O julgador como agente político: uma crítica republicana à entrevista de Barroso
A entrevista concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, a O Globo expõe uma compreensão da função constitucional do Judiciário que conflita com os princípios fundamentais de um constitucionalismo republicano. Suas declarações, marcadas por uma visão que posiciona o STF como protagonista político — como ao classificar os atos do 8 de janeiro como “imperdoáveis” e sugerir a conclusão do julgamento de Bolsonaro antes das eleições —, revelam um risco real de erosão das garantias individuais que a Constituição de 1988 se propôs a preservar. A análise crítica desse posicionamento, à luz das ideias de Randy Barnett em Our Republican Constitution, destaca não apenas uma falha teórica, mas uma ameaça concreta à liberdade.
No cerne da crítica, está a confusão entre proteger a democracia e governar em nome dela. Ao afirmar que “o que aconteceu no 8/1 é imperdoável” e rejeitar a anistia para os envolvidos, Barroso assume uma postura que extrapola os limites da atuação judicial, tratando o STF como um agente de transformação social e política e não como um guardião imparcial dos direitos individuais. Barnett é categórico ao defender o oposto: “First come rights, then comes government.” Para ele, e para qualquer leitura republicana genuína, a função do Judiciário é proteger os direitos de todos, inclusive dos dissidentes, e não moldar a sociedade ou o cenário político.
A entrevista de Barroso confirma uma mentalidade que vê o STF como encarregado de corrigir a sociedade em vez de limitar o poder estatal. Ao sugerir que seria “desejável” concluir o julgamento de Bolsonaro antes das eleições e que o Congresso deveria reduzir as penas dos envolvidos nos atos do 8 de janeiro para evitar “ressentimentos”, Barroso revela uma intenção clara de influenciar o cenário político e social, reforçando a visão de que o STF deve atuar como um agente de transformação e não como um guardião imparcial. Essa visão é incompatível com o modelo republicano descrito por Barnett, em que o Judiciário atua como freio institucional, não como agente de transformação política.
Para Barnett, a Constituição deve proteger o povo, entendido como um conjunto de indivíduos soberanos — e não como um ente coletivo, homogêneo, cuja vontade majoritária pode ser imposta contra as minorias. Barroso, ao tratar o “povo” como uma entidade una que precisa ser “salva” de si mesma, alinha-se à visão coletivista que Barnett critica, na qual “We the People” é interpretado como um corpo orgânico e não como indivíduos dotados de direitos inalienáveis. Em Our Republican Constitution, Barnett argumenta que essa visão majoritária, típica da “Democratic Constitution”, permite que a vontade coletiva prevaleça sobre os direitos individuais, justificando restrições à liberdade que comprometem a essência de uma república. Em Restoring the Lost Constitution, Barnett alerta que essa ficção de “We the People” é perigosa, pois permite que facções que alegam falar pelo “povo” restrinjam as liberdades de todos, um risco evidente nas ações intervencionistas de Barroso.
Quando ministros deixam de aplicar a Constituição de maneira neutra para assumir a missão de “educar” ou “redimir” o povo, o Judiciário ultrapassa sua função e ameaça a própria liberdade que deveria resguardar.
O discurso do ministro não é apenas problemático em seu conteúdo, mas também em sua forma. Barroso recorre a técnicas argumentativas que Arthur Schopenhauer descreveu em sua Dialética Erística, e às heurísticas cognitivas estudadas por Daniel Kahneman, que amplificam percepções e distorcem o debate racional. A insistência em qualificações morais absolutas — como a classificação dos atos do 8 de janeiro como “imperdoáveis” — ilustra o uso do ad misericordiam, apelo à emoção para bloquear o exame jurídico sereno. Ao assumir a culpa dos acusados como ponto de partida, Barroso incorre na petitio principii, validando medidas excepcionais sem submetê-las a crítica racional.
A utilização da heurística da disponibilidade é igualmente evidente: ao destacar de forma reiterada episódios de violência e caos, como a “tentativa de explodir bombas” e os “acampamentos em frente a quartéis”, cria-se a impressão de um perigo constante que justificaria a suspensão de garantias fundamentais. No entanto, como alerta Barnett, as crises não podem servir de justificativa para a expansão ilimitada do poder estatal. Medidas emergenciais que violam direitos básicos, se normalizadas, corroem precisamente aquilo que a Constituição existe para proteger.
