Os demônios
Era um país capitaneado por figuras sombrias, tanto na falta de transparência do seu agir quanto nas condutas em si, imprevisíveis em sua irreverência diante das normas jurídicas convencionadas por uma sociedade inteira. Naquela terra, magistrados calavam, caçavam (com “ç”!) e detinham oponentes sem base legal plausível, embora sempre imbuídos do “nobre” propósito de defesa de uma democracia supostamente em risco. Reunião coordenada por ex-mandatário para criticar a cúpula togada, prints de conversas em WhatsApp e até convocações em redes para manifestações pacíficas eram usadas, pela cúpula togada, como fundamentos para a efetivação de buscas e prisões de pessoas fora de sua jurisdição, às quais o censor-mor do tribunal supremo imputava o planejamento de um “golpe” contra a ordem democrática. Tratava-se de medidas constritivas muito gravosas, tomadas por um magistrado autodesignado como “alvo” dos tais insurretos – e atuante como vítima e juiz a um só tempo -, sem que as pessoas privadas de sua liberdade e intimidade tivessem colocado pelo menos um tanque nas ruas ou iniciado manobras efetivas com vistas à remoção violenta dos poderosos de suas luxuosas cadeiras.
Lá, onde os únicos crimes passíveis de punição pertenciam ao domínio da retórica, o mais divino dentre os deuses de toga chegava a proibir que advogados dos “golpistas de papel” conversassem entre si, estendendo a incomunicabilidade das pessoas dos detentos para as de seus causídicos, o que figurava como atentado visceral contra as liberdades e as prerrogativas da advocacia. Na mesma toada, agente da polícia federal, sob a chancela dessa “divindade” suprema, transcrevia conversas entre um investigado em uma suposta agressão ao mesmo divino em aeroporto estrangeiro – jamais vista ou comprovada – e seu causídico, em mais uma afronta à inviolabilidade dos advogados. Mas quem haveria de corrigir abusos de ser tão “sublime”?
Nos tempos de folia, prosseguiam as singularidades dos mandachuvas, e havia até agremiação carnavalesca, prestigiada por ministro de estado e por pré-candidato ao executivo do maior município local, que trazia uma ala de policiais militares mostrados ao público como demônios. Em terra tão carente de liberdade de expressão, onde a crítica a supremos magistrados costumava ser passaporte carimbado para o banimento e a cadeia, a demonização de integrantes de instituição de estado e agentes de lei arrancava risadas de um público lançado à bandidolatria.
Para culminar, o chefão daquela terra abençoada por Deus ainda se dava ao luxo de financiar organismo terrorista e de equiparar as condutas dos herdeiros do holocausto a práticas nazistas. Tudo sob o silêncio cúmplice de togados que já haviam, há muito, deixado de guardar a Constituição do país e passado a zelar por sua “ética” própria como verdadeiros “homens-deuses”. Seres que, de tão soberbos e inebriados pela total ausência de freios aos seus caprichos, pareciam atuar como veículos de disseminação do pânico, da insegurança e do caos em direção ao nada. Seriam tais atitudes sintomas do mal sob a forma do poder ilimitado, do desejo de destruição da ordem estabelecida e da certeza estúpida de uma autossuficiência humana?
Em obra-prima publicada, no Brasil, sob a expressão que dá título a esta coluna, o escritor russo F. Dostoievski, no seu único livro de cunho assumidamente político, aborda com genialidade todos os temas acima para refletir sobre sua Rússia do século XIX. O romance foi inspirado pelo assassinato, em 1869, de um estudante por uma organização de extrema esquerda, dirigida, com despotismo, por um líder radical, que não tolerava dissidências, muito menos divergências. No desenrolar da trama, passada em uma região interiorana e descortinada por um narrador-personagem que parece onipresente e onisciente, o leitor é apresentado a duas gerações consecutivas, sendo a primeira de socialistas românticos e utópicos (grosso modo, um preceptor, sua benfeitora e a governadora da localidade) e a segunda composta pelos jovens revolucionários por eles gestados.
