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Quem tem medo da Justiça Eleitoral?

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Viver em sociedade civilizada significa exercer suas escolhas sem ocasionar danos a outrem, na plena certeza de que todo aquele que o fizer arcará com as consequências previstas na legislação vigente no país. Assim, quem descumprir contratos, acarretar prejuízos a terceiros ou praticar outros tipos de infrações na esfera cível terá o dever de compensar o prejudicado pelas perdas causadas, enquanto aquele que incorrer em infrações aos bens tidos como os mais preciosos para a coletividade, e por isso definidas em leis como crimes, será privado da própria liberdade.

Porém, o que se passa na rotina social quando os indivíduos perdem a margem de previsibilidade sobre as circunstâncias que podem ou não vir a autorizar o seu encarceramento? Tal indagação, reiteradamente formulada nesse espaço, indica o crescente grau de insegurança por nós experimentado, em boa medida, graças aos abusos do único poder não eleito, ao qual caberia garantir a autonomia de todas as nossas opções, desde que lícitas.

Às vésperas da corrida eleitoral, o Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do nosso Estado (TRE/RJ) acaba de declarar que todos os que criarem tumulto nas eleições poderão ser presos, acentuando, ainda, que “(…) se um eleitor alegar que digitou um número na urna, mas outro apareceu, a ordem é prender em flagrante[1].” O autoritarismo dos nossos togados, que supera seus próprios limites a cada dia, se manifestou, dessa vez, em ameaça grosseira que merece ser analisada em seus dois principais elementos.

O primeiro se refere à hipótese, aludida pelo juiz, de que um eleitor possa suscitar a digitação de um certo número na urna, e a aparição de outro que não corresponda à sua vontade. Ora, caro leitor ávido por exercer sua cidadania, se esse evento de fato tiver lugar, estaremos diante de uma irregularidade ou até de uma fraude, que o indivíduo não só poderá como deverá reportar às autoridades da sua zona eleitoral. Afinal, em poucos dias, iremos participar de uma eleição ou da mera formalização de uma farsa?

Já o segundo trecho, descreve as consequências da manobra fraudulenta. Consequências gravosas, não para os responsáveis pela distorção na urna, mas sim para o eleitor, duplamente punido pelos desmandos alheios: não apenas ficará impossibilitado de tentar fazer valer sua verdadeira opção na urna como ainda será preso em flagrante! E preso sob a alegação da prática de qual crime?

Como também debatido amiúde na coluna, cidadãos só podem ser detidos pela prática de condutas previamente descritas, em lei, como sendo crimes, ou, como se diz no juridiquês, tipificadas como tais. No entanto, a comunicação de irregularidades nas urnas não consta do vasto rol dos crimes eleitorais[2], razão pela qual não pode dar ensejo a um encarceramento. A menos que não estejamos mais vivendo em um Estado de Direito…

Por fim, e não menos importante, a oração “a ordem é prender” denota que ou bem o togado local já se sente tão divino, a ponto de referir-se, quase na terceira pessoa, a uma determinação partida de si mesmo como “a” determinação definitiva, ou ele apenas compactua com as deliberações emanadas de instâncias superiores, das quais cumpre “ordens” – como faria um vassalo medieval ou um burocrata de ditaduras, sem uma gota de coragem para questionar deliberações no mínimo inconsistentes e com mediocridade de sobra para implementar o injustificável.

Seja como for, a fala do magistrado reflete o espírito do nosso tempo, caracterizado por censura, inquéritos instaurados de ofício e sem objeto definido, prisões e confiscos motivados por fatos que não configuram crimes, e, ainda, aparições midiáticas de julgadores que mais parecem políticos de toga. Aliás, refletindo a fixação em reprimir qualquer manifestação dissonante de ideias, vale uma referência especial à Portaria 272/22 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)[3] – que bem pode ser a tal “ordem” mencionada pelo nosso juiz fluminense -, editada com os propósitos explícitos de “monitorar, elaborar estudos e implementar ações para combate à disseminação em massa de informações falsas em redes sociais”.  Resta saber que tipo de ações serão essas, quais os parâmetros usados para a aferição das informações, e, acima de tudo, a quem caberá definir o que é verdadeiro ou falso. Tudo envolto em uma proposital névoa de incógnitas.

Em A Festa do Bode, Vargas Llosa traça um retrato detalhado do círculo do poder e do panorama social da República Dominicana sob a longa ditadura do sanguinário Rafael Trujillo. Como todo autocrata que se preze, Trujillo ganhou os holofotes ao mostrar-se um benfeitor de seu país, libertando-o dos cruéis invasores haitianos, e angariando toda a simpatia da população local. A vitória sobre os estrangeiros lhe valeu a preferência nas urnas, e, dali em diante, sem eleições, oposição ou rivais na disputa pelo poder, o Calígula do Caribe se tornou o soberano absoluto em sua terra, e, aqui, leia-se “sua” em sentido literal, pois todos os imóveis tiveram de exibir, na fachada, a imagem de Trujillo, todos os negócios, incluindo os privados, começaram a depender de seu consentimento, e todos os seres humanos da ilha foram colocados à disposição do tirano. Até mesmo o país passou a ser conhecido como A República de Trujillo.

Graças à promoção de uma degradação moral ímpar, com o estímulo oficial a adultérios, ao consumo de drogas e à prostituição, Trujillo castrou a inteligência de seus compatriotas a ponto de eliminar qualquer capacidade de resistência aos seus desmandos – e, pasme, tudo sob uma aparente legalidade assegurada por um jurista próximo ao ditador, que, de tão porco, o próprio Trujillo apelidava de “constitucionalista bêbado”, e ao qual cabia “confeccionar” leis ao gosto do Calígula e aplicá-las conforme o desejo deste.

Aliás, talvez sejam estas as chaves para o êxito dos autocratas, sejam eles eleitos, fardados ou magistrados: construir uma narrativa verossímil de atuação em prol do melhor interesse de sua coletividade e, assim, legitimar-se no poder, eliminar os inimigos, seja fisicamente ou pelo descrédito público, e, sobretudo, cercar suas condutas com uma aura de legalidade, por mais esdrúxulas que sejam. Será que teremos de ver o nosso país sendo conhecido como A República dos Togados para nos darmos conta dos verdadeiros riscos à nossa democracia?

[1] https://diariodorio.com/quem-criar-tumulto-nas-eleicoes-podera-ser-preso-em-flagrante-afirma-presidente-do-tre-rj/

[2] Artigos 289 a 335 da Lei 4737/65 – Código Eleitoral

[3] https://static.poder360.com.br/2022/03/SEI_TSE-1967230-Portaria-comissa%CC%83o-Ciber.pdf

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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