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Superpoderes para uns, asfixia para outros

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Acompanhando o noticiário, a minha impressão, de uns tempos para cá, tem sido a de um certo apagão no Parlamento e no Executivo no exercício de suas funções constitucionais, e, por outro lado, a de uma superexposição de magistrados, sobretudo os de cúpula, que parecem estar por toda parte, com suas capas lustradas, seu juridiquês empolado e sua ritualística pouco acessível ao grande público. Talvez o encolhimento dos poderes eleitos, em contrapartida à midiatização do único nomeado se deva às incertezas inerentes ao cenário eleitoral, e, ainda, ao atual período de silenciamento coercitivo, onde todos os atores parecem aguardar o ditado, pelos senhores de toga, dos scripts mais adequados à nossa democracia. Nessa fase de ouvidos sensíveis e canetas pontiagudas, é reconfortante contar com um idioma tão rico quanto o nosso, repleto de sinônimos para certos conceitos amargos, que, embora desprovidos do significado exato dos originais, pelo menos pertencem ao mesmo campo semântico que eles. De fato, a língua de Camões nos oferece ótimos genéricos, em substituição aos medicamentos de marcas, temporariamente indisponíveis.

Em seu combate diuturno à desinformação, seja lá o que isso for, o TSE promulgou uma resolução que ampliou seus próprios poderes, autorizando a corte a determinar a remoção de plataformas divulgadoras de “fatos sabidamente inverídicos, ou gravemente descontextualizados, que atinjam a integridade do processo eleitoral”, assim como a suspensão de perfis e contas em mídias sociais, em caso de “publicação contumaz de informações falsas ou descontextualizadas sobre o processo eleitoral”[1]. Tudo de ofício, ou seja, por iniciativa própria, sem provocação de autoridades policiais e do Ministério Público.

Diante de normas tão inovadoras, que destoavam da espinha dorsal de qualquer sistema jurídico democrático, a PGR questionou a constitucionalidade das novas regras junto ao STF, que acabou de formar maioria para mantê-las em pleno vigor[2]. Já no final de semana anterior, o ministro Fachin, relator do caso, havia proferido mais uma das milhões de decisões monocráticas que inundam o país – e não renunciam à sua posição de vedete da nossa rotina judiciária! -, convalidando os dispositivos da resolução, sob o argumento de que, às vésperas do segundo turno da corrida de 22, seria forçoso admitir “um arco de experimentação regulatória no ponto do enfrentamento ao complexo fenômeno da desinformação e dos seus impactos eleitorais”. Tamanho malabarismo retórico demanda uma pausa, e uma laboriosa dissecação dessa frase, por meio da qual o togado certamente disse bem mais do que pretendia.

Ao mencionar “arco”, Fachin reconhece sua verdadeira vocação de engenheiro projetista, que, do isolamento do seu gabinete, se empenha no desenho de um projeto de arco para uma ponte, uma catedral, ou até para sociedades humanas. Não se trata de um projeto qualquer, mas de uma “experimentação regulatória”, o que pavimenta a estrada rumo à temida regulação das comunicações, ainda que em caráter experimental, em um teste para aferir o comportamento de populações expostas, em laboratório, tão somente a informações de comprovada veracidade. E observe que não interpreto; apenas leio as palavras do togado em sua literalidade.

Quanto ao trecho restante da frase, nem é necessário muito esforço para compreender que o tal “enfrentamento” à desinformação nada mais é senão eufemismo para a proibição de veiculação de outras notícias que não aquelas checadas pelos magistrados, com a minúcia e o cuidado que lhes são peculiares. Afinal, como enfatizado por Fachin na parte final de seu voto, “(…) não há Estado de Direito nem sociedade livre numa democracia representativa que não preserve, mesmo com remédios amargos e limítrofes, a própria normalidade das eleições.”

