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Série “Espiritualidade e Pensamento Liberal” – Carmen Migueles (Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas / Catolicismo Romano)

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ADCE

(Esta entrevista faz parte da série “Espiritualidade e Pensamento Liberal”. Para entender a proposta da série, leia o texto de apresentação no seguinte link: “Série Espiritualidade e Pensamento Liberal” – Apresentação)

carmenmiguelles

A série “Espiritualidade e Pensamento Liberal” traz hoje um episódio diferente, em que, mais do que uma única crença religiosa, a entrevistada representa uma organização, que tem por fim exatamente articular e entender uma possível associação entre a espiritualidade – especificamente cristã – e os negócios. Carmen Migueles, doutora em Sociologia das Organizações e mestre em Antropologia do Consumo pela Universidade de Sophia, em Tóquio, e professora da Fundação Getúlio Vargas, é presidente interina da Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE). Ela conversou conosco durante quase uma hora, expressando generosamente seu entendimento sobre o tema e a filosofia da entidade, e reproduzimos nesta seleção a essência de seus argumentos.

Primeiramente, gostaria que falasse um pouco de sua própria fé. Como a define?

Sou católica, o que significa, de muitas maneiras, que sou cristã e vejo verdade no Novo Testamento. Gosto muito da visão judaica do Antigo Testamento, mas vejo um papel fundamental em Cristo na dinâmica do perdão e acredito que Maria de fato tem o dom do Espírito Santo. Então, quando penso em “Ave Maria, cheia de graça”, de fato entendo que o Espírito Santo baixou sobre Maria e acredito no papel mediador dela. Por isso, sou católica.

O que é a ADCE? Como foi fundada e qual seu histórico no Brasil?

A ADCE, filiada à UNIAPAC (União Internacional Cristã de Dirigentes de Empresas, em tradução para o português), foi fundada no Brasil por Newton Cavalieri, católico, fundador do grupo ASAMAR. Ele trouxe essa entidade ao Brasil por crer que há uma ligação entre a espiritualidade e a lucratividade dos negócios. Há um papel fundamental no mundo do trabalho que é esse desvelamento do potencial dos indivíduos. Então, a gestão empresarial tem responsabilidade por esse desvelamento. A ADCE não é só católica, é cristã em geral. No Rio Grande do Sul, o movimento entre os luteranos é grande, como na Alemanha, e há a ideia de que o trabalho é um lócus do desenvolvimento de virtudes e valores, e as organizações são espaços onde podemos criar essa disciplina pessoal orientada por valores.

Dentro dessa temática, você escreveu um capítulo no livro “Liderança”. Conte-nos sobre isso, e sua concepção geral da relação entre a mentalidade cristã (e especificamente católica) e os negócios.

Esse livro tem um tema de fundo que é o porquê de algumas pessoas prosperarem e outras não. É uma questão curiosa do ponto de vista religioso, pois há um fundamento do livre-arbítrio em todas as religiões monoteístas que muitas vezes é esquecido na forma como a religião popular funciona. Quando pensamos na questão da espiritualidade, há uma adesão a valores que antecedem a interação do sujeito com o mundo. Eu livremente escolho agir de acordo com a ética e cultivar em mim as virtudes, trabalhar tendo como visão o benefício que causarei ao outro, e não espero que o outro me pague se eu não fizer isso. Então, a ideia de serviço num sentido amplo do termo só pode ser bem compreendida dentro de uma perspectiva religiosa. A remuneração justa do meu trabalho é uma medida de quanto eu sirvo.

Especificamente para os católicos, houve um movimento de Pio XIII nessa direção que foi a carta encíclica Rerum Novarum, escrita no fim do século XIX, e que de muitas maneiras aponta para a responsabilidade do gestor com os trabalhadores.  Aí, no entanto, há uma ideia de caridade católica que tem um viés paternalista de proteção ao pobre e ao oprimido. Uma questão que não está no cerne da espiritualidade católica, mas é uma leitura helênica e latina da espiritualidade católica, que traz essa ideia da fragilidade do ser humano no mundo. A Rerum Novarum olhava para o empresário como uma elite econômica política e social com responsabilidade de cuidar daqueles que trabalham na empresa. A carta encíclica Caritas in veritati, publicada por Bento XVI, altera de maneira direta essa percepção, quando ele diz que a caridade real se dá quando apoiamos o desvelamento das potencialidades do outro e o preparamos para a liberdade. Ela está muito alinhada com os desafios da gestão de conhecimento e da disciplina pessoal ligada ao sistema produtivo. Essa visão de renovação da Igreja Católica que a Caritas traz em relação à Rerum Novarum, apoiando uma gestão ancorada em valores e voltada ao desvelamento da potencialidade das pessoas e ao empoderamento. Nesse sentido eu vejo uma ponte muito clara com a ideia liberal, fundada sobre a liberdade, o livre-arbítrio e o poder de cada indivíduo. O que a Caritas acrescenta a isso é o pressuposto da solidariedade, o apoio a que os indivíduos façam esse movimento, entendendo que muitas vezes o indivíduo pode, por questões de cultura e ignorância, não ser capaz de fazer isso por si mesmo, mas não uma solidariedade geradora de dependência, e sim geradora de independência e autonomia.

