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Togados superiores, fatores determinantes do nosso sinistro eleitoral

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Na indústria do seguro, sinistros exigem um processo de regulação, durante o qual são apuradas as causas do evento, as responsabilidades pela ocorrência, e, ainda, as somas dos danos efetivos incorridos pelo segurado. Quanto maior a extensão do sinistro, mais minuciosa e complexa se torna a regulação e mais amplo o leque de possíveis fatores determinantes do advento da catástrofe, como é o caso, por exemplo, da maioria dos acidentes aéreos.

Acabamos de presenciar uma hecatombe eleitoral, com um verdadeiro racha da população entre um primeiro grupo de apoiadores do ex-condenado não absolvido Lula da Silva e um segundo, formado tanto por admiradores de Bolsonaro quanto por cidadãos que o escolheram por rejeição absoluta a alguém reconhecidamente dado a saques ao erário. Desde a recente vitória do sentenciado, acumulamos perdas efetivas, tanto em nossa reputação denegrida pela opção por um representante de improbidade carimbada (danos morais) quanto na contração do volume de negócios (danos materiais), em um cenário incerto gerado pela chegada de um governante avesso à responsabilidade fiscal. Isso sem mencionar tudo o que deixaremos de ganhar (lucros cessantes), em virtude do desencorajamento aos investimentos em mais um país da América Latina que torna a sucumbir à velha receita fracassada do intervencionismo estatista, aliado ao peleguismo sindical.

O sinistro em questão não foi um fato da natureza, muito menos “obra do acaso”, mas fenômeno multifatorial, que, bem depois da nossa partida deste mundo, ainda haverá de ser pesquisado por historiadores e cientistas sociais, que terão, a seu favor, acesso a documentos ainda sigilosos nos nossos dias, e até talvez a esclarecedores depoimentos de herdeiros de muitos dos envolvidos. De toda forma, revirando todas as notícias de que tomamos ciência até hoje, podemos formular algumas hipóteses para o ocorrido, cuja ausência de caráter conclusivo você, compreensivo leitor, bem saberá perdoar a alguém que escreve em plena ebulição dos acontecimentos. Uma das suposições poderia consistir no próprio histrionismo da atual figura presidencial e em sua colaboração para o desgaste da imagem da Operação Lava-Jato e de Sérgio Moro, inclusive com a nomeação, ao STF, de um ministro que viria a corroborar a tese de suspeição do ex-juiz[1].

Porém, como o foco neste espaço se prende ao Judiciário, por ora restrinjo meus comentários a este poder, cujas deliberações, aliás, já fornecem material abundante para permitir situá-lo na raiz de todas as causas do fenômeno. Para desenhar a regulação desse sinistro, convido você a me acompanhar em uma cronologia de certos fatos protagonizados por togados de instâncias superiores, e que me parecem ter sido determinantes para a produção do evento político desastroso em questão.

Comecemos nossa análise em retrospectiva no distante ano de 2016, quando, à frente do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff no Senado, o ministro Lewandowski, a pedido de senadores apoiadores do lulopetismo, manteve os direitos políticos da então presidente afastada por crimes de responsabilidade, rasgando escancaradamente disposição textual do parágrafo único do artigo 52 da Constituição Federal[2]. Germinava, ali, a semente do ativismo e do desrespeito à Lei Maior, que os supremos togados deveriam ser os primeiros a guardar.

Poucos anos depois, o mesmo Lewandowski, durante um voo de carreira, em resposta a um advogado que o chamou para dizer que “o Supremo era uma vergonha”, indagou ao jovem causídico se ele desejaria “ser preso”, e manteve o rapaz em verdadeiro cárcere privado, não apenas no avião como também na chegada ao aeroporto de Brasília[3]. Teria sido aquele ato de arbítrio a semente de toda a mordaça que as poderosas togas ainda viriam a nos impor?

No apagar das luzes de 2019, o STF, no exame de uma ação proposta por grupos de viés corporativo e retrógrado como a OAB e o PC do B, considerou inconstitucional um certo artigo do nosso Código de Processo Penal e decretou a impossibilidade de prisão após confirmação da condenação em segunda instância[4]. A deliberação, tomada por maioria bem apertada, provocou enorme insegurança jurídica, na medida em que, desde a entrada em vigor da Constituição Federal de 88, aquela já era a quarta ocasião em que o tribunal se debruçava sobre o mesmo assunto, após uma chuva de decisões monocráticas e colegiadas em sentidos díspares.

Convenhamos, ainda, que tal decisão pode ser considerada um marco da temporada, inaugurada pela atual composição do Supremo, de favorecimento à corrupção e à impunidade para criminosos que, por meio de advogados influentes e custeados a peso de ouro, postergam seus processos por infindáveis anos, até a tão sonhada prescrição. Aliás, foi essa memorável deliberação do STF que abriu as portas do cárcere para o então presidiário Lula, assim como para outros marginais tão perigosos quanto ele[5].

Também nos idos de 2019, o ministro Alexandre de Moraes ordenou uma censura à Revista Crusoé para a retirada do ar da matéria jornalística intitulada “O amigo do amigo do meu pai”, que descrevia o círculo de amigos por nós bem conhecidos, cujo elo principal era o ex-condenado recentemente eleito[6]. Aquele inquérito, irregularmente iniciado de ofício e para fins repressivos, viria a ser convertido no famigerado Inquérito das Fake News, certidão de nascimento da violenta onda de censuras determinadas por togados, que nos cerceiam até hoje.