As ações mencionadas por Barroso na entrevista — bloqueios de redes sociais, censura de conteúdos e repressão ampliada — devem ser entendidas dentro do fenômeno que Barnett descreve como a ascensão do executive-administrative state: um modelo em que, sob o pretexto de proteger o bem comum, instituições de governo passam a legislar, julgar e executar com autonomia crescente, à margem dos controles constitucionais tradicionais. Em Restoring the Lost Constitution, Barnett propõe uma “Presumption of Liberty”, segundo a qual qualquer restrição à liberdade deve ser presumida inconstitucional, cabendo ao governo provar sua necessidade e adequação. Em Our Republican Constitution, ele vai além, defendendo um “judicial skepticism” que exige dos juízes uma postura cética para avaliar se tais medidas são racionais e não arbitrárias, protegendo assim os direitos individuais contra abusos do poder estatal.
A abordagem de Barroso, que presume a legitimidade dessas medidas com base em uma narrativa de crise, inverte essa lógica, violando os princípios que deveriam guiar um Judiciário comprometido com a proteção das liberdades individuais.
Embora Barnett tenha se referido ao contexto americano, a adaptação ao Brasil é direta: o STF, ao acumular funções típicas dos três poderes sob a justificativa da “defesa da democracia”, aproxima-se perigosamente daquilo que deveria combater. Nos Estados Unidos, Barnett critica a deferência excessiva do Judiciário ao Congresso durante a era progressista, quando a Corte permitiu a expansão do poder estatal em nome da vontade majoritária. No Brasil, o STF sob Barroso segue um caminho semelhante, mas com um agravante: aqui, a Corte não apenas defere, mas toma para si o papel de legislar e executar, assumindo uma função de “poder moderador” que a Constituição de 1988 não lhe confere.
Em Restoring the Lost Constitution, Barnett argumenta que cláusulas constitucionais que limitam o poder estatal, como as que protegem direitos não enumerados, foram “perdidas” devido a interpretações judiciais que as ignoraram ou distorceram, criando um “mar de poderes governamentais” em vez de um “mar de liberdade”. No Brasil, a atuação do STF sob Barroso, ao justificar medidas como censura e repressão, contribui para uma perda semelhante das garantias constitucionais da Constituição de 1988, que deveria proteger as liberdades individuais contra abusos de poder.
É necessário esclarecer que os eventos citados por Barroso, como os do 8 de janeiro, não configuraram ameaças reais às instituições brasileiras, mas sim um quebra-quebra com vandalismo, que, embora condenável, não justifica a narrativa de crise institucional que embasou medidas de exceção. Como Barnett observa, a função de uma Constituição não é ceder diante de episódios de desordem, mas enfrentá-los com o rigor da legalidade. O argumento de que medidas excepcionais eram necessárias para proteger a democracia deve ser confrontado com o princípio de que a liberdade individual só pode sobreviver se os limites constitucionais forem respeitados, especialmente em momentos de comoção social. No modelo republicano de Barnett, episódios como esses não justificam a suspensão dos direitos; antes, exigem ainda maior rigor em sua proteção.
O Supremo Tribunal Federal, pela Constituição de 1988, é o guardião das liberdades fundamentais e da separação de poderes. Seu papel não é alinhar-se a vencedores eleitorais nem corrigir o eleitorado, mas assegurar que a liberdade seja preservada mesmo contra a vontade da maioria ou contra os impulsos excepcionais de momentos de comoção social. Quando um ministro assume posturas que sugerem a intervenção direta do STF no cenário político, como ao propor a conclusão de julgamentos para influenciar eleições, ele não apenas compromete a imparcialidade da Corte — compromete a própria ideia de um Direito que se impõe a todos, inclusive ao próprio Estado.
A república não se sustenta pela vitória de um lado sobre outro, mas pela preservação constante dos direitos individuais contra o abuso de todos os lados. No Brasil, como nos Estados Unidos descritos por Barnett, o verdadeiro teste do constitucionalismo republicano não está na facilidade de aplicar a Constituição em tempos de normalidade, mas na coragem de defendê-la nos momentos de crise.
Ao erguerem a bandeira de intervenção política em nome da democracia, ministros traem a função contramajoritária que a Constituição lhes atribui. Em Our Republican Constitution, Barnett critica a deferência excessiva do Judiciário à vontade majoritária, como em casos históricos que permitiram a discriminação racial sob a justificativa de atender à “vontade do povo”, argumentando que tal postura mina a proteção dos direitos individuais. A atuação de Barroso, ao alinhar o STF a objetivos políticos, reflete essa deferência criticada por Barnett, tornando a liberdade de todos mais frágil — justamente no momento em que ela mais precisa ser defendida.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.