Esmiuçando ainda mais as palavras do magistrado, somos todos nós obrigados a ingerir um “remédio amargo e limítrofe”, como um pedágio ao livre exercício do nosso direito ao voto. Ora, “limítrofe” em relação a quê? E, se o voto pressupõe, por definição, uma liberdade de escolha, como pode um ato livremente praticado coexistir com uma coerção sobre o teor das manifestações de cada um de nós, eleitores? Aqui, já estou divagando em torno de mistérios togados que, a exemplo dos divinos, são insondáveis. Pelo menos, entre nós…

Portanto, o que Fachin e seus colegas omitem é a trajetória do cidadão-eleitor, desde a ingestão compulsória da tal pílula intragável de silenciamento (o seu próprio e o dos outros) até a livre digitação, na urna, do número de sua escolha. Omissão bem compreensível, pois essa espinhosa rota é formada por todas as inconstitucionalidades da resolução questionada, dentre as quais a violação ao dever de inércia do juiz (necessariamente provocado pelas partes legítimas), à garantia do duplo grau de jurisdição (possibilidade de revisão de decisões judiciais), e ao sagrado princípio da liberdade de expressão. Mas quem se importa com o respeito aos ritos e com a manutenção das liberdades individuais quando o que está em jogo é a própria democracia, essa abstração que apenas os robespierrescos magistrados de cúpula são capazes de resguardar?

Felizmente, corroborando tudo o que temos discutido tão amiúde neste espaço, conceituadas vozes têm se levantado em oposição à escalada incontrolável do autoritarismo de toga e ao cerceamento às nossas liberdades fundamentais. Dentre tais opiniões, destaco artigo bem recente publicado pelo prestigioso jornal estrangeiro Wall Street Journal[3], cujo inteiro teor ratifico, e que tomo a liberdade de traduzir abaixo, em seus trechos mais incisivos:

A esquerda brasileira tenta amordaçar o debate político

(…) A Constituição Brasileira veda a censura, e a repressão descarada à liberdade de expressão alarmou a nação. Porém, o juiz De Moraes, também presidente da Corte Suprema, não parece retroceder.

(…) Por lei, cumpre ao tribunal julgar “fatos sabidamente inverídicos” durante a campanha. (…) Contudo, não dispõe de autoridade para aprovar ou reprovar a opinião pública.

Na quinta-feira, entrou em vigor a resolução do TSE. Como explicado pelo jornalista brasileiro Diego Escoteguy no site de notícias O Bastidor, na semana passada, o TSE conferiu a si mesmo o poder de “arbitrar o que é verdadeiro ou falso no debate político”, e de suspender contas, perfis e canais”, e vedar o acesso de Brasileiros a plataformas inteiras.”

Diante dessa peça, será que os senhores, caros ministros, diligenciarão a expedição de uma carta rogatória para determinar o silenciamento do jornalista no exterior? Calar uma massa ignorante e submissa não é grande proeza. O difícil mesmo é modificar a postura de humanos bem pensantes em países mais avançados, e, sobretudo, assumir o ônus de entrar para a nossa História como a cúpula togada que, sem sequer dispor de poderes para legislar, se tornou, por força de meras normas administrativas, o único órgão editorial dos nossos tempos.

[1] https://multimidia.gazetadopovo.com.br/media/docs/1666280275_tse-resoluc-a-o-desinformac-a-o.pdf?_gl=1*6wmk30*_ga*MTI3MzgzODk1NS4xNTUzNTQzOTA2*_ga_B7X3QY6Y1N*MTY2NjI4MzA5Ni4xNDAuMS4xNjY2MjgzMTA0LjAuMC4w

[2] https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/stf-mantem-resolucao-do-tse-que-ampliou-poder-de-moraes-contra-fake-news/

[3] https://www.wsj.com/articles/brazils-left-tries-to-gag-political-speech-bolsonaro-lula-runoff-supreme-court-tse-censorship-corruption-11666550093

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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