Um Congresso subjugado por togados?
No início, foi uma decisão suprema determinando a prisão de um deputado federal pela postagem de um vídeo contendo falas críticas à corte e aos seus membros. “A Constituição Federal não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional”, sentenciou o temido togado responsável pelo decreto prisional, cuja canetada, no já distante ano de 2021, inaugurava um mantra que viria a ser reverberado por todo o poder judicante, pelo universo dos operadores do direito, pela grande mídia e pelo grupo político então em vias de ser reassentado ao Planalto por seus próprios juízes. De lá para cá, os integrantes da cúpula judiciária, ávidos pela expansão de seus poderes para muito além dos limites de suas atribuições constitucionais, passaram a concentrar suas atenções na perseguição e na punição a indivíduos por eles enxergados como opositores, assim como no esvaziamento da atuação de legisladores eleitos.
Nessa toada, parlamentares oposicionistas começaram a ser “investigados” por suas manifestações opinativas, e, durante a corrida eleitoral de 22, mais de duzentos perfis na plataforma X foram derrubados por força de deliberações alexandrinas, todas elas contaminadas pela inconstitucionalidade da censura prévia. Enquanto o meio jurídico tratava de relativizar a garantia constitucional da imunidade parlamentar, induzindo o grande público à crença errônea de que os congressistas só seriam invioláveis por suas ideias e opiniões se as manifestassem no parlamento, vozes maliciosas continuavam pregando, aos quatro ventos, que o cerceamento às falas de políticos rotulados como “extremistas” consistiria em providência indispensável à preservação da própria ordem democrática. Mistura pérfida de má fé, incoerência e inconsequência, que viria a produzir frutos ainda mais venenosos.
Na outra frente de sua saga rumo ao poder absoluto, supremos magistrados iniciaram uma longa série de canetadas monocráticas, que, ao sabor das conveniências (próprias e de seus aliados políticos), foram suspendendo a vigência de várias leis relevantes para o país. Meses de debates parlamentares vêm sendo colocados por terra tão somente para a satisfação dos interesses de um só juiz desprovido de representatividade popular. Foram os casos, por exemplo, da Lei das Estatais, da Lei do Marco Temporal, da Lei da Desoneração da Folha de Pagamento e da Lei de Drogas. A mais nova vítima de canetada foi a PEC da Reforma da Previdência, alteração constitucional que, durante sua longa gestação, havia rendido acaloradas discussões, mas cujo dispositivo sobre a equiparação, para ambos os sexos, do tempo de contribuição de policiais e agentes penitenciários acabou de ser ceifado por uma única deliberação do nosso togado assumidamente comunista. Mais um precedente aberto para que, em breve, a espinha dorsal da reforma se desmanche em pó, a depender do “prestígio” de grupos de interesse junto a togados.
Em sentido inverso, nossa elite judiciária não tem demonstrado qualquer pudor em legislar sem votos, usurpando a prerrogativa exclusiva do poder vizinho para dispor sobre situações futuras, genéricas e abstratas como se legisladora fosse. Triste exemplo da sanha legiferante de autoridades não-eleitas pode ser encontrado na resolução 23.732/24 da corte eleitoral, que criou, para os provedores de internet, as obrigações de identificar e indisponibilizar postagens relacionadas a “atos antidemocráticos”, “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados” e demais conteúdos classificados como “indesejáveis” pelo próprio estamento togado.
Tamanho o grau de interferência de supremos na rotina legislativa que até mesmo os processos a serem julgados pelo Senado Federal têm sido alvo de juízos aprioristicamente conclusivos por parte de magistrados. Por mais paradoxal que possa soar, vimos um togado vociferar, a propósito do pedido de impeachment já protocolado contra o “supremo dos supremos”, que somente o “STF pode analisar a validade de impeachment contra seus ministros”. Em mais essa declaração histriônica, o togado em questão se arrogou a privar o Senado de uma de suas funções constitucionais, qual seja, a de processar e julgar os ministros do Supremo Tribunal Federal nas hipóteses de crime de responsabilidade.
