Resenha crítica: ‘A Lei’
Se faz sentido para o leitor refletir sobre a formação da lei em seu país e, em especial, de que forma ela se torna um instrumento de legitimação de injustiças e de exploração do indivíduo, de tirania e controle social; nenhuma obra literária compartilha, com a simplicidade e a precisão, as inquietudes também experimentadas por um economista, jornalista e membro da Assembleia Nacional da França há mais de 170 anos.
Trata-se de A Lei, escrita por Frédéric Bastiat apenas dois anos após a Revolução Francesa de 1848 e meses antes de ele vir a óbito em decorrência da tuberculose. Atemporal, a obra serve como uma luva para o cenário brasileiro (e, a bem da verdade, da América Latina como um todo), em que se verifica um avanço temerário do autoritarismo e a subjugação de direitos inerentes à própria condição humana: a vida, a liberdade e a propriedade; tudo aparentemente sob o pálio da Lei, com o pretexto de servir à justiça, à democracia, ao bem da coletividade.
A perversão da Lei é o objeto central do autor. Como surge a lei e de que forma ela não apenas se desvia de sua finalidade, como também se volta para um objetivo inteiramente oposto, tornando-se um instrumento de espoliação e perpetuação das injustiças? Essas indagações, e o pano de fundo das ideias socialistas que se espalhavam pela Europa e botavam em risco os direitos naturais do homem, comunicam-se irremediavelmente com o nosso tempo.
Os socialistas querem o conformismo forçado (aceita, que dói menos, a ideia da humanidade passiva, o líder dos democratas (tudo em nome da democracia). Uma ditadura temporária (“só até as eleições”, já disse alguém). Os socialistas ignoram a razão e os fatos (o famoso “negacionismo do bem”). Um nome famoso e uma ideia má (antes fossem apenas um e uma). Os socialistas querem a ditadura (com seu ditador de estimação, claro). A paixão do mando (de um editor-chefe, por exemplo). O destino dos não conformistas (perdeu, mané?). Verdadeiros shots de sabedoria em pouco mais de 50 páginas que nos parecem terem sido escritas aqui e agora.
Seria mesmo o governo responsável por tudo a respeito de seus cidadãos e, por conseguinte, legítimas as restrições impostas pelo legislador em nome do bem-estar coletivo, da promoção da igualdade, da equidade, da justiça social, da dignidade da pessoa humana, da felicidade ou de qualquer outro fim a que se destina determinada sociedade? Um peremptório “não” ecoa através dos tempos.
A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis.
Bastiat, portanto, parte da perspectiva do indivíduo para aceitar como legítima apenas a organização coletiva cujos limites de atuação repousam na manutenção do direito de cada um. A lei é “a organização coletiva do direito individual de legítima defesa”; não pode ter outra finalidade que não a de “proteger as forças isoladas que ela substitui”.
Ele destaca que, quanto mais a Lei se limita ao seu verdadeiro papel (garantir a liberdade e a propriedade), mais sólidas as bases sociais, a exemplo dos Estados Unidos . Ademais, se a Lei tira de algumas pessoas aquilo que lhes pertence e dá a outras o que não lhes pertence, beneficiando-se um cidadão em detrimento dos demais, estamos diante de um clássico exemplo de espoliação legal. Quando a lei se converte em instrumento disso, nefastas são as consequências para a sociedade, desde a perda da noção do justo e do injusto, do conflito entre a lei e a moral, passando pela perpetuação do ódio e da discórdia e, claro, a eclosão de confrontos sociais.
Não surpreende, portanto, a realidade diametralmente oposta à dos americanos em que se encontravam os países socialistas, nos quais a espoliação legal já se multiplicou e se organizou de forma sistemática de infinitas maneiras: protecionismos, benefícios, subvenções, incentivos, imposto progressivo, instrução gratuita, garantia de empregos, de lucros, de salário mínimo, de previdência social, de instrumentos de trabalho, gratuidade de crédito etc. (…) A ilusão dos dias de hoje é tentar enriquecer todas as classes à custa umas das outras. Isso significa generalizar a espoliação sob o pretexto de organizá-la.
