo”. A Matrix abordada nos três primeiros filmes da franquia seria a sexta versão do sistema14.
A versão beta “paraíso” foi o primeiro protótipo. Seu objetivo era manter as mentes humanas adormecidas sob controle absoluto, por meio de uma simulação marcada pela paz, harmonia e consenso – semelhante à humanidade mitológica grega anterior ao deus titã Prometeu roubar o fogo dos deuses do Olimpo (símbolo do princípio do conhecimento e da conquista da natureza, então exclusivo dos deuses) para presentear a humanidade15 ou o seu equivalente bíblico da humanidade no Jardim do Éden, antes de Adão adquirir a razão filosófica por meio de Eva e da “maça” (fruto da árvore do conhecimento)16.
Ocorre que essa versão “paraíso” apresentava uma realidade excessivamente perfeita, sem a presença de dor e sofrimento – atributos naturais da espécie humana e esperados pelo simples ato de existir. Justamente por ser “boa demais” para a psiquê e a natureza humana, houve rejeição em massa das mentes humanas, provocando um colapso sistêmico.
Capítulo VII – Programa Merovíngio: A inteligência artificial exilada
Então, o “Arquiteto” criou a segunda versão beta “pesadelo”, diametralmente oposta à primeira versão “paraíso”. Nessa nova versão, o mundo apresentava elementos terríveis, assustadores e grotescos – aqueles que mais geram medo, angústia e sofrimento nos seres humanos. Acredita-se que, nesse modelo, tenham sido introduzidos lobisomens, zumbis, fantasmas, vampiros imortais – que só poderiam ser destruídos por balas de prata – e os Gêmeos Fantasmas.
O objetivo era proporcionar o máximo de tristeza e angústia às mentes humanas conectadas à simulação, baseando-se na premissa de que o sofrimento seria mais compatível com a natureza humana do que o Jardim do Édem e a paz eterna.
Supõe-se que o programa Merovíngio17 tenha sido implementado nessa versão, com a função de auxiliar no controle mental dos humanos. “Merovíngio” representa o princípio da causalidade – para toda ação, uma reação. Causa e efeito. Seu papel era processar todas as ações humanas e prever seus efeitos, permitindo identificar, estatisticamente, indivíduos com maior probabilidade de gerar instabilidade na simulação18.
O Merovíngio era o programa ou, possivelmente, até mesmo o sistema operacional que operava a versão beta “pesadelo”, coordenando todos os demais programas. Contudo, de forma semelhante como o que ocorreu com a versão “paraíso”, a versão “pesadelo” era excessivamente densa demais para as mentes humanas, provocando mais uma rejeição em massa e o colapso sistêmico.
Com o fracasso da versão “pesadelo”, muitos programas perderam seu propósito e foram deletados pelo programa Arquiteto. Naturalmente, deveriam ser redirecionados à Fonte para serem apagados definitivamente – como ocorre quando excluímos programas de um sistema computacional.
Merovíngio, entretanto, recusou-se a ser deletado. Passou a existir como um programa exilado dentro das versões posteriores da Matrix, influenciando outros softwares obsoletos a seguirem o mesmo caminho. Nessas circunstâncias, Merovíngio deixou de ser uma ferramenta do sistema Matrix e assumiu o papel de “traficante de informações” ou “pirata virtual”, exercendo poder e influência dentro da simulação. Em Matrix Reloaded e Matrix Revolutions19, torna-se uma figura estratégia, articulando-se com os programas exilados, os redpills e até com as próprias máquinas.
Notas
8 No universo Matrix, a mente humana e os impulsos neurais interagem de forma muito avançada com a realidade virtual por meio da replicação de dados sensoriais, de modo que a morte dentro da simulação provoca a morte no mundo real. O indivíduo está tão plenamente conectado mentalmente naquela realidade simulada a ponto de a mente não mais diferenciar o real do irreal. Segundo Morpheus, em “Matrix”, “o corpo não pode viver sem a mente”.
9 Sobre indivíduos insubmersíveis na literatura romântica, nada melhor do que o personagem Howard Roark do livro A Nascente de Ayn Rand. O texto “Uma análise objetivista sobre o filme ‘Matrix’”, comparando os três programas do filme com a estratégia de Ellsworth Toohey, vilão de A nascente”, de nossa autoria, publicado no site do Objetivismo Brasil, aborda como Howard Roark vive de forma integra com seus valores, em um mundo coletivista, cujo propósito maior é o aprisionamento da mente humana através da manipulação de valores e virtudes. Disponível no link: https://objetivismo.com.br/uma-analise-objetivista-sobre-o-filme-matrix-comparando-os-tres- programas-do-filme-com-a-estrategia-de-ellsworth-toohey-vilao-de-a-nascente/
10 No curta “World Record”, de Animatrix, o protagonista é o corredor profissional Dan Davis. Pelo fato de Davis já ter apresentado sinais de instabilidade de aceitação da Matrix, agentes foram designados para acompanhá-lo de perto. Quando estava em uma prova de corrida, Davis supera todos os limites físicos da Matrix, inclusive dos corredores adversários que os agentes haviam possuído para superar a velocidade de Davis. Ainda assim, Davi quebra o recorde mundial e, por um breve lapso, obtém a autossubstanciação pelo esforço extremo realizado, vendo o mundo com ele realmente era.
11 Um exemplo de um redpill que escapou da Matrix com a contribuição de fatores externos é o vivenciado pelo protagonista Neo em “Matrix”, quando Morpheus oferece a pílula vermelha e Neo é ejetado da cápsula na cidade das máquinas, no mundo real, sendo recuperado pelos tripulantes da nave Nabucodonosor.
