Resenha do Livro “Reading Law: The Interpretation of Legal Texts” de Scalia e Garner

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Vivemos tempos no Brasil em que a interpretação do Direito foi tomada por uma corrente que, em muitos aspectos, abandona a concepção clássica de um sistema jurídico coeso. A abordagem hermenêutica que prevalece hoje frequentemente despreza a objetividade das normas e se afasta do que Hans Kelsen considerava fundamental para o Direito: um sistema normativo que fosse coerente, hierarquizado e aplicável de maneira uniforme. O livro Reading Law: The Interpretation of Legal Texts de Antonin Scalia e Bryan A. Garner representa um contraponto necessário a essa distorção, especialmente em um contexto onde prevalecem o voluntarismo judicial e a elasticidade interpretativa.

Scalia e Garner são defensores do textualismo, uma doutrina que se alicerça na interpretação literal e objetiva dos textos legais. Para eles, o papel do juiz não é criar o Direito ou reinterpretar leis conforme seus desejos ou inclinações pessoais, mas sim buscar o significado que as palavras do texto tinham quando foram adotadas. O livro reúne 57 cânones de interpretação que, se adotados, poderiam corrigir grande parte dos desvios interpretativos que temos visto no Brasil.

Entre os principais preceitos, estão aqueles que tratam da interpretação baseada no sentido ordinário das palavras (Ordinary-Meaning Canon) e o cânone que fixa o sentido das palavras no tempo em que a norma foi criada (Fixed-Meaning Canon). Esses dois cânones são fundamentais em um país onde o ativismo judicial cresce e juízes frequentemente reinterpretam as leis conforme o contexto atual ou sua visão de mundo, ignorando o sentido original das normas.

A ideia de que as palavras não podem ser distorcidas pelo intérprete também se reflete em cânones como o Omitted-Case Canon, que proíbe o juiz de adicionar o que não foi previsto expressamente na norma, ou o Whole-Text Canon, que demanda uma leitura do texto jurídico como um todo para evitar contradições internas.

Um dos cânones mais relevantes para a nossa realidade é o Constitutional Avoidance Canon, que orienta que, sempre que possível, o juiz deve interpretar a lei de forma a evitar conflitos constitucionais. No Brasil, essa premissa parece esquecida, dada a quantidade de decisões que criam embates diretos entre normas infraconstitucionais e a Constituição, levando ao que Kelsen chamaria de uma erosão da hierarquia normativa.

Outro ponto alto do livro é a ênfase nos preceitos que limitam a arbitrariedade do Estado e preservam direitos fundamentais. O Rule of Lenity, por exemplo, indica que, em casos penais, a interpretação mais favorável ao réu deve prevalecer em situações de ambiguidade. Isso nos faz lembrar como, no Brasil, muitas decisões têm ampliado o poder punitivo do Estado, em um movimento que parece desconsiderar a necessidade de garantias processuais mínimas.

O livro também inclui cânones que tratam da coerência dentro do próprio texto legal, como o Presumption of Consistent Usage, que orienta que termos repetidos devem ser interpretados de forma consistente, ou o Presumption Against Implied Repeals, que proíbe a revogação tácita de uma lei anterior por uma nova a menos que haja um conflito claro entre elas. No Brasil, o desrespeito a esses princípios contribui para uma interpretação errática das normas, que torna o sistema jurídico imprevisível e desorganizado.

Além disso, Reading Law traz preceitos de ordem lógica e gramatical que evitam resultados absurdos, como o Negative-Implication Canon, que indica que a inclusão de um termo específico exclui outros, e o Surplusage Canon, que afirma que nenhuma palavra deve ser considerada redundante ou supérflua no texto legal. Esses cânones são particularmente úteis em um ambiente jurídico onde a linguagem da lei muitas vezes é tratada com pouca atenção ao seu sentido estrito, abrindo margem para decisões confusas e contraditórias.

Em sintonia com os princípios defendidos por Scalia e Garner, a Constituição Federal Brasileira de 1988 também impõe limites claros à atuação dos magistrados, especialmente no que se refere à interpretação e aplicação das leis. Dispositivos como o artigo 5º, inciso II, consagram o princípio da legalidade estrita, ao determinar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, reforçando a ideia de que o juiz não pode se afastar do texto legal. A Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35/1979) complementa esse princípio ao impor deveres de imparcialidade e observância da legalidade, limitando o espaço para o arbítrio judicial. Na mesma linha, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942) estipula que, na ausência de norma legal expressa, o juiz deve decidir o caso conforme a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, mas jamais segundo seus próprios interesses ou conveniências pessoais. Além disso, o Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) e o Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/1941) reforçam a importância da fundamentação das decisões (art. 489, CPC) e asseguram a presunção de inocência e o devido processo legal (art. 5º, CPP), criando barreiras claras contra a interpretação volátil e pessoalista das normas.