Por que, então, verificamos reiteradamente o desvio de finalidade da Lei, ou, nas palavras de Bastiat, sua perversão? Por que produzimos tantas leis pervertidas? Duas seriam as causas: (i) a ambição estúpida e (ii) a falsa filantropia.
Em relação à primeira, conclui o francês que, apesar de a autopreservação e do autodesenvolvimento serem uma tendência do homem, há, ainda outra “tendência fatal da humanidade”, que é a de evitar o sacrifício, de forma que uns sempre buscarão prosperar às expensas de outros. Cada classe, cada categoria que consegue entrar no sistema, ao invés de se insurgir contra a espoliação legal da qual sempre foi vítima, passa a atuar de forma a garantir meios de se beneficiar também através da Lei.
A segunda causa está relacionada à ideia de fraternidade forçada, em que a lei se torna um instrumento de espoliação buscando promover a igualdade tirando de algumas pessoas para beneficiar outras. Bastiat critica veementemente a ideia — que para muitos ainda encontra eco — de que o legislador seria um ser superior apto a dirigir as habilidades e o destino de todos os cidadãos, arranjando, organizando e regulando a humanidade rumo ao progresso. O autor afirma que o legislador atua de forma a sujeitar a humanidade “à tirania filantrópica de suas próprias invenções sociais” de forma insidiosa, despótica — “aspirando somente a fazer leis”.
O leitor pode questionar se o autor não se preocupa com os problemas sociais. De que forma seriam eles resolvidos sem a fraternidade forçada? Para Bastiat a solução dos problemas sociais também reside na liberdade. O fato de a humanidade não ser obrigada a ser fraterna não anula o exercício de suas faculdades, de seu instinto de, livremente, prestar caridade, associar-se e se organizar para resolver seus problemas.
A ideia do autor posta à prova levou-o à conclusão de que “os povos mais pacíficos, mais felizes e mais cheios de moral (…) são aqueles nos quais a lei intervém menos na atividade privada”. Merece destaque que, em outubro de 2019, uma pesquisa da CAF (Charities Aid Foundation) apontou que os Estados Unidos assumiram a liderança da pesquisa sobre os povos mais solidários do mundo há 10 anos, com uma cultura muito forte de doação de tempo e de dinheiro para as ideias que eles acreditam serem importantes para a sociedade. Mas os socialistas ignoram a razão e os fatos.
Qual seria, então, a solução contra a espoliação legal? Para ele, diante dos únicos três cenários possíveis em que (i) poucos espoliam muitos; (ii) todos espoliam todos e (iii) ninguém espolia ninguém, apenas no terceiro, o da espoliação nula, impera a justiça, a paz, a ordem, a estabilidade, a harmonia e o bom senso e, portanto, seria defendido por ele até o último de seus dias que, lamentavelmente, não demorou a chegar.
A Lei é uma ode à Liberdade. Não traz uma solução fácil para o caos instalado pelo socialismo. O destino dos não-conformistas hoje parece o mesmo de ontem: “você é […] um inovador perigoso, […] está abalando as bases sobre as quais repousa a sociedade” (a democracia). Demanda uma mudança profunda da sociedade, pois “enquanto os homens imaginarem que sua relação com o estado é a mesma que existe entre o pastor e seu rebanho, tudo permanecerá como está.”
Mas ser difícil não reduz a importância da luta, afinal, somos destinados ao progresso, a experimentar o pleno desenvolvimento de nossas faculdades, de nossos talentos, e a liberdade é pressuposto para o franco exercício de tudo isso: a humanidade detém tudo que é necessário para que ela cumpra seu destino, livremente. Não poderia o autor deixar de concluir sua obra sem bradar, enfim, pela liberdade:
“E posto que se infligiram inutilmente ao corpo social tantos sistemas, que se termine por onde se deveria ter começado: que se rejeitem os sistemas; que se coloque, por fim, a Liberdade à prova — a Liberdade, que é um ato de fé em Deus e em sua obra”.
*Belle Borges é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília e pós-graduada em Gestão Pública e em Direito Processual Civil. Trabalha há mais de 10 anos na Câmara dos Deputados, onde atua com processo legislativo. Atualmente é Diretora de Eventos do Instituto de Formação de Líderes – IFL Brasília e assessora regimental na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados.