Precisamos de mais um projeto de nação?
Esta semana, foi divulgado o “Projeto de Nação: O Brasil em 2035”. Segundo a imprensa, seria um projeto de “governo paralelo” dos militares brasileiros, em um claro “constrangimento aos civis”, além de não passar de um “delírio da extrema-direita” e um “escárnio”.
Especialistas — sempre eles — foram rápidos em levantar teorias golpistas. Mas seria esse mesmo o objetivo do documento? O que está escrito no “Projeto”? Quem são os seus autores e o que os motivou a elaborar esse documento? Seria a falta de um projeto de nação o grande problema do Brasil?
Os autores
Inicialmente, é importante destacar que o “Projeto de Nação” não foi escrito pelo Ministério da Defesa, Forças Armadas ou Clubes Militares — portanto, não é um documento oficial ou uma manifestação de militares.
O texto se originou em think tanks, entidades com personalidade jurídica de direito privado voltadas para a disseminação de ideias. Além de militares — da reserva — , os institutos General Villas Bôas (IGVB), Sagres e Federalista possuem acadêmicos e profissionais liberais civis em seus quadros, com o objetivo de “pensar o Brasil” e apoiar ideias que possam se tornar políticas públicas.
Inclusive, o Instituto Federalista defende um conceito bastante liberal: o do federalismo. A sua missão estatutária é resgatar as “raízes democráticas originárias, concretizada no autogoverno das primeiras cidades fundadas no Brasil”. Portanto, o “Projeto de Nação” se originou de indivíduos — civis e militares — em livres associações voluntárias. Belo e moral.
Mas, se, na forma, o documento nasceu liberal, e quanto ao seu conteúdo?
O Projeto de um Brasil potência
O Projeto de Nação é dividido em duas partes. A primeira parte é um estudo prospectivo, o qual apresenta um cenário hipotético no ano de 2035, onde vigora uma ordem global multipolar e o Brasil surge como potência regional e com grandes avanços socioeconômicos. Na segunda parte do documento, somos apresentados às diretrizes de políticas públicas — ou à Estratégia Nacional — que, se aplicadas, conduzirão a nação para um futuro melhor.
Na visão dos autores, o cenário base para o mundo daqui a 13 anos é uma ordem mundial multipolar, onde a Europa, Índia, Rússia, Brasil e Austrália são potências regionais e os EUA e a China dividem o protagonismo global.
O primeiro questionamento que pode ser feito ao documento é o quão viável é projetar cenários tão distantes se não conseguimos sequer prever uma guerra a poucos dias de sua deflagração. É uma característica dos seres humanos a incapacidade em aceitar a desordem natural do mundo. Cremos sermos capazes, se nos dedicarmos com afinco, de controlar tudo, desde as “falhas” de mercado até o rumo da História.
Em 2035, o Globalismo, definido pelos autores como a tentativa de criar uma governança supranacional para gerenciar as crises ao redor do mundo, ainda está “longe de se concretizar”. Porém, o “ultracapitalismo” (sic) possui grande poder, capaz de suplantar os interesses nacionais. Nesse trecho — que poderia ter sido escrito por um ideólogo marxista — , aflora o sentimento anticapitalista, no qual o capitalismo é culpado por restrições ao livre mercado, mesmo que a realidade fática mostre que grandes corporações são gestadas sob coação e interesse dos Estados, os verdadeiros possuidores do monopólio da força.
E quanto ao Brasil? Como ele estará daqui a 13 anos?
Quanto às Relações Internacionais, nosso país mantém a tradicional posição de neutralidade. Somos membros da OCDE, a 6ª maior economia e estamos entre as 50 nações mais competitivas do mundo. A América do Sul foi palco de uma tensão bélica no final da década de 2020, envolvendo os EUA e seus aliados de um lado e a China e Rússia do outro. A disputa era por recursos naturais na Guiana e a solução encontrada foi restringir a mineração em todo o continente sul-americano, prejudicando também o desenvolvimento do Brasil. A Amazônia, claro, ainda é alvo de cobiça internacional em 2035, mas, agora, a população finalmente entende isso e seus representantes eleitos aumentaram o orçamento das Forças Armadas, incluindo Defesa Cibernética.
