Teoria do Domínio do Fato e o Mensalão
MARIO GUERREIRO *
Até o julgamento do Mensalão, eu nunca tinha ouvido falar nessa teoria jurídica, mas durante o mesmo ela foi mencionada por alguns ministros do STF. No entanto, não me lembro de eles terem entrado em maiores detalhes sobre a própria teoria.
Na Folha de S. Paulo, em 16/10/2013, saiu um interessante artigo de Luís Greco e Alaor Leite, intitulado: Fatos e mitos sobre a teoria do domínio do fato.
Ambos os autores são, respectivamente, Doutor e doutorando em Direito pela Universidade de Munique, fato este que por si só já lhes concederia credibilidade para discorrer sobre esse tema.
Além disso, seu orientador é o Prof.Dr. Claus Roxin, renomado jurista alemão e um dos maiores defensores da teoria do domínio do fato criada por Hans Welzel, para julgar os crimes cometidos pelos nazistas.
Mas, fora essas credenciais, o que chamou minha atenção no referido artigo foi o bom senso, a objetividade e a clareza das ideias dos seus autores – três virtudes apreciáveis em qualquer artigo sobre qualquer assunto.
Eles começam dizendo que há muitos mal-entendidos sobre o domínio do fato. Até mesmo alguns ministros do STF que defendem a teoria, como também o renomado jurista Yves Gandra, que a rejeita, mostram não a ter compreendido bem.
Talvez, segundo Greco e Leite, por não terem bebido a água na fonte – no caso, os escritos originais do Prof.Dr. Roxin – mas terem sido informados por terceiros.
Em primeiro lugar: essa teoria faz uma importante distinção entre: (1) Quem é o autor do crime e (2) Quem é o mero partícipe.
O autor responde por fato próprio, sua responsabilidade é originária. O partícipe, por sua vez, responde por concorrer em fato alheio. E sua responsabilidade é derivada ou acessória.
No Artigo 29 do Código Penal brasileiro, não há uma incompatibilidade com a teoria do domínio do fato. No entanto, o mesmo Artigo sustenta um ponto de vista em que não há uma distinção entre autor e partícipe: ambos os que concorrem para o crime são considerados autores do crime.
Greco e Leite dão um exemplo: Matar é crime, emprestar a arma para quem faz uso dela matando é igualmente crime.
Para a teoria do domínio do fato, porém, “o autor, além de concorrer para o fato, tem que dominá-lo; quem concorre, sem dominar, nunca é autor”.
Neste ponto, salvo engano meu, tenho a impressão de que a expressão “dominar um fato” é usada numa especial acepção técnica com um sentido próximo de “ter um domínio sobre a produção do fato”, “ter conhecimento de que o autor planejava produzi-lo”.
Coisas que estão na esfera decisória do autor do crime que, tanto pode passar dos atos preparatórios de um homicídio para a consumação deste ato, como ficar aquém dos mesmos abortando a ação.
Quanto ao suposto partícipe, não cabe falar nessas coisas, uma vez que, ao emprestar a arma para um futuro autor, pode ter feito isso em boa-fé. No desconhecimento de que a arma seria usada em um homicídio e agindo sob a crença de que o suposto autor usá-la-ia para sua autodefesa, e se por acaso viesse a matar alguém, fá-lo-ia em legítima defesa.
Mas os autores prosseguem dizendo: “Na prática, a teoria do domínio do fato não condena quem, sem ela, seria absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações”.
[Neste caso, essa teoria teria tudo para fazer grande sucesso nos meios jurídicos brasileiros em que o excesso de garantias campeia e faz tudo o que pode para não condenar criminosos, principalmente os de colarinho branco, como os réus do Mensalão].
Em primeiro lugar, eles alegam que ela não serve para responsabilizar um sujeito apenas pela posição que ele ocupa [Seriam os casos de José Dirceu e outros membros do primeiro escalão do governo Lula?]. No Direito Penal, só se responde por ação ou por omissão, nunca por mera posição.
[Correto, mas a ausência de ambos os fatores condenatórios não exclui uma condenação por fortes indícios, coisa bastante freqüente nos casos de corrupção, uma vez que corruptos não costumam “deixar recibos”].