Pessoalmente, julgo que falta em alguns autores liberais uma perspectiva aberta para o outro e para a dimensão cultural. Vi em muitos deles um não-reconhecimento de que o pensamento liberal é profundamente religioso em origem, com a ideia de que o homem nasce com direito à liberdade e à vida, que o homem tem uma igualdade ontológica e devemos ter uma lei que os julgue igualmente. Isso vem da ideia anterior de que todos somos irmãos em Cristo. Há em economia essa dificuldade, por haver um falso pressuposto de que, se aceitamos a esfera cultural, nos obrigamos a rejeitar o individualismo metológico liberal; essa é uma carência que pessoalmente observo. O pensamento liberal tem um fundamento cristão e na evolução desse pensamento na Europa, vemos que ele vinha sendo gestado na Idade Média no bojo de outros motivos de liberdade, igualdade e fraternidade que desembocaram nas revoluções americana, inglesa e francesa, em instituições como a Maçonaria e na ideia do combate ao Absolutismo. Esse pressuposto cristão está por trás das ideias de Adam Smith, claramente revelado na Teoria dos Sentimentos Morais, e o não reconhecimento disso cria, a meu ver, um problema, que é uma não reflexão crítica sobre o entendimento da natureza humana por trás do pensamento econômico. Há pressupostos de racionalidade e potência no pensamento econômico liberal que só fazem sentido dentro desse contexto maior de entendimento sobre a natureza humana. A ética religiosa e causal, de muitas maneiras, para outros valores. Uma das conclusões que o estudioso de religiões Mircea Eliade também coloca; sem o pressuposto metafísico, o ser humano não encontra perspectivas para olhar para o mundo.

Qual a dimensão da ADCE no Brasil?

É um grupo pequeno, com pouco mais de 40 pessoas frequentando ativamente o retiro que a própria CNBB nos oferece, tem associados. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) reconhece a ADCE como uma instituição da sociedade civil para pensar valores. O encontro de bispos e empresários no retiro se realiza anualmente em Ipacirica da Serra, interior de São Paulo, e este é o segundo ano em que a CNBB oferece retiro espiritual aos líderes empresariais representados.

Nosso projeto “Espiritualidade e Pensamento Liberal” começou inspirado na Carta sobre a Tolerância, de John Locke, em que ele defende, com argumentos religiosos, a liberdade religiosa. Em que medida você acha que essa defesa é possível, e quem já a empreendeu?

São Tomás de Aquino, por exemplo, arguido sobre por que gostaria de criar uma universidade jesuítica, respondeu que a única verdade indubitavelmente revelada na Criação é a verdade da diversidade. Deus ama o plural e o diverso. Não existem duas pedras iguais, duas árvores iguais, dois ecossistemas iguais. Se eu quiser respeitar os desígnios de Deus, preciso respeitar a diversidade, e o segredo dela não está revelado. Deus ama os homens que investigam isso. Há outros trabalhos bastante interessantes, como o padre jesuíta negro Mira, que recebeu autorização do papa João Paulo II para se converter a uma seita Yamabushi, que é uma seita oriental de silêncio e meditação na montanha. O pressuposto por trás de sua tese era de que Deus não abandonou os povos sem acesso à Palavra, aos quais deve ter Se manifestado de outras formas, e a autorização para ele estudar entre os orientais era para buscar compreender se os mesmos ensinamentos estavam essencialmente por trás da crença deles. Sua conclusão foi de que encontraremos a mesma mensagem de fundo, mas Cristo abrevia o necessário caminho, e para os católicos é necessário perceber isso.

O que pensa sobre a Teologia da Libertação?

Não vejo muita diferença de fundamento entre a Rerum Novarum e a Teologia da Libertação; elas partem do pressuposto de que há um grande pai que deve cuidar dos outros (a elite) e, se não o faz, é um pulo para a conclusão dos teólogos da Libertação de que temos que tirar essa elite do poder. Dentro dessa ética antiga católica há a semente para a ética da Teologia da Libertação. Aí que eu vejo a Caritas in Veritate como uma ruptura significativa, atacando esse pressuposto e mostrando que caridade de verdade é ajudar o indivíduo a andar com as próprias pernas, colaborar no desvelamento do potencial desse indivíduo. Nesse sentido, a encíclica do Bento XVI nos aproxima de uma visão de mundo mais anglo-saxônica e menos latina.

