Veríssimo não leu Ayn Rand e espanca um espantalho
Em sua coluna de ontem, 18/12, Luis Fernando Veríssimo, referindo-se à novelista Ayn Rand, comenta que, nos seus livros, aquela autora “faz a apologia do egoísmo criativo e endeusa empreendedores com mais audácia do que escrúpulos.” Segundo LFV, “Rand (…) tornou-se uma espécie de santa padroeira do neoliberalismo, proporcionando ao capitalismo desenfreado uma absolvição filosófica.” Não por acaso, segundo ele, a maioria dos novos ministros indicados por Trump para compor o gabinete são fãs de Ayn Rand.
De fato, Rand é uma defensora empedernida do modelo capitalista de livre mercado, mas Veríssimo erra de forma bisonha – provavelmente porque nunca leu a autora que critica – ao descrever os heróis randianos como empresários com poucos escrúpulos. Nada poderia estar mais longe da verdade. Ao contrário, esses personagens, em sua totalidade, são seres cuja consciência é dotada de amplo sentido moral, além de caráter extremamente íntegro.
Ayn Rand fugiu da Rússia para os Estados Unidos no início dos anos vinte, deixando para trás a coletivização e os horrores do bolchevismo. Apesar de não ter o inglês como língua pátria, tornou-se uma conceituada roteirista da indústria cinematográfica de Hollywood, além de uma novelista de fama mundial. Embora seja uma recordista de vendas nos EUA e em outros países, no Brasil sua obra – como de resto a grande maioria dos temas que não são agradáveis à intelligentsia tupiniquim – ainda é muito pouco divulgada, tendo sido traduzidos e publicados somente os seus dois mais famosos romances: “Atlas Shrugged”, cujo título em português é “Quem é John Galt?” e “The Fountainhead” (A Nascente).
Sua filosofia, o Objetivismo, parte da convicção de que os indivíduos só podem alcançar a verdade de forma objetiva através da razão. Tal qual Adam Smith, Rand acreditava no indivíduo, na sua vontade e no interesse próprio como motores do desenvolvimento. Para ela, o autointeresse não é um pecado, como preconizado por Platão e muitos de seus seguidores, mas uma característica intrínseca do ser humano. Em resumo, “ajudar a nós mesmos é a melhor maneira de cooperar com os demais.”
Em seu mais famoso romance, “Atlas Shrugged”, Rand faz uma enérgica defesa dos valores morais do livre mercado. O capitalismo, sustenta ela, é o único sistema que, reconhecendo a natureza racional do ser humano, e, portanto, a liberdade como exigência desta, se fundamenta na relação existente entre a razão, a liberdade e a sobrevivência do homem. As sociedades capitalistas só alcançaram altos níveis de prosperidade e bem estar porque nelas os homens gozam de liberdade para pensar, discernir e criar. Foi esta liberdade que permitiu ao capitalismo superar, com folga, todos os sistemas econômicos anteriores.
Segundo Rand, somente numa sociedade onde todas as relações são voluntárias, e onde se reconhecem e protegem os direitos fundamentais do homem à vida, à liberdade e à propriedade haverá prosperidade. Para ela, o capitalismo é o único sistema baseado no reconhecimento desses direitos, e longe de ser um mero sistema econômico, é um sistema de organização social e moral, em que o governo tem participação importante, porém restrita, para evitar o uso da força física de uns contra os outros e para dirimir questões oriundas das relações entre os indivíduos.
O principal fundamento moral do capitalismo, para Rand, está no fato de que este é o único modelo que baseia as relações humanas em atos contratuais e voluntários, em intercâmbios de direitos de propriedade, onde os homens são livres para cooperar uns com os outros ou não, de acordo com os ditames de seus próprios interesses e mútuos benefícios.
Assim, não se sustenta, no sistema capitalista, a idéia, por exemplo, de bem comum, uma grande falácia socialista utilizada amiúde por gente como LFV como justificativa para a tirania de uma minoria, que impõe aos demais seus próprios interesses, seus gostos e suas opiniões, evitando, acima de tudo, que os indivíduos pensem por si mesmos.
Pode-se não concordar com as idéias de Ayn Rand, mas que pelo menos as críticas sejam dirigidas à sua obra, e não a espantalhos, como faz Veríssimo.