Os autores dão um exemplo interessante: “O dono de uma padaria, só pelo fato de sê-lo, não responde pelo estupro cometido pelo funcionário; ele não domina esse fato – noutras palavras: ele não estupra só por ser dono da padaria”.
De fato! Mas acho que isso não justifica a conhecida alegação de Lula de que “não sabia de nada” a respeito do Mensalão, de que “quem está no terceiro andar não pode saber o que estão tramando aqueles que estão no segundo”.
Lula não podia ser responsabilizado por ação, nem por omissão, nem por posição, mas podia sê-lo por fortes indícios. Mas eu não me referi por acaso ao julgamento do Mensalão. Os próprios autores, Greco e Leite, fazem isto:
“Parece, contudo, que em alguns dos votos dos ministros do STF, o termo “domínio do fato” foi usado no sentido de uma responsabilidade por posição. Isso é errôneo, o chefe deve ser punido, não pela posição de chefe, mas pela ação de comandar ou pela omissão de impedir”.
“E essa punição pode ocorrer tanto por fato próprio, isto é, como autor, quanto por contribuição em fato alheio, como partícipe”.
Aqui eu fico com uma dúvida: pretendem os autores dizer que a menção da teoria foi inadequada, sem entrar no mérito do caráter justo da condenação baseada noutra figura jurídica, ou que a condenação foi em si mesma injusta, por carecer de qualquer embasamento jurídico?
São coisas marcadamente distintas. Vejamos o caso da recente invasão feita pelos membros do Greenpeace de uma plataforma russa de exploração de petróleo próxima da esfera polar.
Sabemos que eles foram detidos sob a acusação de ato de pirataria. Desconheço completamente o direito russo, mas creio que essa acusação é infundada no direito de qualquer nação, inclusive à luz do Direito Internacional.
Caracteriza um ato de pirataria o saque no mar, quando indivíduos servem-se de um navio para saquear outro ou mesmo plataformas marinhas.
Mas os membros do Greenpeace que abordaram a plataforma russa não pretendiam roubar, nem roubaram nada, mas sim fazer um protesto ecológico. Não consta nem sequer que tenham feito depredações!
Em síntese, eles cometeram uma infração da lei, mas muito menos grave do que pirataria: a saber: invasão de propriedade (só não sei dizer se era propriedade privada ou estatal, mas isto não faz diferença. Ou pouca diferença faz, se tratando de um país ex-comunista como a Rússia).
Segundo ainda os referidos autores, a teoria do domínio do fato, por não ser da seara do Direito Processual, não dispensa a prova da culpa nem autoriza condenar alguém com base em mera presunção.
Como teria feito a ministra Rosa Weber que, no seu voto, fala em “presunção relativa de autoria dos dirigentes”. Estaria a ministra condenando os dirigentes pelo simples fato de serem dirigentes? Os autores parecem estar insinuando isso…
Segundo penso, a expressão “presunção relativa” é uma expressão equivocada. Em primeiro lugar, porque se não tem sentido “presunção absoluta”, muito menos tem “presunção relativa”. Presunção é presunção sem esses adjetivos.
Em segundo, porque não era o caso de mera presunção, mas sim de fortes indícios. De onde se conclui que a ministra pode ter se expressado mal, mas fez uma condenação justa.
Os autores concluem propondo algo que tem a aparência de um dilema destrutivo. Referindo-se à teoria do domínio do fato, eles dizem:
“Se foi aplicada corretamente, ela terá punido menos, e não mais do que com base na leitura tradicional do nosso Código Penal. Se foi aplicada incorretamente, as condenações não se fundaram nela, mas em teses que usurparam o nome”.
Até onde me é dado ver, ela foi aplicada incorretamente, mas isto não quer dizer que a condenação dos réus tivesse sido injusta. Insisto em dizer que a figura jurídica correta é fortes indícios de culpa.
Esta foi a figura que constou na acusação do Procurador-Geral e os que mencionaram a teoria do domínio de fato em suas sentenças, além de Rosa Weber, foram Lewandowski e Toffoli.
Justamente os ministros que, ao longo do julgamento, fizeram tudo que podiam para mitigar as penas dos réus, uma vez que não dispunham de argumentos jurídicos cabíveis para inocentá-los.