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Progressismo versus conservadorismo: uma conciliação (Parte 1)

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Progressismo e conservadorismo são termos que, apesar de sempre serem vistos como antagônicos, têm em comum a nebulosidade e aparente falta de consenso em relação a seus significados. Na retórica política, usualmente um conservador pertence ao campo da direita, enquanto um progressista necessariamente seria de esquerda, reforçando o caráter de oposição entre uma coisa e outra. Em países anglófonos é comum que progressive seja usado como sinônimo de leftist (esquerdista) ou ainda liberal (o famoso “liberal no sentido americano”). A oposição entre os campos seria natural, por inevitável, já que o progressista buscaria a mudança contínua, enquanto um conservador buscaria manter as coisas engessadas, o status quo. Tentarei demonstrar que essa oposição, por mais contraditório que isso possa soar, não precisa necessariamente ocorrer; mas antes devo dizer o que afinal entendo por uma coisa e outra.

O progressismo não é propriamente uma escola de pensamento (ao menos com esse nome), com cronologia histórica, autores, dogmas, princípios, etc. O termo foi cunhado como uma derivação da palavra progresso, podendo ser usado, em tese, para toda e qualquer doutrina que tenha o progresso contínuo como um mote. Com justiça, diz-se que o iluminismo, com todas as suas contribuições para o aperfeiçoamento da condição humana, é/foi progressista. Essa também é a opinião do intelectual Steven Pinker, autor de O Novo Iluminismo, livro que tem como intenção ser uma resposta aos pessimistas de todos os tipos, demonstrando, com uma formidável quantidade de dados, que o mundo tem melhorado desde a disseminação dos valores iluministas, que podemos também chamar de valores liberais. Daí eu dizer, como já disse em outras ocasiões, que o liberalismo tem um caráter histórico progressista.

Quanto ao conservadorismo, no linguajar popular ele é frequentemente entendido como tradicionalismo, no sentido social, pudor, moralismo, valores fortemente religiosos etc. Isso, é claro, nada tem a ver com o conservadorismo no sentido político, que é o que nos interessa aqui. O conservadorismo político — e expresso em minhas palavras uma definição que acredito que faz justiça ao pensamento de muitos liberais-conservadores — parte da consideração de que as pessoas são limitadas e sujeitas a erros ao tomar decisões, então faria sentido confiar na sabedoria oculta das tradições, que sobreviveram às provações do tempo, mais do que nos reformadores de plantão. Na prática política, isso não se traduz em engessamento, mesmo porque as tradições se alteram com o tempo, mas na admissão das mudanças graduais em oposição a rompantes revolucionários. Também não se traduz em reacionarismo, que não só é hostil às mudanças graduais, mas ao próprio engessamento, preconizando um retorno a um passado, por bem abandonado, em uma espécie de revolução às avessas.

Com base nessas definições e à primeira vista, progressismo e conservadorismo podem realmente soar intransigentes, afinal, o apego a tradições não é característico do iluminismo. De fato, em The Meaning of Conservatism, Roger Scruton, ao tratar do oponente do conservador, diz que “Seu oponente mais característico e perigoso não é o radical, que se coloca diretamente contrário a ele, armado com mitos e preconceitos que  combinam com os seus, mas sim o reformador, que, agindo sempre em um espírito de melhoramento, encontra motivo para mudar tudo aquilo que ele não consegue ver melhor razão para manter. É desse espírito de melhoria, o legado do liberalismo vitoriano e darwinismo social, que os socialistas e liberais modernos continuam a derivar sua inspiração moral” (tradução minha). Destaca-se que os liberais apontados aqui não são supostos marxistas inconfessos, chamados pejorativamente de liberais no sentido americano entre liberais e conservadores no Brasil, mas liberais clássicos mesmo, o que fica claro ao longo do livro de Scruton.

