O STF enterrou a segurança jurídica
O Supremo Tribunal Federal ultrapassou, mais uma vez, os limites constitucionais de sua atuação. No julgamento ocorrido em 23 de abril de 2025, a Corte não apenas declarou a inconstitucionalidade de dispositivos expressos do Código de Processo Civil de 2015 — frutos de legítima deliberação democrática — como confundiu conceitos fundamentais de processo constitucional, produzindo uma decisão que, além de inconstitucional, é tecnicamente primária.
Diz-se, de forma imprecisa, que o STF teria “modulado os efeitos da coisa julgada”. Mas o que houve foi pior: a Corte equiparou, de maneira infantil, a modulação dos efeitos ex tunc de uma decisão de inconstitucionalidade — que exige ponderação segundo a regra da proporcionalidade — com a fundamentação automática para propositura de ação rescisória. Ou seja, bastaria a superveniência de uma decisão do próprio STF declarando a inconstitucionalidade de uma norma para que toda e qualquer coisa julgada baseada nela desaparecesse. Não há precedente semelhante entre as cortes constitucionais sérias do mundo.
Na prática, o STF concedeu a si mesmo o poder de decidir, caso a caso, quando a coisa julgada poderá ser desfeita, ainda que a decisão judicial tenha sido proferida com base em uma lei então vigente e presumidamente constitucional. O pretexto: uma leitura posterior de inconstitucionalidade, ainda que em matéria não penal.
A tese fixada é um libelo contra a segurança jurídica. O tribunal considerou constitucionais os parágrafos 15 do artigo 525 e 8º do artigo 535 do CPC, desde que interpretados com efeitos ex nunc, e ao mesmo tempo declarou inconstitucionais os parágrafos 14 e 7 dos mesmos artigos — justamente os que buscavam resguardar a estabilidade das decisões transitadas em julgado. Resultado: abriu-se uma brecha para ações rescisórias contra decisões irreversíveis com base em juízos retroativos de inconstitucionalidade, mesmo fora do âmbito penal.
O comentário de Luiz Guilherme Marinoni, um dos maiores processualistas do país, no X (antigo Twitter) foi preciso e cirúrgico: “Hoje ultrapassou todos os limites, negando o valor da coisa julgada (protegida na CF) e declarando a inconstitucionalidade (como se pudesse) de uma opção legítima do legislador do CPC/15.” O STF, segundo Marinoni, não apenas afronta a Constituição como também se coloca em posição radicalmente contrária ao entendimento consolidado das cortes constitucionais europeias e da Suprema Corte dos EUA — que só admitem tal relativização da coisa julgada em hipóteses estritamente penais e pró-réu.
Para usar linguagem acessível aos que prezam a estabilidade: o STF acabou com a mais importante forma de proteção da segurança jurídica. A coisa julgada, desde o Direito Romano, é o que transforma decisões em marcos definitivos, encerra litígios e permite a vida em sociedade sob a confiança no Direito.
Essa garantia foi preservada, por exemplo, pelo artigo 79 da Lei do Tribunal Constitucional Alemão, pelo artigo 282 da Constituição Portuguesa, pelas normas do Tribunal Constitucional Espanhol e pela legislação italiana, todas excepcionando a coisa julgada apenas em matéria penal, e ainda assim em benefício do réu. A coisa julgada civil sempre foi respeitada — não há espaço, nos modelos europeus de controle de constitucionalidade, para sua dissolução retroativa por razões de conveniência interpretativa.
A lógica constitucional do due process e da previsibilidade normativa cedeu lugar, mais uma vez, à lógica do protagonismo judicial. Sob o argumento do “grave risco à segurança jurídica”, o STF se autoriza a agir como se estivesse precisamente assegurando essa segurança — quando, na realidade, a desestrutura por completo. É o paradoxo da proteção destrutiva: para salvar o sistema, precisa-se implodir suas garantias mais elementares.
A decisão tratada teve como pano de fundo uma ação rescisória proposta pela União, questionando o reconhecimento judicial da decadência de seu direito de rever a anistia concedida a um militar. O ponto é sintomático: sob a roupagem técnica de um ajuste processual, o que se esconde é o avanço de uma jurisprudência funcionalizada ao poder — especialmente útil quando o Judiciário deseja rediscutir o que já foi decidido, reabrindo caminhos que a lei havia fechado.
Os ministros Fachin, Toffoli e Fux foram vencidos. Os indicados por Jair Bolsonaro, não se sabe por quê, pouco puderam ou quiseram dizer. O resultado é uma maioria disposta a sacrificar as garantias estruturantes do Estado de Direito em nome de um controle interpretativo absoluto, sem freios nem contrapesos.
No Brasil, o STF deixou de ser Corte Constitucional para se converter em Corte Constituinte permanente. Já não interpreta a Constituição, mas a reescreve — cláusula por cláusula, instituto por instituto — com a pena ativista da “interpretação conforme”. O resultado é a corrosão da confiança legítima nas normas, nos atos jurídicos e, sobretudo, nas decisões judiciais transitadas em julgado.
Se tudo pode ser desfeito por decisão futura, então nada é definitivo. E, se nada é definitivo, então o Direito perde sua função elementar: limitar o poder. A coisa julgada existe para conter o Leviatã, não para ser dobrada por ele. Ao autorizar sua destruição retroativa, o Supremo Tribunal Federal não apenas relativizou um pilar da Constituição — ele o enterrou. Enterrou a previsibilidade, a estabilidade e a confiança na autoridade das decisões judiciais. O juiz que legitima esse funeral jurídico já não é executor da Constituição. É seu coveiro disfarçado de intérprete.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.