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Areopagítica, de John Milton, e a defesa da liberdade de expressão

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John Milton (1608 – 1674) foi um dos grandes expoentes da defesa da liberdade de expressão, do constitucionalismo e de outras ideias liberais. Embora autor de obras perenes, tanto na prosa quanto na poesia, participou ativamente dos acontecimentos de seu tempo, de modo que vários de seus escritos políticos foram redigidos com fins práticos imediatos, como os textos que se contrapunham às tentativas de restauração da monarquia ou como a sua famosa Areopagítica, um discurso pela liberdade de imprensa publicado contra a pretensão do parlamento inglês de reestabelecer a censura.

Milton nem sempre foi republicano. Seu posicionamento tendeu apenas gradativamente para uma rejeição cada vez mais enfática da monarquia. Suas mudanças de opiniões acerca de determinados assuntos políticos não indicam, porém, incoerência, mas refletem seu esforço em se manter fiel a seus princípios em meio aos eventos tumultuosos da guerra civil inglesa e seus desdobramentos.

O regime que ele defendia não era nem monarquia, nem aristocracia, nem democracia, mas “uma mistura que reconhece as pretensões de cada uma delas, um equilíbrio divino e harmoniosamente afinado”.[1] Nesse Estado misto, o poder político decisivo não deveria pender nem para o rei, nem para o povo, mas para os homens mais hábeis que governam com o consentimento do povo, expresso na eleição do Conselho Geral.

Para que esse sufrágio “quase democrático” tivesse êxito em eleger esses homens nobres, dignos, prudentes e verdadeiramente notáveis na sua dedicação ao serviço público, a educação, segundo Milton, seria fundamental, pois somente através dela o povo adquiriria aptidão para fazer a melhor escolha e os escolhidos adquiririam aptidão para governar. Esse Conselho Geral dos homens mais competentes escolhidos pelo povo para servir ao bem comum é o fundamento de um governo livre e justo, próprio de uma nação livre e inspirada pelos preceitos cristãos:

“E que governo mais se aproxima deste preceito de Cristo, senão uma nação livre, onde aqueles que são mais preeminentes são servos perpétuos e labutam pelo público à sua própria custa e negligenciam seus próprios negócios; todavia não se elevam acima de seus irmãos, vivem em sobriedade com suas famílias, caminham pelas ruas com os outros homens, pode-se lhes dirigir a palavra livremente, com familiaridade, de modo amistoso, sem adoração.”[2]

Conquanto o Cristianismo perpasse inclusive suas obras políticas, é importante notar que seu propósito vai no sentido de distinguir os poderes eclesiástico e civil, donde seu empenho por uma reforma tanto na política quanto na religião, uma vez que uma e outra se encontravam contaminadas pela ausência dessa separação: “… tanto a nação como a religião, no longo prazo, se assim for, florescerão na cristandade, quando os que governam discernirem entre civil e religioso, ou quando aqueles que assim discernem forem aceitos para governar.[3]

Na sua luta contra o episcopado, Milton sustenta que o poder político dos bispos é uma ameaça à liberdade cristã. Uma nação livre deve proteger a liberdade de consciência, sendo a liberdade uma meta para a vida política. A ideia de liberdade em Milton, porém, é complexa, podendo ser dividida em três: a liberdade religiosa, a liberdade doméstica e a liberdade civil. A sua Areopagítica deve, portanto, ser lida sem perder de vista essa divisão[4].

O referido discurso foi publicado em 1644. Tendo sido distribuído em forma de panfleto, é, ele mesmo, um desafio à censura contra a qual pretende argumentar: “quando se atreveu a infringir a lei relativa às licenças para impressão e, no mesmo ato, aconselhar o Parlamento quanto à necessidade de revogá-la, deu a seu discurso, que se tornaria sua mais famosa obra em prosa, o título Areopagitica, assim lembrando a seus destinatários o exemplo clássico de Isócrates e do aerópago ateniense[5]”.

A liberdade requisitada por Milton nesse discurso não é, porém uma liberdade absoluta, ilimitada, sob a égide da qual o indivíduo estaria isento de sofrer reprovações quanto a conteúdos imorais ou sanções e punições quanto a conteúdos criminosos. A defesa do direito de publicar não o impede de condenar os textos danosos. Trata-se da liberdade de investigar, de se comunicar, de se expressar sem a inquisição privada de nenhum censor, de publicar sem restrições prévias. Em sua Segunda Defesa do povo inglês, o próprio Milton assim o resume:

“Finalmente, escrevi, seguindo o modelo de um discurso normal, na Areopagítica, a respeito da liberdade de imprensa, que a determinação do verdadeiro e do falso, do que deve ser publicado ou suprimido, não pode estar nas mãos dos poucos que podem ser encarregados da inspeção dos livros, homens em geral sem conhecimentos e de juízo vulgar, e por cuja licença e prazer, não se tolera que ninguém publique qualquer coisa que possa estar acima da compreensão vulgar.”[6]

O principal tema da Areopagítica era, portanto, a rejeição da censura prévia. A obra representou o marco inicial da tradição ocidental moderna de defesa da liberdade de imprensa e influenciou sobremaneira o pensamento jurídico democrático. Ainda hoje, seus principais argumentos são utilizados como contraposição às renitentes tentativas estatais de retornar com alguma forma de censura.

