Quando a celeridade vira injustiça
Reportagem publicada pela Folha de S. Paulo no dia 12 de abril revelou que o ministro Alexandre de Moraes, “multirrelator” de processos penais no STF, decidiu aplicar ao caso do ex-presidente Jair Bolsonaro e sua cúpula o mesmo procedimento já utilizado nos julgamentos dos réus acusados de participação nos atos de depredação do dia 8 de janeiro de 2023. Em ambos os casos, Moraes garantiu a intimação judicial formal das testemunhas de acusação, mas transferiu à defesa a responsabilidade de conduzir suas testemunhas às audiências, por meio de convite privado, sem o auxílio do aparato estatal, nos moldes do Código de Processo Civil (CPC).
Não se trata de impedir a defesa de apresentar testemunhas — mas de privá-la do instrumento legal que obriga o comparecimento. Em um processo penal, isso significa correr o risco real de que provas essenciais à liberdade dos réus simplesmente não sejam produzidas. A celeridade, nesse contexto, deixa de ser virtude e passa a ser atalho perigoso, onde o Estado abandona sua neutralidade para apressar condenações.
A Constituição é clara. O art. 5º, incisos LIV e LV, assegura a todos o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. No processo penal, essa garantia se projeta com ainda mais intensidade: a liberdade está em jogo. Não é o caso de um litígio cível entre partes simétricas. É o Estado, com todo o seu aparato, processando o cidadão, que por isso deve ter assegurado o pleno exercício da defesa — inclusive com a oitiva de testemunhas que possam confirmar sua inocência ou enfraquecer a acusação.
Esclareça-se, por oportuno, que prova testemunhal consiste no depoimento de terceira pessoa que não é parte do processo, que é chamada a juízo para prestar declarações sobre fatos que tenha presenciado, ouvido ou que tenha conhecimento, com o objetivo de contribuir com o esclarecimento da verdade e com a formação do convencimento do julgador.
O Código de Processo Penal (CPP), por meio de diversos artigos, estabelece um conjunto lógico e rigoroso de regras com relação à produção da prova testemunhal. Não à toa, a testemunha assume o compromisso legal de dizer a verdade, as partes podem contraditar as testemunhas antes de iniciada sua oitiva e há previsão expressa de dispensa do compromisso ou até mesmo, em alguns casos, de recusa em depor como testemunha é legitima.
A Lei Processual reconhece a relevância da prova testemunhal, e coloca à disposição das partes do processo, caso entendam relevantes para demonstração dos seus argumentos, a oportunidade para a sua produção. Por isso, a regra é a de que a testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor.
Assim, o CPP assegura à defesa o direito de ver suas testemunhas intimadas e formalmente inquiridas, sendo dever do juiz viabilizar e garantir a produção dessa prova, uma vez que a jurisprudência do próprio STF já reconheceu que a ausência de intimação judicial de testemunhas da defesa, quando solicitada, pode configurar cerceamento de defesa e levar à nulidade do processo.
Não se trata aqui de aplicar supletivamente as normas do direito processual civil em socorro a um processo penal carente de comandos. Embora o art. 455 do Código de Processo Civil (CPC) preveja que o advogado deva intimar diretamente as testemunhas que arrolar, em norma que comporta exceções, esse dispositivo não se aplica ao processo penal justamente porque a seara criminal possui dinâmica própria e suficiente para a ordenação da fase instrutória. Não se pode, obviamente, aplicar à defesa o CPC e à acusação o CPP.
Ora, se a acusação tem garantido o direito à intimação das suas testemunhas, ao contrário da defesa, cria-se uma assimetria inadmissível do ponto de vista acusatório-adversarial. Tanto que a Defensoria Pública da União alertou com precisão: há um tratamento desigual entre acusação e defesa, e esse desequilíbrio atinge a essência da função jurisdicional na sua posição garantidora do due process. O contraditório se torna fictício. A ampla defesa se converte em uma formalidade esvaziada. O juiz, que deveria ser o garantidor imparcial do processo, passa a atuar como condutor de um rito orientado ao resultado.
Neste ponto, vale lembrar que no âmbito do processo penal vigora, com mais intensidade, o princípio da paridade de armas, que nada mais é (ou deve ser) o tratamento igualitário entre as partes de um processo. Em outras palavras, a acusação e a defesa devem receber do julgador o mesmo tratamento, estabelecendo uma relação equidistante com ambas as partes, para que seja garantida a igualdade na possibilidade de influenciar nas decisões judiciais.
