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Somos todos alienados?

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Vivia, na distante Itaguaí do período colonial, um doutor em ciências médicas, laureado em Coimbra e prestigiado na corte, mas que optara pela pacata cidade brasileira para dela fazer seu universo. Pioneiro no estudo das patologias cerebrais, que, até então, eram negligenciadas tanto na colônia quanto nos outros cantos do reino, o Dr. Bacamarte, convencido dos perigos de deixar loucos furiosos retidos em seus próprios aposentos e os mansos à solta pelas ruas, teve a ideia de metê-los todos no mesmo estabelecimento, que viria a ser a primeira casa de Orates de Itaguaí, batizada de Casa Verde.

Obsidiado pelo seu objeto de estudo, Bacamarte se exauria na classificação das formas de demência, na avaliação da conduta dos enfermos sob sua custódia e dos demais moradores da cidade, e tamanho era o interesse do douto no recanto psíquico humano que nenhum itaguaiense escapava ao seu olhar perscrutador. Em pouco tempo, a população da Casa Verde, restrita, de início, a alguns assassinos e deserdados do espírito, havia recebido uma torrente de loucos de todo gênero, que, segundo os parâmetros de Bacamarte, sofressem de algum tipo de afetação mental. E então, sempre dentro de critérios estritamente científicos, que, enquanto tais, não poderiam ser alvo de contestações ou sequer de discussões, começava a ser trancafiada toda espécie de gente; as internações dos pródigos passavam a ser tão justificadas quanto as dos avaros, as dos soberbos quanto as dos modestos, e por aí vai, de modo que, ao sair pela manhã, qualquer indivíduo se via exposto à incerteza de ser trancafiado. “A Casa Verde é um cárcere privado”, chegou a confiar um médico aos cronistas da época, sob condição de anonimato, é claro.

Vive entre nós um especialista em ciências jurídico-criminais cujo prestígio angariado em feitos acadêmicos e na área da segurança pública lhe valeu reconhecimento político e até uma indicação à nossa cúpula judiciária. Desde sua posse como supremo togado, o Dr. Moraes tem demonstrado desvelo e dedicação diuturna ao exame das condutas delitivas, em particular das de maior potencial lesivo, que são as destinadas à aniquilação da própria democracia. A classificação dos tipos penais por ele mesmo criados deslanchou a partir de um certo inquérito, também de sua autoria, ou, para sermos bem justos e precisos, em coautoria com um colega de corte, inquérito este que passou a ser o pesadelo dos inimigos da ordem democrática. Desde então, o tal processo inquisitorial se tornou o instrumento perfeito para calar e trancafiar antidemocratas de todo tipo, quer estejam eles disseminando mensagens de ódio em redes sociais, quer estejam fomentando desarmonia em periódicos ou outras mídias, quer estejam simplesmente conversando em seus grupos privados de WhatsApp.

Na Itaguaí de outrora, o clima de insegurança instaurado pelo Dr. Bacamarte não tardou a gerar uma revolta popular contra a Casa Verde, que chegou a ser conhecida como a “Bastilha da razão humana”, símbolo maior do autoritarismo e do arbítrio do cientista. Liderado pelo barbeiro local, de codinome “canjica”, o grupo dos inconformados itaguaienses marchou rumo à câmara municipal, e de lá até a residência do alienista, aos gritos de “morra o tirano!”, exigindo a demolição do hospício. Após eventos exitosos para os insurretos, e um período relâmpago de governo revolucionário, a ordem anterior foi restaurada, e Bacamarte, mais prestigiado que nunca, iniciou uma coleta ainda mais desenfreada de doidos. Tudo era loucura em Itaguaí, inclusive a repentina mudança de comportamento da esposa do doutor, que, de senhora recatada e modesta no vestir-se, havia começado a revelar um fascínio surpreendente por joias e vestidos. Tamanha a gravidade dos sintomas naquela lagarta em metamorfose que Bacamarte não hesitou em “cortar na própria carne”, em atuação digna dos austeros anciãos da Roma antiga. Trancafiou a própria esposa e, no dizer dos cronistas de seu tempo, tornou-se o “Hipócrates forrado de Catão”.

Em nossa atualidade, os herdeiros dos revoltosos, carentes de lideranças idôneas e consistentes, agarrados a falsos profetas desprovidos de sentido e de propósitos, e na obstinação de marcharem diante dos quarteis, e não pelas ruas em geral, ou em frente à Praça dos Três Poderes, tudo o que conseguem é serem alvo de ridicularização constante por parte de setores hipócritas de uma determinada imprensa conluiada ao establishment, sem qualquer incômodo aos verdadeiros tiranos. Já o Dr. Moraes, eleito o “Brasileiro do ano” por um veículo de mídia, posa como símbolo de incansáveis esforços na preservação da estrutura democrática tupiniquim.