Em relação ao Brasil e às pessoas que professam o Catolicismo no país, em termos médios, qual seria o entendimento, o sentimento ou a vivência delas sobre os princípios básicos de uma ordem liberal, na sua visão?

É difícil precisar, porque a ICAR tem uma pluralidade e diversidade interna gigantescas, mas, de modo geral acho que a Igreja Latino Americana tem dificuldade até de entender a mensagem do papa Francisco. Ele fala muito da igualdade entre o clero e os outros, que a igreja é a comunidade e não o clero, que há um pressuposto de igualdade de diálogo e os seres humanos são frágeis. O papa é muito aberto à diversidade e ao diálogo e muito aberto a esse empoderamento do outro, à ideia de que o outro tem que ser aceito em seus próprios termos. A homossexualidade, por exemplo; sua prática é um ato consensual entre dois adultos e não causa mal a nenhum outro. O indivíduo tem a liberdade de crer ou não no que consta da Bíblia, não podemos condenar. Diferente, por exemplo, da questão do aborto, que para um católico é inaceitável, de vez que, se o indivíduo que está no útero da mulher é, exatamente, um indivíduo, não há como ser tolerante com o aborto. A sacralidade da vida é muito central no Catolicismo para ser colocada em cheque.

Aí é interessante dizer que existe certa ideia disseminada de que é bacana bater nas instituições sociais e culturais consolidadas, tradicionais, mas não se pode apanhar delas. Você pode escandalizar, colocar numa escola de samba o Cristo pelado, mas não pode ter a igreja se manifestando a respeito. Há um pressuposto de que só os oprimidos históricos, a mídia ou os valores democráticos valem e os outros não têm direito de ser respeitados em si. Vejo no papa a ideia de que existe a liberdade de expressão, mas é importante cuidar de nossas atitudes e do respeito pelos outros.

Como você vê a questão católica das “promessas” feitas aos santos em troca de favores, típica na religião popular, nesse contexto de reflexão sobre a autonomia individual?

O santo tem um papel mediador, eu creio. O santo é aquele indivíduo que se coloca a serviço de ser essa ponte, ter uma vivência das Escrituras que permite que as palavras se transformem em carne. É um exemplo de como a vida pode ser, uma inspiração e uma prova viva de que conseguimos participar da potência de Deus se nos dedicarmos a esse exercício. A “promessa”, teoricamente, deveria servir como bússola ao indivíduo, sinalizar o quanto ele está disposto a lutar para fazer esse movimento, mas, por um processo de aculturação da fé, ela se transforma em pensamento mágico. Falta de educação filosófica e ensino crítico das Escrituras leva ao domínio do pensamento mágico, como se subir os degraus de uma escada me desse o direito de estar melhor. Você encontra isso em tradições de tribos e culturas pagãs, bem ao contrário do que está nas Escrituras, que exortam o “olhar para dentro”. A promessa como pensamento mágico é uma falta de fé em si e em Deus, tem até uma certa condenação bíblica nesse sentido. Por outro lado, é difícil condenar, pela dificuldade de se colocar no lugar do outro para entender o quanto aquilo é importante, como uma muleta, para ele lidar com o medo e a desesperança.

Finalmente, gostaríamos de uma reflexão sobre a relação da Igreja e a noção de Estado laico.

A ICAR é totalmente a favor do estado laico, e essa ideia surge de dentro das universidades católicas e do pensamento católico moderno. Os católicos são os primeiros a reconhecer o valor da alteridade, então se você olhar ao longo da história humana, o outro, o diferente, era o “bárbaro”, o temível e sem valor, e a ideia de reconhecimento do valor da alteridade surge dentro do Cristianismo. A ideia de Cristo falando com os samaritanos, falando aos “infiéis”, falando com outros, essa abertura para a alteridade, isso tudo é bastante original. Acho que os valores católicos e cristãos são, de muitas maneiras, a âncora espiritual para o Estado laico, porque o Catolicismo é muito “anti-fundamentalista”. Haverá quem diga: mas e a Inquisição? A Inquisição não é reproduzível, não é intrinsecamente consequência das ideias religiosas do Cristianismo ou do Catolicismo, tal como a violência talibã não é essencialmente o retrato do Islamismo. Vejo a ICAR e seus fundamentos como muito abertos a essa convivência.

 

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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