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Por que o Exército Russo não é aquilo que esperávamos

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Neste texto, pretendo explicar o péssimo desempenho do Exército Russo nesses quase 60 dias de conflito na Ucrânia, mas primeiro preciso falar um pouco do livro Porque as Nações Fracassam. Um dos pontos de Daron Acemoglu e James Robinson é que, apesar de nós acreditarmos que os países pobres não tenham dinheiro para oferecer bons serviços públicos para a população, o mais provável é que aconteça justamente o contrário: as nações até têm tais recursos, mas os alocam muito mal. Em outras palavras, não é que as nações pobres não tenham dinheiro para transformar os seus países em ricos, mas são mal organizadas. 

Nações ricas são organizadas para criar os incentivos e oportunidades corretos para os seus cidadãos. O mesmo tende a não acontecer com os países pobres. Um dos exemplos citados por Robinson é uma comparação entre Bill Gates e Carlos Slim. Se, por um lado, Gates ficou rico através de inovações tecnológicas, Slim o fez através da criação de monopólios. Por isso, enquanto Gates fez o PIB americano crescer, Slim teve efeito contrário no PIB mexicano – de acordo com a OCDE, o bilionário mexicano causou redução de 2% ao ano entre 2005 e 2009. O resultado lógico demonstrado é que monopólios excluem oportunidades para outras pessoas, bem como seus incentivos.

Agora, por que alguns países conseguem ter instituições inclusivas e outros não? Por que alguns países se tornam como os EUA, em que todos são iguais perante a lei, e outros acabam como o Brasil? Vale lembrar que somos recordistas em pessoas com foro privilegiado (45 mil) e funcionários públicos aqui não são demitidos por incompetência.


Isso acontece porque nos EUA o poder político foi bastante distribuído entre a sociedade após a guerra de independência. Assim, os revolucionários das 13 colônias (também conhecidos como os “Pais Fundadores”) não detiveram o controle absoluto, abriram mão dele e entregaram parte à população – especialmente aos estados. Em outras palavras, os EUA foram forjados para não ter uma oligarquia com um poder incontestável. No Brasil isso obviamente não aconteceu – e nem na Rússia -, e é nesse ponto que começamos a falar do desastre russo.

Nunca houve de fato uma distribuição de poder no país de Putin. Mesmo séculos antes do carniceiro de Moscou dar as caras no Kremlin, esse poder já era concentrado. Antes estava nas mãos dos Romanov, a família imperial russa; mas depois de assassinados pelos bolcheviques, o poder se concentrou nas mãos do partido – ou seja, não findou sendo dividido com o restante da sociedade. 

Os homens do partido estavam no topo da hierarquia nas principais instituições soviéticas, incluindo a poderosa KGB e o Exército Vermelho. Até houve raros Comandantes Supremos do exército soviético que não eram filiados ao Partido Comunista. Por exemplo, Jukums Vācietis – não é de se surpreender que ele foi morto no Grande Expurgo de Stalin -, mas essa não era a regra. Já na KGB, tal aberração nunca aconteceu.

O Partido Comunista tinha células suas em cada escritório da KGB, que tinha o poder de controle sobre os agentes, que por sua vez respondiam a tais comissários comunistas. Como é de se imaginar, era o partido que definia os ocupantes dos quadros da instituição, incluindo suas lideranças, nunca sendo comandada por oficiais de carreira. Para ilustrar bem, temos o exemplo de Iuri Andropov, que foi o comandante mais longevo da organização. Como foi trilhada sua carreira? Em primeiro lugar, Komsomol, uma espécie de Juventude Hitlerista dos comunistas soviéticos. Depois, passou por diversos cargos no partido até chegar ao posto de secretário do Comitê Central. Somente aos 53 anos ele foi nomeado chefe da KGB.

Isso é uma boa ilustração de como um regime de partido único funciona. Você tem instituições estatais que são teoricamente poderosas, mas isso é uma ilusão. Todas as decisões dos quadros, todas as decisões políticas são dirigidas por uma organização política, o Partido. O Partido manda, o resto obedece. Até a morte de Stalin, não era bem assim: as forças de segurança do estado (policiais, KGB, serviços de inteligência) detinham enorme poder. Porém, uma vez que o responsável por Holodomor “bateu as botas”, foi a vez de o partido se vingar daqueles responsáveis pela execução dos expurgos na década de 30. 

Podemos ver esse fenômeno ao comparar as constituições soviéticas. Na de 1924, o partido comunista nem sequer era mencionado. Na de 1936, ele era mencionado em somente um artigo, como uma de muitas ONGs. Porém, na de 1977, o poder dos comunistas fica explícito: “O Partido é a força dirigente, organizadora e o núcleo do Estado. O Partido determina a direção geral do progresso, a política externa e interna da URSS”. Mais uma vez fica claro que, ao contrário do que ocorreu nos EUA, os bolcheviques não estavam interessados em dividir o poder. Tal artigo foi anulado em 1989 e logo depois a URSS deixou de existir. 