Não é de hoje que o processo penal brasileiro o princípio não vem sendo efetivamente respeitado, há muito já se reclama do layout de uma sala de audiências, na qual a promotoria tem seu lugar ao lado do Magistrado, enquanto a defesa é posicionada mais afastada ou até mesmo mais abaixo.
Dito isso, na prática, a inobservância do princípio da paridade das armas viola outros princípios (da igualdade, da ampla defesa e do contraditório) também previstos na Constituição Federal. Saliente-se, por relevante, que a paridade de armas está intrinsecamente ligada ao Princípio do Contraditório o qual, muito além de garantir o direito à informação de qualquer fato ou alegação contrária aos interesses das partes, assegura o direito à reação a ambos na mesma intensidade e extensão.
Na verdade, se considerarmos que toda a investigação policial já tramitou em sigilo, sem que as defesas pudessem ter acesso aos autos – ficando, inclusive, impossibilitadas, como de costume, de produzir elementos probatórios já na fase inquisitorial –, não é razoável falarmos em paridade de armas. O aparato do Estado está totalmente comprometido para agir covardemente contra os acusados.
Ao relativizar a intimação de testemunhas de defesa em nome da celeridade, o ministro Moraes abre caminho para a consolidação de um modelo processual assimétrico, em que o ônus probatório recai seletivamente sobre o acusado. Não é exagero afirmar que estamos diante de uma erosão silenciosa das garantias penais. Quando o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, admite esse tipo de atalho, transmite aos demais juízos a mensagem de que garantias fundamentais são flexíveis diante de certas conjunturas políticas. Mas, se há algo que a história do constitucionalismo ensina, é que a emergência nunca pode ser critério de interpretação.
Os números confirmam o alerta: segundo a matéria da Folha, aproximadamente 1.600 réus dos processos de 8 de janeiro tiveram negada a intimação de suas testemunhas. O ministro sustenta que não há necessidade de intimação judicial quando as testemunhas foram indicadas em prazo regular — uma interpretação que contradiz a prática penal usual e ignora as dificuldades materiais enfrentadas pela defesa, especialmente quando as testemunhas são servidores públicos ou possuem vínculos institucionais que exigem formalidade para o comparecimento.
Não permitindo que o aparato do Estado seja usado para garantir a produção da prova defensiva — como é feito para a acusação —, o STF se afasta de seu papel de árbitro imparcial e adota, ainda que por omissão, a postura de parte interessada. Essa assimetria não é detalhe técnico. In casu, o próprio coração da justiça criminal está em jogo.
O Supremo Tribunal Federal não pode esquecer que, ao julgar, fala em nome da Constituição. E a Constituição não admite justiça seletiva. O princípio da imparcialidade judicial, implícito na própria estrutura da separação de poderes, exige que o juiz assegure condições iguais às partes — especialmente em processos criminais, onde o risco de erro não é teórico, mas humano, concreto e irreversível.
Ao dispensar a intimação de testemunhas da defesa, o STF deixa de ser o garantidor das liberdades e passa a operar como um tribunal de emergência, onde a celeridade processual importa mais que a equidade do procedimento. Isso não é apenas um desvio técnico: é um sintoma de algo mais profundo. Estamos assistindo à consolidação de um modelo de exceção, baseado na lógica do inimigo, não do cidadão. A retórica da “defesa da democracia” não pode ser pretexto para demolir os próprios alicerces do Estado de Direito.
Em um país onde já se normalizou prender para investigar, ignorar habeas corpus e censurar antes de julgar, o abandono da intimação de testemunhas de defesa não é um fato isolado. É mais um passo na transformação do processo penal em instrumento de repressão política. E quando a Corte Constitucional se torna agente desse processo, a justiça deixa de ser imparcial — e a Constituição, um mero adereço retórico.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.
*Antonio Carlos Fonseca – Advogado, Sócio do Miranda Fonseca Advocacia, membro da Lexum.
*Bruno Gimenes Di Lascio – Advogado, Mestre em Ciência Jurídica pela UENP, Sócio do Gimenes Di Lascio Advogados, membro da Lexum.