No alvorecer de 2021, deparamos com a deliberação que iria gerar profundos impactos deletérios não só no universo jurídico, mas sobretudo na política, provocando a cruel perversão de valores que redundou nas eleições presidenciais. Por força da teratológica decisão do ministro Fachin, mantida pelo pleno do STF, as condenações contra Lula foram anuladas por mera “divergência” quanto ao local do foro competente para o julgamento[7]. A completa irrazoabilidade desse julgado, pelos fundamentos tantas vezes discutidos aqui e no meu canal[8], escancarou as portas da permissividade e gerou uma guinada da narrativa midiática, que começou a vitimizar o delinquente condenado à luz de um robusto volume de provas, e a execrar magistrados que haviam apenas cumprido seu dever de ofício. Tanto assim que, logo em seguida às anulações, o Tribunal cuidou de declarar uma suposta suspeição do juiz Moro e, o que é ainda mais grotesco, com base em gravações ilegais e jamais periciadas[9].

Em poucas canetadas, nossa cúpula judiciária havia transformado o ilícito em lícito, o magistrado em algoz e o criminoso em perseguido político, que, apesar de não ter sido inocentado, se tornava novamente elegível e retomava a rota para ele desenhada rumo ao Planalto. A partir de então, a veiculação de todos os fatos verídicos atinentes à biografia nada recomendável de Lula passaram a gerar consequências gravosas para aqueles que ousassem comentá-los. Foi o caso, por exemplo, do ex-procurador e deputado eleito Deltan Dallagnol, condenado, no início de 2022, pelo STJ, a indenizar o ex-condenado em decorrência do powerpoint que o apontava como líder de organização criminosa, em decisão esdrúxula debatida neste espaço[10].

Assim, ao longo deste ano eleitoral que se encerra, o STF e o TSE se deleitaram em calar jornalistas, formadores de opinião, candidatos, magistrados e até empresários no exercício da arriscada atividade de manifestar suas ideias, em público ou em ambiente privado, em episódios analisados em textos anteriores e que mais pareciam cenas da vida diária sob a batuta da Gestapo, Stasi ou KGB. No apogeu de seu autoritarismo, a corte eleitoral chegou a emitir uma resolução, julgada constitucional pelo Supremo, e que conferia plenos poderes aos togados para, de ofício, determinarem a suspensão de perfis e plataformas em mídias sociais, sempre que estes fossem tidos como “disseminadores de desinformação”[11].

Nesse ambiente de narrativas hegemônicas sobre uma pseudo-perseguição a Lula, e de mordaça imposta a todos os que pretendessem desmentir tantas falácias, não é difícil entender que as decisões de tribunais superiores ora mencionadas figurem como causas diretas da formação de uma realidade distorcida na mente de boa parte do eleitorado, e, por óbvio, do êxito do ex-condenado nas urnas. Ainda que por uma diferença muito apertada, teremos de arcar com as consequências desse sinistro de grandes proporções pelo menos durante os próximos quatro anos.

Na contratação de uma apólice de seguros, a seguradora decide quais riscos irá cobrir, os precifica, e, nos casos de seu agravamento intencional pelo segurado, se vê isenta da responsabilidade pela cobertura dos danos deles decorrentes. Sob a égide da nossa Constituição nada cidadã, carente de voto distrital, recall e demais mecanismos de exercício direto da cidadania, somos todos nós, cidadãos, seguradores atrelados a riscos que não escolhemos subscrever, propositadamente agravados por certas instituições, incluindo as não-eleitas, e cujos efeitos danosos sequer poderemos mitigar. É melhor prepararmos nossas mentes, nossos estômagos e, sobretudo, os nossos bolsos para pagar, e bem caro, todas as perdas ensejadas por nosso sinistro eleitoral.

[1] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/04/22/interna_politica,1259574/2×1-nunes-marques-vota-a-favor-da-suspeicao-de-moro.shtml

[2] https://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/08/dilma-mantem-direito-ocupar-cargo-publico-governistas-dizem-que-vao-recorrer.html

[3] https://www.poder360.com.br/justica/lewandowski-pede-prisao-de-advogado-que-chama-o-stf-de-vergonha-assista/

[4] https://www.migalhas.com.br/quentes/314723/stf-volta-a-proibir-prisao-em-2–instancia–placar-foi-6-a-5

[5] https://www.conjur.com.br/2019-dez-31/novembro-prisao-instancia-derrubada-lula-solto

[6] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/04/15/stf-censura-sites-e-e-manda-retirar-materia-que-liga-toffoli-a-odebrecht.ghtml

[7] https://www.poder360.com.br/justica/stf-forma-maioria-para-anular-decisoes-da-justica-de-curitiba-contra-lula/

[8] https://www.youtube.com/watch?v=PxxAxrVUMgc&t=71s

[9] https://www.conjur.com.br/2021-jun-23/moro-suspeito-julgar-lula-decide-stf-votos

[10] https://www.institutoliberal.org.br/blog/o-stj-diante-do-powerpoint-que-ofendeu-o-intocavel/

[11] https://www.institutoliberal.org.br/blog/superpoderes-para-uns-asfixia-para-outros/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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