E internamente só melhora! Finalmente estaremos livres do patrimonialismo, do fisiologismo político e da corrupção. Nossa sociedade suprimiu ideologias radicais e vivemos de forma coesa, mesmo tendo passado por outra pandemia em 2028. Continuamos sendo uma potência agrária, garantindo a segurança alimentar mundial. A indústria 4.0 impulsionou o desenvolvimento nas regiões Norte e Nordeste do país. Nossa malha ferroviária triplicou na última década e a navegação de cabotagem responde por 15% de toda a logística. As energias eólica e solar são destaque em nossa matriz energética (sintomático não haver nenhuma menção à energia nuclear!).
A nossa educação? Temos melhores professores — sem ideologias nefastas — e nossos alunos tiram boas notas nos testes internacionais. A saúde também melhorou muito após o marco do saneamento básico, aprovado em 2020, e após reforma do SUS, que agora cobra daqueles que possuem renda superior a 3 salários-mínimos.
As Diretrizes
Como foi que o Brasil conseguiu todos esses avanços em apenas uma década?
A resposta é simples. A população brasileira, majoritariamente “conservadora evolucionista e liberal com responsabilidade social”, decidiu participar dos rumos do país para retirar as alas fisiológicas e radicais do poder político e pôr em prática as diretriz expostas no próprio “Projeto de Nação”.
As diretrizes são bem amplas e genéricas, segundo os próprios autores, para que sejam politicamente aplicáveis por governos diferentes. Vão desde platitudes como “ampliar e diversificar parcerias com atores internacionais relevantes” até objetivos bem específicos como construir uma ferrovia até o Oceano Pacífico.
Quanto à economia, os autores do Projeto de Nação definitivamente possuem uma visão social-democrata. Defendem a livre iniciativa com regulação do governo para coibir as falhas de mercado e intervenção estatal nos “setores estratégicos para a soberania nacional”. Nada de novo sob o sol.
Porém, o documento falha justamente por não ser o que seus críticos dizem que ele é: um programa de governo. A maioria das diretrizes são como wishful thinking, o que permite que sejam utilizadas por políticos de qualquer lado do espectro ideológico, basta florear o discurso. Os nossos problemas não são por falta de boas intenções, mas por ignorar os resultados decorrentes de aplicá-las.
Conclusão
De acordo com o “projeto”, o Brasil de 2035 já começou a ser construído hoje. As eleições de 2018, fruto de uma inquietação de “conservadores-liberais”, foi apenas o início. A partir daí, agentes políticos serão tomados por uma súbita motivação patriótica e afastarão os corruptos e radicais.
Em nenhum momento, o documento ataca o sistema de incentivos perversos existentes na democracia brasileira, exitosa em concentrar benesses a grupos de interesse e externalizando custos difusos à sociedade.
Não há uma proposta de aprimoramento do Pacto Federativo. Não apresenta uma reforma tributária ou administrativa — nem defende as que se encontram em tramitação. Sequer enfrenta o problema fulcral da disfuncionalidade do Estado brasileiro: a Constituição Federal.
Apesar de algumas boas ideias constantes no documento, é inegável que o Positivismo ainda é uma herança intelectual no Brasil. O Projeto de Nação reflete a crença de que a ignorância do brasileiro é o grande empecilho para o avanço do país e, por isso, deve ser melhor educado — incluído educação de moral e cívica — para entender o que só a elite está enxergando.
A solução não passa por “fortalecer o Poder Nacional” em uma direção certa, como defendem os autores. Foi limitando o poder de seus mandatários que as nações se desenvolveram. Os nossos esforços deveriam estar focados na emancipação do indivíduo, não em sua condução.
Quanto mais o Estado planeja, menos liberdade para o indivíduo.