A força maligna destrutiva presente nos “personagens demônios” da primeira geração se manifesta, apesar da comicidade de certas cenas das primeiras páginas, em aspectos como, por exemplo, o abandono, pelo professor, de seu filho único, a tolerância complacente da benfeitora com a grosseria e a libertinagem de seu próprio rebento, além do constante anseio da governadora da província (esposa do governador, embora fosse ela a “empoderada”) de se mostrar alinhada ao progressismo e aos valores dos jovens – ou à falta destes. Aquele ambiente permissivo acaba por germinar o caráter dos tipos da segunda geração, estes sim dispostos a se lançarem na destruição de todas as instituições e do próprio indivíduo, seja via homicídio ou suicídio. O mal, enxergado por Dostoievski como um parasita sempre à espreita de cada um de nós, humanos, migra da primeira para a segunda geração de personagens, e nestes atinge sua plenitude destrutiva.
A obra apresenta uma crítica ácida ao socialismo – velho conhecido de Dostoievski, com o qual o autor já havia flertado em sua juventude -, desnudando um modelo coletivista perverso de sociedade, que, anos mais tarde, viria a ser o novo flagelo da Rússia a partir de 1917. A propósito, vale aludir a trecho sobre o “projeto” social de um dos jovens revolucionários da segunda geração de personagens: “no esquema dele, cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos, recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa (…) é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! (…) A um Cícero, corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas[1].”
Nem é preciso muita sagacidade para imaginar que tamanha fúria viesse a culminar em incidentes trágicos como um incêndio doloso, o homicídio de um estudante dissidente do grupo revolucionário após sua conversão ao cristianismo, a instigação ao suicídio como meio de “eliminar provas” de delitos, e até uma confissão sobre abusos sexuais. Os “parasitas” malignos que possuíram gerações de humanos – tanto que, em outros idiomas, o romance foi publicado sob o título “os possessos/possuídos” – só conduziram a uma trágica arquitetura de destruição. Não à toa, Dostoievski inseriu, como segunda epígrafe ao livro, o seguinte trecho do Evangelho, chave para sua compreensão:
“Ora, andava ali, pastando no monte, uma grande manada de porcos; rogaram-lhe que lhes permitisse entrar naqueles porcos. E Jesus o permitiu.
Tendo os demônios saídos do homem entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, e se afogou.” – Lucas, 8, 32-6
Em sua fase madura, o autor, criado sob os princípios da religião cristã e das tradições de seu próprio povo – características bem raras na intelectualidade russa daquele século –, teve de revisitar seu passado socialista e as figuras niilistas com as quais havia privado para concluir que, se Deus não existe e se o próprio homem se pretende “divino”, então tudo passa a ser permitido, e começa a ser pavimentada a rota para a destruição das sociedades. A obra de Dostoievski nos provê a exata dimensão do potencial de aniquilação do homem sem Deus, quer seja este entendido em seu conceito tradicional (metafísico), ou em acepção mais ampla, como instância normativa estabelecida ao longo de gerações. À margem de um conjunto de regras pactuadas como condição indispensável ao convívio humano, todos nós, seres humanos imperfeitos e falíveis, nos tornamos “endemoniados” e nos lançamos ao precipício, matando uns aos outros e, ao final, a nós mesmos. Em ambiente de desrespeito ao império da lei, sobram a gastança ilimitada, a irresponsabilidade fiscal, o arbítrio e a anomia, que nos conduzem ao nada, destino fatal dos porcos “possuídos”. Haverá de ser o fado de todos os grupos sociais que não manifestarem a coragem e a determinação de expulsar seus “demônios” internos para, somente então, encontrarem sua redenção na institucionalidade das democracias liberais.
[1] Ed. 34, 2011, página 407