Sobre liberdade de expressão e afronta à democracia
Ontem, a liberdade de expressão tomou mais uma paulada em Pindorama. Três jornalistas/comentaristas da Jovem Pan e da Gazeta do Povo tiveram todas as suas redes sociais suspensas, seus passaportes cancelados e suas contas bancárias bloqueadas por ordem daquele ministro do STF – vocês sabem qual.
“Não existe direito absoluto”. Esta expressão jurídica vulgar virou lugar comum nas mesas de bar, no discurso da imprensa e de seus indefectíveis analistas e especialistas, e até mesmo nas sentenças das mais altas cortes de Pindorama, quando o assunto é liberdade de expressão.
O problema é que esta expressão nada mais é do que uma falácia, ou um grande espantalho, para ser mais exato. Ninguém que denuncie os (cada vez mais) frequentes abusos contra a liberdade de expressão recusa os limites dela. A questão de fundo é que, entre um direito absoluto e nenhum direito há uma enorme zona cinzenta, que jamais deveria ser refém das subjetividades e idiossincrasias de ninguém.
Por isso, o legislador enumerou uma série de exceções ao direito fundamental da liberdade de expressão – não por acaso, gravado em cláusula pétrea na CF. São elas: ameaças à vida ou à integridade física de terceiros, injúrias, calúnias e difamações. O mais importante é que todas as exceções previstas são puníveis (civil ou criminalmente) apenas a posteriori, depois do devido processo legal e da possibilidade de ampla defesa. A censura prévia (ou ‘cala-boca’, nas palavras da ministra Carmem Lúcia) não está prevista no arcabouço legal de Pindorama.
A censura é expressamente vedada pela Constituição Federal em duas passagens: no artigo 5º, inciso XI, que dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e no §2º do artigo 220, que proíbe qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística.
Desses dois dispositivos depreende-se que é inadmissível qualquer tipo de censura prévia, coisa típica de países totalitários. Se houver excesso na linguagem ou ultrapassagem do limite entre a liberdade de expressão e a prática de uma infração, inclusive de natureza penal, a punição é sempre posterior. Ninguém está autorizado a antever a prática de um ilícito e calar qualquer pessoa a priori.
Até mesmo na famigerada Lei de Segurança Nacional, editada no período militar, havia dispositivo expresso que permitia a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas (com exceção do nazismo) – artigo 22, §3º, da Lei nº 7.170/1983.
Já a Lei nº 14.197, que substituiu a Lei de Segurança Nacional e atualmente trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, inseriu no Código Penal o artigo 359-U, que dispõe sobre a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, ressalvando que: “Não constitui crime previsto neste título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.
Mais claro, impossível. O direito à livre manifestação do pensamento consiste justamente em poder dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive sobre os poderes constituídos e seus agentes, sem que isso seja considerado criminoso. Essa regra constitucional é comum a praticamente todos os países democráticos, pois a liberdade de expressão é um dos pilares do estado democrático.
Não sem razão, a lei permite inclusive opiniões contrárias à própria democracia, bem como a defesa de regimes autoritários – há gosto para tudo. Tanto isso é verdade que, desde a redemocratização do país, assistimos a manifestações diversas dos defensores de uma ditadura do proletariado sem que tais atividades jamais tenham sido criminalizadas ou proibidas.
Por outro lado e a despeito de tudo isso, testemunhamos diariamente ataques concretos à democracia e ao estado de direito sem que isto cause qualquer desconforto cognitivo nas nossas elites pensantes. Refiro-me, evidentemente, aos inquéritos perpétuos do STF, sem competência originária e ao arrepio de princípios processuais mais comezinhos. Sem falar dos reiterados atos de censura e bloqueios de redes sociais, inclusive de parlamentares textual e constitucionalmente imunes em relação às suas palavras e votos.
Refiro-me também a algumas decisões extravagantes do mesmo STF, as quais interferem de maneira insofismável na divisão de poderes, outro dos principais pilares de uma democracia realmente digna deste nome – como a recente autorização do judiciário para que o executivo gaste acima do teto constitucional, entre outros arroubos de um STF cada vez mais ativista e imbuído do papel (espúrio) de legislador.
Nada poderia afrontar mais a democracia do que este vilipêndio ao império da lei e ao devido processo legal. O problema é que, em Pindorama, não é a opinião que interessa na hora de punir alguém, mas quem emite a opinião.