Antes de escrever esse discurso contra a Portaria do Parlamento para a regulamentação da impressão (na qual era exigida uma licença aprovada pelo governo para que se fizesse publicar qualquer coisa), Milton já havia tido uma obra censurada. Um seu tratado em defesa do divórcio não obteve licença; foi publicado anonimamente, sob acusação de herético e libertino.

Milton inicia a Areopagítica retoricamente com a própria defesa do tratado e prossegue com uma retomada histórica na qual demonstra que, embora na Grécia e na Roma antigas alguns escritos tenham sido queimados e alguns escritores punidos, isso se deu após a publicação das obras e não antes. Somente com a inquisição a censura prévia, fora, portanto, instituída.

Durante o regime dos Stuarts, houve censura, mas, após a revolução de 1640, diversos panfletos e livros passaram a circular livremente. O Parlamento, porém, uma vez vitorioso e fortalecido, pretendeu restabelecê-la, dessa vez a seu favor. Milton, mesmo estando do lado do Parlamento, escreveu o seu protesto contra isso. A lei de licenças representava para ele uma espécie de traição dos próprios ideais da Revolução Inglesa. Ao denunciar o caráter “inquisitorial” da ordenação de licenciamento, Milton sugere que a Igreja presbiteriana, por meio da ação dos seus representantes no Parlamento, poderia se tornar tão tirânica quanto o fora a Igreja conservadora da Inglaterra.

Embora faça uma bela defesa retórica da importância da leitura e dos livros (“um bom livro é o sangue precioso e vital de um espírito mestre embalsamado e entesourado para o propósito de uma vida além da vida[7]”) e demonstre empiricamente a ineficácia da censura pretendida (“o mal se aprende perfeitamente sem livros”), os seus argumentos vão além.

A censura é ruim não apenas porque é ineficaz no combate ao erro e ao vício, mas porque viola a liberdade, que é um valor positivo e necessário para o progresso do conhecimento na busca indefinida da verdade. A censura impede que, no confronto com o erro, a verdade possa emergir, uma vez que a verdade e a falsidade precisam lutar para que a primeira venha a se estabelecer, ainda que provisoriamente. Verdade perfeita, afirma Milton, é apenas aquela que veio ao mundo encarnada no divino Mestre; fora disso, toda verdade é incompleta e parcial. Isso é dito alegoricamente através da referência a um mito egípcio no qual a forma delicada da “virgem Verdade” é cortada em mil pedaços e espalhada aos quatro ventos. Desde então, escreve Milton, “os tristes amigos da Verdade, aqueles que ousaram aparecer imitando a cuidadosa busca que Ísis empreendeu pelo corpo desmembrado de Osíris, foram reunindo seus membros um a um. Ainda não os encontramos todos e nunca os encontraremos.”[8]

A constatação dos limites do conhecimento humano implica tanto a necessidade do pluralismo para o progresso espiritual da coletividade quanto a desconfiança em relação à autoridade dos censores, os quais, para exercer tal função, deveriam ser dotados da graça da infalibilidade e da incorruptibilidade, o que obviamente não é o caso. Todos somos falíveis, inclusive os censores. Tanto os governantes podem escolher mal os licenciadores quanto os licenciadores podem julgar mal os livros. Além disso, as pessoas não podem ser tratadas como crianças necessitadas de tutela: “serão elas levianas, imorais, sem formação sólida, doentes, debilitadas, num estado de tão pouca fé e fraco discernimento que não seriam capazes de engolir nada que não passasse pelo filtro de um censor?[9]

A despeito dessa firme defesa da liberdade de expressão, convém não esquecer que, para Milton, não basta essa liberdade negativa, a liberdade da lei. Mais importante que todas é a liberdade que se tornou possível através de Cristo, que mudou a condição do homem de legal para evangélica[10]. A liberdade real e substancial deve ser procurada dentro e não fora do ser humano; ela depende da sobriedade de uma vida íntegra e não da força das armas. Os homens podem até ser livres, no sentido de não serem tutelado pelo Estado, mas continuarão escravos de si mesmos se não souberem fazer bom uso da liberdade conquistada.

Notas

[1] BERNS, Walter.  John Milton In Strauss, Leo & Cropsey, Joseph. História da filosofia poIítica/Leo Strauss e, Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.395

[2] MILTON, J. Works, VI Apud. BERNS, Walter. John Milton p. 398

[3] MILTON. J. A Treatise of Civil Power Ecclesiastical Causes Apud BERNS, Walter. John Milton p.403

[4] BERNS, Walter. John Milton p.404

[5] Idem. p. 398

[6] MILTON. J. Segunda Defesa Apud BERNS, Walter. John Milton p.405

[7] MILTON. J. Aeropagítica

[8] MILTON, J. Aeropagítica

[9] MILTON, J. Aeropagítica

[10] BERNS, Walter. John Milton p.406

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Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".

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