Quem está mais próximo do AI-5?
Muito se diz que o Ato Institucional Número 5, que estabeleceu no Brasil todas as características de uma ditadura militar completa, foi provocado pela tensão criada pelas ações do terrorismo de extrema esquerda. Isso é apenas uma meia verdade.
É evidente que havia terroristas cometendo todos os tipos de barbaridades, inclusive brasileiros recebendo treinamentos de guerrilha antes do 31 de março de 1964. Houve sequestro de embaixador americano, explosões, pessoas assassinadas em nome da ditadura do proletariado que não tinham qualquer conexão efetiva com o regime militar… Ao mesmo tempo, havia manifestações na rua contrárias ao progressivo endurecimento do sistema político, muito embora infelizmente muitas delas fossem capitaneadas por lideranças estudantis ligadas ao pensamento socialista.
No entanto, o que realmente serviu de estopim, dentro desse contexto, para que o governo Costa e Silva, após reunião fechada de seu ministério, em 13 de dezembro de 1968, baixasse o ato que permitiu ao presidente da República dissolver desde o Congresso até o direito de habeas corpus, foi um discurso. Isso mesmo, um discurso.
O emedebista Márcio Moreira Alves, deputado que, como jornalista, havia sido favorável à deposição do presidente João Goulart, era agora implacável opositor do regime. Em discurso realizado às vésperas do feriado de Independência, ele bradou contra o governo, com os ataques mais duros e diretos possíveis. Fez campanha aberta para que a sociedade simplesmente boicotasse os desfiles de 7 de setembro e demonstrasse aversão ao governo militar. O teor geral de sua convocação era para que a sociedade civil se afastasse de qualquer contato com os militares, pressionando com essa hostilização social os militares submissos a se rebelarem contra o autoritarismo daqueles que estavam dando as cartas.
“Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais”, ele chegou a dizer, provocativamente. “Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas”.
É evidente que Márcio Moreira Alves atacou as autoridades das Forças Armadas e tinha a intenção de ofendê-las. Seriam tais declarações, sobretudo em ambiente de crescente autoritarismo, motivo para não deixar que falasse? Para castigá-lo e privá-lo de sua liberdade de expressão, anulando sua imunidade parlamentar? Parece evidente que não. Entretanto, o governo pediu ao Congresso para que seu mandato fosse cassado. Em 12 de dezembro, a Câmara recusou a abertura de processo contra ele. Uma decisão histórica, que protegeu sua liberdade – apenas naquele dia. O AI-5 veio no dia seguinte, em clara resposta ao desafio do Legislativo ao Executivo.
Por que trazer de volta esse episódio? Porque muito foi dito, sobretudo nas eleições do ano passado, sobre o fato de que a vitória de determinado candidato representaria o retorno da ditadura militar, a repetição do AI-5, a volta da tirania, a supressão das liberdades e direitos fundamentais. Pintou-se aos quatro cantos, para o mundo inteiro ver, um cenário de desastre para a democracia. O tal candidato venceria a eleição e reimplantaria os anos de chumbo. Minorias seriam fuziladas e o Brasil entraria na Idade das Trevas.
O candidato, agora presidente, está completamente errado em sua defesa do AI-5 e da ditadura militar, ainda que não tenha em momento algum preconizado a sua volta como o caminho que adotaria em seu governo, durante ou após a campanha. Disse que ele estava errado antes, não obstante tenha decidido apoiar sua eleição, e digo-o novamente agora. Isso é uma entre diversas amostras de que ele não tem mesmo uma boa formação liberal, sabidamente, e não foi por acreditar que teria que liberais o apoiaram.
Entretanto, estamos chegando ao quinto mês de sua gestão. Onde a censura oficial, onde a invasão de domicílios de críticos e divergentes, onde o abuso do poder judicial para intimidá-los? Que há alguns grupos com comportamentos autoritários e questionáveis se agitando por aí dentro do bolsonarismo, há; no entanto, ninguém chegou mais perto do AI-5 na prática do que o Supremo Tribunal Federal – especificamente, os ministros (para mim, repito, ex-ministros em exercício) Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, que levaram adiante o nefasto inquérito que determinou a pressão sobre pessoas que haviam feito comentários de contestação ao órgão e tiraram do ar por um tempo uma reportagem da revista Crusoé.
“A lei democrática e as prerrogativas por ela asseguradas não acobertam a impunidade de quem delas abuse para ofender uma instituição que tem o direito de ser respeitada.” A citação poderia perfeitamente ser de Dias Toffoli, que, justificando seu esdrúxulo inquérito, afirmou, fazendo coro com todo tipo de discurso politicamente correto que as esquerdas contemporâneas tão competentemente inocularam nos canais de expressão e formação do imaginário social, que a liberdade de expressão “não deve servir à alimentação do ódio, da intolerância, da desinformação”, situações em que se dá a “utilização abusiva desse direito”. Investigando, julgando, operando tudo por si mesmo, o STF deveria combater o ódio e o abuso da liberdade e das leis que se verifica quando, vejam só, o próprio STF é questionado. Em nome da honra da instituição, vale a censura, vale a intimidação, vale a perseguição.
A citação que inicia o parágrafo anterior, no entanto, não é de Dias Toffoli. É de Lira Tavares, ministro do Exército, em 8 de dezembro de 1968, defendendo a cassação do mandato de Márcio Moreira Alves. É um argumento que preparou o terreno para o AI-5. De onde vieram atos ditatoriais realmente explícitos, praticados com requinte de oficialidade por representantes supremos de um poder da República? Quem esteve mais próximo do AI-5? O leitor que tire sua conclusão.