Esses dispositivos da legislação brasileira convergem diretamente com os cânones apresentados por Scalia e Garner, pois ambos buscam restringir a subjetividade do intérprete e assegurar que as decisões judiciais permaneçam ancoradas no texto legal. Diante dessa obra monumental, podemos refletir sobre como o Brasil tem se afastado dessas práticas clássicas de interpretação do Direito, especialmente desde a constitucionalização do Direito Civil e a ascensão do neoconstitucionalismo, que subverteu muitos dos princípios tradicionais. Na tradição jurídica brasileira, salvo engano, a nossa última grande referência sobre hermenêutica foi o livro de Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito. Infelizmente, esse livrinho fantástico acabou sendo relegado ao esquecimento, substituído por uma avalanche de abordagens teóricas que flexibilizam a norma jurídica em nome de princípios vagos.

Nesse contexto, Reading Law é uma obra essencial não apenas para juristas e magistrados americanos, mas também para os brasileiros que desejam uma retomada de uma interpretação mais rigorosa e comprometida com o texto da lei. O livro de Scalia e Garner pode ser uma inspiração para redescobrirmos a importância da objetividade e da clareza na interpretação jurídica, lembrando que o Direito não é uma mera construção ideológica, mas um sistema de regras que visa à estabilidade e à previsibilidade. Este é um livro que merece ser estudado profundamente, sobretudo por aqueles que acreditam que a função do Judiciário não é legislar, mas aplicar as leis conforme foram estabelecidas.

Na tragédia brasileira, onde se multiplicam decisões que se afastam do texto claro das leis, Reading Law oferece uma luz. Resta-nos perguntar: quando voltaremos a valorizar a hermenêutica clássica e a obra de Carlos Maximiliano para restabelecer a racionalidade jurídica que parece ter sido perdida?

Como em tempos antigos, nos quais a justiça era representada por Têmis, deusa com a balança em uma mão e a espada na outra, o equilíbrio e a firmeza nas decisões não eram apenas um ideal, mas um dever sacrossanto. Contudo, em nosso presente, parece que a deusa foi despojada de seu equilíbrio. A balança, que outrora pesava com precisão as leis e os fatos, agora parece se inclinar ao sabor dos ventos subjetivos – e a espada, antes símbolo da severidade na aplicação das leis, repousa enferrujada, vítima de um arbítrio que a desdenha.

Cícero, em sua obra-prima sobre os deveres, advertia que “a justiça deve ser buscada, mesmo que contra o curso das águas.” Assim como o orador romano clamava por ordem e razão em meio ao caos político de sua época, cabe a nós, em nossa moderna república, reerguer a balança de Têmis. Que os juízes retomem o papel de intérpretes fiéis e não de legisladores ocultos. Que o Direito volte a ser a firme muralha que protege os indivíduos e não uma cera maleável moldada por desejos ou modismos.

E aqui, tal como no conto “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, somos levados a observar o espetáculo de uma nova igreja sendo construída: assim como o Diabo, ao fundar sua própria religião, os juristas modernos parecem querer erguer seu próprio templo jurídico, dissociado das tradições e regras que antes balizavam o direito. No conto de Machado, o Diabo acreditava que poderia conquistar os homens afastando-os das virtudes antigas, oferecendo-lhes uma igreja fundada na inversão de valores. Da mesma forma, muitos dos intérpretes modernos parecem crer que podem fundar uma nova ordem jurídica, desvinculada dos cânones tradicionais e da segurança jurídica. Porém, assim como no final do conto, onde o Diabo se frustra ao perceber que até em sua igreja os homens acabaram por retornar às antigas virtudes, podemos supor que, cedo ou tarde, a realidade cobrará o retorno ao texto claro da lei, ao rigor das normas e à coerência do sistema.

Machado, com sua fina ironia, talvez sorrisse ao ver o esforço de tantos em reinventar o que já estava consolidado, como o Diabo que tentou criar sua própria igreja apenas para ver o fracasso de sua empreitada. A verdade, ao que parece, sempre encontra um meio de se reafirmar, por mais que se tente ocultá-la sob camadas de interpretações arbitrárias e subjetivismos.

Assim, fica a alegoria: o Direito, tal qual um navio à deriva, precisa de um timoneiro firme que siga as estrelas fixas do céu da lei, não as nuvens passageiras da conveniência. Scalia e Garner nos lembram de que essas estrelas ainda brilham se tivermos a coragem de olhar para cima e nos orientar por elas.

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Leonardo Correa

Leonardo Correa

Advogado e LLM pela University of Pennsylvania, articulista no Instituto Liberal.

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