Voltando aos relatos de Itaguaí, qual não foi o assombro da população local ao ser informada acerca da reviravolta nos achados científicos de Bacamarte. Após constatar que quatro quintos da população havia sido recolhida à Casa Verde, o douto foi levado, sempre pelas estatísticas, a rever suas teorias na raiz, e a admitir como normais os casos de desequilíbrio, e, em sentido oposto, como patológicas as situações de equilíbrio ininterrupto. E foi assim que Bacamarte ordenara a soltura dos residentes, passando ao exame minucioso de outros tipos psicológicos, notadamente daqueles que exibiam qualidades morais e mentais, e figuravam como verdadeiros exemplos de virtudes.

No Brasil brasileiro do século XXI, em meio às oscilações da jurisprudência da nossa suprema corte e, em particular, da imprevisibilidade dos julgados do Dr. Moraes, não é de todo impossível que o douto magistrado se incline a considerar os indivíduos “antidemocráticos” perfeitamente enquadrados às normas da vida social e comece a enxergar nos “democráticos” os ensejadores de riscos efetivos à coletividade, passando, estes sim, a merecer a censura e o encarceramento. Dizer se esse dia chegará e se estaremos de pé para testemunhá-lo seria leviano e enganoso. Afinal, são insondáveis os caprichos da alma humana, sobretudo quando o ser em questão dispõe do poder de estipular, na prática, o que é certo ou errado.

Dando um epílogo à narrativa sobre nosso alienista, conta-se que, passados alguns meses, os loucos virtuosos haviam sido todos curados e liberados da Casa Verde. Por sua vez, o médico, sempre às voltas com suas investigações, cogitava, de si para consigo, se aqueles que havia supostamente curado não seriam, na verdade, tão desequilibrados quanto os demais, pois não seria ele pretensioso a ponto de acreditar “haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam”.

Como consequência lógica de um intricado raciocínio, nosso douto chegara à conclusão de que jamais teria havido um doido em Itaguaí, e de que ele, e somente ele, Bacamarte, reunia em si todas as características da perfeição, capazes de formarem um “acabado mentecapto”. Após indagar seu círculo mais próximo acerca de seus defeitos, e ouvir a descrição de si como um poço de virtudes, não restou mais qualquer dúvida ao médico: trancafiou-se no hospício, onde veio a falecer solitário, pouco depois. Quanto ao togado dos nossos dias, que certamente se enxerga como um raro depósito de todas as virtudes humanas, custo a crer que siga o exemplo de Bacamarte e venha a determinar o relaxamento de todas as recentes prisões políticas e o seu próprio encarceramento. Quem viver verá…

Estamos às vésperas da posse, no cargo mais elevado da nação, de um ex-condenado não absolvido e de seus ministros, muitos deles igualmente condenados, indiciados ou, pelo menos, suspeitos de malfeitos contra o erário. Quem serão os doidos dessa trama? Aqueles que chegaram às convicções condenatórias e ainda sustentam o seu cabimento, ou os que jamais acreditaram em juízos de culpabilidade sobre os envolvidos, e que seguem encorajando ou, no mínimo, aceitando a legitimidade do retorno dos envolvidos ao poder?

As fronteiras entre sanidade e loucura, entre lícito e ilícito, e entre condutas democráticas e antidemocráticas oscilam conforme os padrões estabelecidos pela ordem vigente, e na medida da admissão destes por parte das respectivas coletividades humanas. Eu mesma posso não passar de uma mentecapta, gastando o meu latim em algumas linhas para estabelecer uma comunicação com os meus iguais, outros doidos unidos a mim no combate a moinhos de vento.

No conto O Alienista, o narrador, através da pena grandiosa de Machado de Assis, conjecturou, a partir de cronistas do passado, que Itaguaí jamais tenha abrigado outro louco que não o próprio Bacamarte. Ora, se nem o Bruxo do Cosme Velho ousou tecer assertivas sobre o tema, quem sou eu para afirmar que a Bastilha da razão humana, a nossa Bastilha da liberdade de expressão e, ainda, a insurreição frente a tais símbolos sejam legítimas, ou fruto de pura sandice? Questões complexas como estas demandam paciência, tempo – e horas não faltarão neste recesso; aproveite-as ao máximo para superar a mediocridade que tentam nos impor, e, no melhor estilo machadiano, plus ultra!

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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