“Dividir para conquistar”. Com o fim do partido, não havia ninguém para colocar as forças de segurança em cheque e, por isso, Bóris Yeltsin dividiu a KGB em várias organizações. SVR fez inteligência estrangeira. O FSO era o responsável pela segurança do Estado. Comunicações e dados ficaram sob a responsabilidade da FAPSI. O Serviço de Segurança Presidencial era a guarda pretoriana de Yeltsin. O que restou da KGB foi primeiro chamado de MB (Ministério da Segurança) e depois FSK – serviço de contrainteligência. 

Porém, ao longo do seu governo, Yeltsin percebeu que precisava das forças de segurança próximas e foi dando mais poder a elas (ele precisava delas como aliados para se manter no cargo). O FSK mudou de nome e tornou-se FSB, cujo trabalho agora não é apenas contra-inteligência, mas também segurança de maneira geral, tendo Vladimir Putin como chefe da organização. Ele elevou os salários e as patentes de vários agentes e permitiu que a liderança do FSB privatizasse grande parte dos imóveis da KGB em Moscou, o que imediatamente os transformou em milionários. Em outras palavras, Putin comprou a lealdade da agência. 

Ao final do governo Yeltsin, os últimos três primeiros-ministros tinham sido ex-agentes de inteligência da ex-KGB. Tamanho era o seu poder que o recém-empossado primeiro-ministro Vladimir Putin brincou em 1999: “Eu quero relatar que um grupo de agentes do FSB infiltrados no governo para o trabalho secreto está desempenhando muito bem sua tarefa”. Reza a lenda que toda brincadeira tem um fundo de verdade e o “fundo de verdade” de Putin na realidade era este: “Nós, as forças de segurança, ocupamos todos os espaços do Estado com sucesso. Se no passado éramos paus-mandados do Partido, agora o poder pertence a nós”.

Após a saída de Yeltsin, Putin assume a presidência da Rússia e as forças de segurança estatais – a FSB em especial – tornam-se a nova oligarquia. Porém, diferente dos czares e dos comunistas, os agentes da antiga KGB não tinham ideologia e não estavam interessados em construir nada. Seu objetivo era apenas enriquecer e se manter no poder, como mafiosos. Por esse motivo, havia pelo menos algo em comum entre a FSB, os czares e os comunistas: nenhum desses grupos estava interessado em dividir o poder, e é nesse ponto que entra o exército russo. 

Da mesma forma que os comunistas destruíram os serviços de segurança interna após a morte de Stalin, a nova oligarquia comandada por Putin não podia permitir concorrentes ao seu projeto. Se há um conceito que nós latino-americanos conhecemos bem, é o de “golpe militar”. Isso era algo que Putin não podia permitir. Solução? Deixar o Exército enfraquecido. 

Militares russos estão entre as classes mais baixas na cadeia hierárquica do país. Em 2021, a máfia russa “Vor v Zakone” (ladrões legais) impôs um tributo a uma base militar russa, fazendo com que suboficiais e oficiais lhes pagassem em dinheiro. Eles visam especificamente veteranos da Síria que tiverem rendimentos por lá. Eles assediam, os ameaçam e os agridem. O líder da quadrilha foi preso, mas liberado em apenas alguns meses. Como vocês podem imaginar, a expressão “ladrões legais” se dá porque na prática eles têm a permissão das forças de segurança para cometer crimes. Eles são a versão russa das milícias cariocas.

Tal ocorrido está longe de ser uma exceção à regra. Os militares russos são constantemente assediados por criminosos e forçados a pagar dinheiro. Nas fotos abaixo, há quatro manchetes aleatórias sobre como os mafiosos obrigam literalmente qualquer militar –  incluindo os que gerenciam os foguetes nucleares – a lhes pagar taxas, como os milicianos fazem no Brasil. Sei que o leitor está pensando: “mas no Brasil, a milícia atinge só gente de baixa importância”. Sim, na Rússia também. Volte à primeira frase do parágrafo anterior.



Essa extorsão contra os militares é uma política deliberada do governo de mantê-los baixos na hierarquia de domínio, e também deixar claro qual é o nível hierárquico deles. É como se as forças de segurança dissessem ao Exército: “Vocês estão abaixo da Máfia”. A FSB propositadamente mantém seus militares nesta posição. É tudo parte de um plano. É claro que a posição mais baixa de todas é ocupada por recrutas. Existem muitas publicações sobre como os recrutas foram forçados à prostituição gay para ganhar dinheiro para os superiores, como pode ser visto na reportagem abaixo.


As forças de segurança do Estado Russo temem uma potencial rivalidade com o Exército. Então elas introduziram vários mecanismos de controle. Um deles é exatamente o mesmo que o Partido Comunista fazia com a KGB: indicar oficiais do partido para os cargos de maior nível hierárquico. Sim, a FSB faz isso com o Exército. Cargos mais importantes nas Forças Armadas são dados a pessoas das forças de segurança sem nenhuma experiência militar. A ideia do Kremlin não é maximizar a eficiência, mas sim reduzir os riscos.