Muitos também poderiam ver Edmund Burke como um rival do espírito iluminista, sendo célebre por ter escrito a que provavelmente é a mais eloquente crítica à Revolução Francesa, que, a despeito de sua incontestável e indefensável carnificina, é apropriadamente catalogada como uma revolução liberal. É que o liberalismo, bem como o iluminismo, não fala em uníssono, havendo uma distância enorme entre um Rousseau, autor iluminista e principal influência intelectual da Revolução Francesa, e um Tocqueville, por exemplo, fato infelizmente ignorado na crítica de Scruton, bem como de outros conservadores, ao liberalismo. Porém, acredito que seja primeiro em Burke onde podemos encontrar uma conciliação entre um conservadorismo moderado e um progressismo menos abstrato. Embora seja controverso especular se Burke simpatizou de algum modo com a Revolução Americana, é fato que não se esquivou de apontar os equívocos do governo britânico em relação a suas colônias americanas — equívocos esses que precipitariam a revolução —, tendo defendido em um célebre discurso no parlamento britânico a total revogação dos impostos instituídos pelos chamados Townshend Acts, mais especificamente do imposto sobre o chá, o único que ainda teimava em permanecer.

Alguém pode julgar irônico que um reconhecido crítico da Revolução Francesa, como Burke, que não se limitou a criticar suas consequências, mas também suas causas e fundamentações teóricas, tenha não só visto mérito nas queixas dos descontentes americanos, mas tomado partido destas queixas, as quais culminariam na outra grande revolução liberal do século XVIII, ainda antes da Revolução Francesa, registra-se; mas a ironia não tem razão de ser. Apesar da justa alcunha de liberais, as duas revoluções tiveram caráter muito diferentes. Comungo da opinião de Russell Kirk de que o coro de Burke às queixas das colônias tinha um caráter conservador, considerando a leitura de que o governo britânico, ao insistir na “taxação sem representação”, estava se afastando de seus princípios originais, enquanto as colônias americanas, paradoxalmente, estavam sendo mais fieis em conservar tais princípios. Distinguem-se, no caráter das duas revoluções, duas fontes de pensamento iluminista: de um lado o liberalismo continental, inspirador dos revolucionários franceses; de outro, o liberalismo britânico — foi na Inglaterra e datando de um século antes da Revolução Francesa que a Revolução Gloriosa marcou uma inflexão no absolutismo e foi uma divisora de águas no campo da liberdade.

Para demonstrar que a dicotomia progressismo versos conservadorismo não é tão simples assim, cabe citar Benjamin Constant: “O resultado é que governos têm acreditado, ou pretendido acreditar, que eles devem usar a autoridade confiada a eles para conservar um certo corpo de práticas e opiniões, por vezes como as encontram estabelecidas, por vezes como as pessoas disseram que elas o foram alguma vez. A tendência do governo tem habitualmente, neste sentido, sido na direção oposta à natureza e fins da raça humana. Sendo a raça humana progressiva, tudo que se opõe a esse progresso é perigoso, seja ou não a oposição bem sucedida” (tradução minha). Trata-se de um simultâneo elogio ao progresso, identificado como inerente à natureza humana, e uma aparente crítica ao conservadorismo. Contudo, seria equivocado desprender dessa passagem a ideia de que Constant seria um desses reformadores radicais que gestaram o terror revolucionário. Na verdade, o pensador, suíço, mas radicado na França, tinha como influência maior o liberalismo inglês, sendo um crítico do pensamento de Rousseau, bem como dos excessos revolucionários. Estava mais próximo de Burke do que de um Robespierre – e era, como restou claro, um progressista de carteirinha, no sentido histórico do termo.

Espero ter pavimentado o caminho de forma adequada com esta breve (nem tão breve assim) digressão. Onde e como, então, o progressismo e o conservadorismo podem se encontrar? Como as tendências de ambas as correntes no curto prazo costumam parecer mesmo inconciliáveis, acredito que a resposta está no percurso do tempo. Elegendo-se um período significativo de tempo, observa-se que elas não só podem dialogar, como podem absorver e transmutar-se umas nas outras.

(Continua..)

Fontes:

The Meaning of Conservatism — Roger Scruton

On American Taxation — Edmund Burke

The Conservative Mind — Russel Kirk

Principles of Politics Applicable to All Governments — Benjamin Constant

 

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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