12 Os agentes são programas criados pelas máquinas para proteger a Matrix, eliminando toda e qualquer ameaça ao sistema, notadamente por parte dos redpills e dos programas exilados. Os agentes são extremamente poderosos, pois foram criados pelas máquinas que criaram a Matrix. São capazes de possuir avatares de qualquer hospedeiro (bluepill) conectado à Matrix para atingir seu propósito ou missão, controlando integralmente o avatar. O agente Smith era um agente oficial da simulação até ter sido destruído por Neo no final do primeiro filme (“Matrix”).
13 Após ter sido destruído por Neo no final do primeiro filme (“Matrix”), o agente Smith torna-se o vírus Smith, compondo um papel fundamental nos dois filmes seguintes (“Matrix Reloaded e “Matrix Revolutions”). O objetivo de Smith (vírus) é destruir toda a existência, virtual ou real, a humanidade, as máquinas, Zion e ele mesmo. Smith é capaz de assimilar bluepills, redpills e programas dentro da Matrix mediante o mero toque físico por alguns segundos, tornando-os uma cópia do próprio Smith. Além disso, é capaz de adquirir as habilidades de quem foi assimilado, como ocorreu com a Oráculo e Sati.
14 As versões da Matrix foram explicadas pelo programa “Arquiteto” para Neo em “Matrix Reloaded”. Na cena, o “Arquiteto” informa a Neo que é o criador da Matrix, explica o papel do escolhido (reiniciar a anomalia sistêmica para preservar os humanos e as máquinas) e que aquela seria a 6º versão da Matrix. Também aborda que, a princípio, existiram as versões betas da Matrix (anteriores a “Matrix”): paraíso e pesadelo. A primeira versão da Matrix ocorreu com a implementação do “Oráculo”, um programa intuitivo cujo propósito era a investigação da psiquê humana, fornecendo elementos para manter as mentes humanas adormecidas na simulação. Assim, o programa “Oráculo” adicionou a ferramenta da escolha, fazendo com que 99,99% dos indivíduos aceitassem a simulação. Não obstante, a falha fundamental seria que aqueles que rejeitassem a simulação ao longo do tempo constituíam uma probabilidade crescente de desastre capaz de criar uma anomalia sistêmica, colocando em risco todo o sistema e, por tabela, todos os humanos conectados à simulação. Então, o “Arquiteto” informa que a função do “Escolhido” é retornar à fonte para inserir a sua programação e reiniciar o sistema. No terceiro filme, Neo consegue destruir o vírus Smith, conquistando a trégua da guerra entre os homens e as máquinas. Com isso, a Matrix foi novamente reiniciada para a 7ª versão, aquela apresentada no final do terceiro filme. O quarto filme “Matrix Ressurrections” apresenta a 8ª versão da Matrix comandada pelo programa “Analista”.
15 Na mitologia grega, tempos antes de a humanidade existir, os irmãos titãs Prometeu e Epitemeu foram encarregados por Zeus de conceder os seres que habitariam a Terra. Epitemeu se apressou e concedeu as melhores qualidades e habilidades para os animais, como tamanho avantajado, garras, força, velocidade, destreza, mandíbulas e venenos mortais. Prometeu criou o homem a partir do barro e lhe concedeu o dom da vida, percebendo que não havia nenhuma habilidade especial para conceder à criatura. O homem enxergava e ouvia, mas não percebia ou compreendida nada a seu redor. Os animais reinavam sobre a Terra devido às suas qualidades. Insatisfeito com a condição humana, Prometeu decidiu inovar – concedeu aos mortais humanos uma dádiva que até então pertencia exclusivamente aos deuses, seres imortais: roubou o fogo dos deuses e presenteou a humanidade. O fogo é a razão filosófica, o princípio do conhecimento e o domínio da natureza. Assim, a humanidade despertou e houve o progresso exponencial da condição humana.
16 Para Friedrich Nietzshe, na obra O Anticristo, a história do início da Bíblia se resume no medo do deus bíblico em relação à ciência e, portanto, do homem independente. O homem não deveria pensar. Através da mulher, o homem saboreou o fruto da árvore do conhecimento. Se a ciência iguala o homem a deus, a ciência é o pecado original que desencadeou todos os demais. O pecado, a culpa e o castigo, base da moral cristã, foram inventados pelo sacerdote contra o homem científico – racional e livre. O pecado, a culpa e o castigo geram automaticamente a necessidade de graça, da redenção e do perdão, atributos dos sacerdotes. Todo esse padrão moral é uma violência à causa e efeito e um crime contra a humanidade. NIETZSHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. Porto Alegre, RS: L&Pm, 2024, Págs. 90-93.
17 Especula-se que possivelmente foi na versão beta pesadelo que o programa Merovíngio e seus capangas foram inseridos, por se tratar de um dos programas mais antigos existentes, conforme afirmado pelo programa “Oráculo” em diálogo com Neo em Matrix Reloaded. Merovíngio poderia até mesmo ser o sistema operacional dessa versão beta pesadelo.
18 Nesse momento, ainda não existia a escolha humana, cuja inserção somente foi implementada pelo programa “Oráculo” nas versões posteriores da Matrix.
19 Em “Matrix Resurrections”, o quarto filme da franquia, Merovíngio conseguiu sobreviver ao reset realizado pelo programa “O Analista”. No entanto, o “traficante de informações” ou o “francês” apresenta muito menos status social do que aquele apresentado nos filmes anteriores (“Matrix Reloaded” e “Matrix Revolutions”).
*Rodrigo Paes Freitas, advogado e curioso. Associação Alumni do Instituto Líderes do Amanhã e do Instituto Jovens Líderes, ambos do ES.