O Exército Russo não tem respeito na sociedade russa nem quando pede 1 minuto de silêncio para seus companheiros mortos na Ucrânia. Vejam o vídeo abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=n1Ch8mx5-UE  

Até houve gente tentando fazer reformas no Exército Russo para modernizá-lo – boa parte do que eles usam são equipamentos da URSS. Um deles foi Anatoly Serdyukov (que obviamente não era militar de carreira), que foi Ministro da Defesa entre 2008 e 2012. Porém, como qualquer reformista, ele incomodou muita gente, especialmente do establishment, e foi retirado do cargo. Em seu lugar, entrou o general Sergei Shoigu, que merece um destaque especial nesse texto no tocante à baixa ineficiência das tropas russas.

Há dois motivos pelos quais ele atualmente ocupa o cargo. O primeiro é porque se trata de uma pessoa inofensiva. Por quê? Bem, compare suas feições com as de Putin.


Conseguiram reparar na pouca semelhança? Pois é, Shoigu não é russo étnico, mas sim tuvan – um povo nativo da Sibéria. Em outras palavras, não há a menor possibilidade de ele tentar dar um golpe, pois sabe que não haveria chance de conseguir o apoio da população, nem do Exército, muito menos conseguir se manter no poder. 

Entre as habilidades de Shoigu está seu instinto de sobrevivência: ele é o único que conseguiu a façanha de estar presente em todas as administrações russas desde o fim da URSS. O que isso significa? Significa que ele é um grande político, capaz de agradar bem a corte em cada nova administração – ou seja, extremamente capaz de maximizar sua sobrevivência política. Para tal façanha, é preciso minimizar a animosidade, o que na prática significa nunca se opor a grupos com interesses poderosos. Serdyukov lutou com grupos de interesse e foi afastado. Shoigu não, e é por isso que ocupa o cargo até hoje (sem dúvida o leitor já pensou em alguns políticos brasileiros de perfil semelhante). 

Apesar de ser um excelente político, Shoigu está longe de ser um militar de alto desempenho. Vejam no vídeo abaixo a linguagem corporal de Putin quando Shoigu lhe diz que tudo na Ucrânia está indo de acordo com o plano. Não precisa ser um “Metaforando” ou um “Ricardo Ventura” da vida para perceber que o presidente russo não confia no seu Ministro da Defesa. O líder russo morde os lábios e se mexe na cadeira incomodado. Ele sabe muito bem qual é a verdade. 

https://www.youtube.com/shorts/48gVhV27js8 

Não é à toa que o desempenho russo nesse conflito é assustador. Certa vez, Nelson Rodrigues disse que o “subdesenvolvimento (brasileiro) não se improvisa, é obra de séculos”. O mesmo vale para o Exército Russo: ele não é ruim por acidente, mas sim por obra de profissional. Os próprios russos sabem disso. Nos dois vídeos abaixo estão os depoimentos de Igor Vsevolodovich Girkin, também conhecido pelo pseudônimo Igor Ivanovich Strelkov, que é um veterano do exército russo e antigo funcionário do Serviço Federal de Segurança. No segundo vídeo, o contexto era o recuo russo dos arredores de Kiev. 

https://www.youtube.com/shorts/hvIEsmOZo8E 

https://www.youtube.com/watch?v=TCXTmF46Y_4 

Por que a Rússia já perdeu tantos generais (8 já morreram até o momento)? Teoricamente, não é para generais estarem na linha de frente, mas por que eles estão lá? Porque a situação no front é uma catástrofe, a Rússia está perdendo e Putin sabe disso. Assim, ele obriga seus principais oficiais a irem para a linha de frente para melhorar a situação. Porém, o Exército Russo simplesmente não está pronto para lidar com guerras convencionais. Ele pode ser muito bom para destruir rebeldes como fez na Síria e na Chechênia, mas contra um exército convencional e altamente motivado, ele tem se mostrado extremamente ineficaz. 

Aliás, sobre a motivação, valem aqui parênteses. Vocês acham mesmo que pessoas que estão na base da cadeia hierárquica de uma sociedade, que são extorquidas por ela, forçadas à prostituição e humilhadas, estarão motivadas para lutar? Claro que não – e um exército desmotivado é um exército vencido.

Agora a pergunta que fica é: sabendo que o Exército estava despreparado, por que Putin resolveu seguir em frente mesmo assim? Bem, essa será uma resposta para um próximo texto. Porém, é importante ter em mente que tal despreparo é uma política de Estado, mais especificamente de uma ditadura monopolista que não quer ser ameaçada ou muito menos dividir o poder. Por isso, o Exército russo é uma instituição fraca e incapaz de ganhar uma guerra convencional.

PS: Agradeço a Kamil Galeev (@kamilkazani) e @mdmitri91 pelos insights e ajuda nas traduções

*Conrado Abreu é empresário e mestrando pela FDC.

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