Após anos de subsequentes afrontas a mandatários eleitos, um grupo restrito de congressistas, sob intensa pressão de um segmento da opinião pública, começou a dar andamento a projetos legislativos destinados à colocação de freios aos arbítrios togados. Tais esforços redundaram na recente aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, de versões para a chamada PEC das decisões monocráticas e para a ampliação do rol de crimes de responsabilidade passíveis de serem cometidos por integrantes do Supremo.
Como já era previsível no atual ambiente de disfuncionalidade sistêmica, as iniciativas parlamentares, demonizadas, pela narrativa midiática, sob a designação enganadora de “pacote anti-STF”, logo provocaram uma exacerbação nos ânimos de nossos todo-poderosos togados. Por exatos três dias, a reação suprema passou da fofoca de bastidores a falas inapropriadas em sessão de julgamento, em uma sequência de condutas indecorosas e, portanto, passíveis de justificar a remoção dos envolvidos de seus assentos na corte.
Na própria data de aprovação dos projetos, a fina flor do Judiciário agiu como “fonte” jornalística de suas próprias decisões futuras, para disseminar, na mídia, que os projetos seriam inconstitucionais, pois modificações na estrutura judiciária brasileira só poderiam ser implementadas mediante iniciativa dos próprios togados. Afirmação inverídica, na medida em que o Legislativo desfruta da atribuição exclusiva de modificar a Constituição, desde que a alteração não atente contra os pilares da nossa estrutura federativa (o que está bem longe de ser o caso). No dia seguinte, durante o exame de outras matérias em plenário, o presidente da corte suprema enviou ao parlamento uma mensagem intimidatória, pontificando que “não se pode mexer” em instituições que estejam funcionando. Em seguida, os togados parecem ter subido ainda mais o tom ao manifestarem seu projeto de “monitoramento” dos parlamentares favoráveis aos projetos.
Aliás, o mais recente ato dessa tragédia judiciária, em número ainda indefinido de atos, residiu na intimidação inconstitucional contra um deputado possivelmente colocado sob “monitoramento” supremo de longa data. Uma das poucas figuras políticas a manifestar oposição aos desmandos, e a tomar providências na tentativa de contenção destes, o deputado relator da PEC das decisões monocráticas se tornou alvo do mais novo inquérito aberto pelo togado comunista. E não pense você, caro leitor desinformado, que o parlamentar tenha sido flagrado em tramoias de corrupção, em desvios do erário público ou na prática de prevaricação, como o faz a maioria esmagadora de seus pares: o único “indício delitivo” apontado contra o congressista consistiu em uma fala na tribuna do parlamento, durante a qual o ora “investigado” denunciava abusos funcionais por parte de um delegado da polícia federal.
Onde fica a imunidade parlamentar em meio a tantos estilhaços institucionais? Para que não pairassem dúvidas quanto à lisura de sua conduta, o congressista fez questão de se pronunciar no interior da câmara, espaço representativo da casa do povo que o elegeu, e onde os mandatários, nos termos do artigo 53 da Constituição, são invioláveis “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.” Assim, como pôde o supremo comunista ter aludido a uma eventual extrapolação nos limites dessa garantia constitucional se, por definição, a imunidade é ilimitada, por abranger “quaisquer” manifestações opinativas?
Para se transformar em autêntico poder moderador, o estamento togado cuidou de manter parlamentares sob sua tutela constante e avocou para si uma condição indevida de “etapa final” de todo o processo legislativo: se as normas aprovadas pelo Congresso, mediante estrita vigilância do Supremo, forem consideradas adequadas à ordem vigente, serão mantidas em vigor; caso contrário, serão aniquiladas e expurgadas para sempre do sistema. O controle da constitucionalidade das leis, adotado em todo o mundo democrático, deu lugar, entre nós, a uma distorcida checagem sobre a compatibilidade entre o teor da norma e o desejo de juízes.
Parlamentos sob “monitoramento” se tornam mero simulacro de legalidade, marionetes caras, sob o comando de políticos de toga. Se nossos caciques legislativos ainda exibissem o mínimo de visão e de decência, atuariam em prol da retomada de sua própria autonomia institucional. Contudo, na terra da miopia e da improbidade oficializada, seguem de joelhos perante magistrados. Talvez até que seus próprios mandatos venham a ser cassados pelos verdadeiros mandachuvas…