Por que o Brasil quase não tem ferrovias (e como mudar isso)?
O modal ferroviário passou a ser negligenciado no Brasil a partir da década de 1920, e houve uma sequência de decisões políticas equivocadas que resultaram em enorme dependência do modal rodoviário para escoamento de produção e transporte.
Entenda o histórico do desenvolvimento desta infraestrutura e como esse panorama pode começar a ser revertido.
O Brasil quase não tem ferrovias (relativamente)
A baixa priorização em relação ao modal ferroviário brasileiro se dá em termos relativos. Afinal, a malha ferroviária do país está entre os 15 do mundo com maior extensão, contudo destoa de países com proporções continentais, além de ter uma qualidade aquém.
Os Estados Unidos, por exemplo, possuem uma malha ferroviária quase 10 vezes superior – 293 mil km, ante 30 mil km no Brasil. O contingente brasileiro também está aquém de outros países, como China (124 mil km), Rússia (87 mil km), Canadá (78 mil km) e Austrália (37 mil km), bem como de nações com extensão territorial bastante inferior, a citar Índia (68 mil km), Alemanha (43 mil km) e a Argentina (37 mil km).
Além de menor que em países equivalentes geograficamente, a malha ferroviária brasileira é bastante concentrada: 47% na região Sudeste, enquanto as Regiões Norte e Centro-oeste, juntas, concentram apenas 8%.
Vale ressaltar ainda que mais de um terço da malha brasileira existente foi construída ao longo do Segundo Reinado de Dom Pedro II, no século XIX. Não à toa, grande parte dos trilhos não tem condições operacionais. De acordo com estudo da Agência Nacional de Transportes Terrestres, 30,6% (8,6 mil km) da malha ferroviária não estão sendo usados, e quase um quarto de todo o modal atual (6,5 mil km) é de trechos considerados sem condições operacionais pelos concessionários.
Histórico de ferrovias no Brasil
A maior expansão da linha férrea Brasileira ocorreu entre 1875 e 1920 – à época, o principal modal de transporte. No século XIX, quem obtinha autorização para construir linha férrea no Brasil ganhava uma série de privilégios governamentais, como a prerrogativa oficial de subsídios, privilégios de zonas geográficas e garantias de faixas.
A baixa qualidade das linhas férreas brasileiras se deu graças a um marco regulatório problemático (ou falta deste). Ao contrário da maioria dos países do mundo, no Brasil não houve padronização da bitola de via férrea — a distância medida entre os trilhos —, o que inviabilizou a conexão entre diferentes linhas férreas. Isso resultou na impossibilidade de que uma composição ferroviária que explora determinado traçado transcorra em outros com bitola diferente.
Além disso, além da topografia brasileira, uma subvenção fiscal de 30 contos de réis por quilômetro a partir de 1873 criou incentivos perversos para a construção: os trechos passaram a ser planejados e construídos de forma ainda mais sinuosa, elevando a distância entre cidades ligadas por linhas férreas. Uma herança de tempos do Império que aumenta o custo de logística até os dias atuais.
Após o Segundo Reinado, em 1890, criou-se uma comissão que elaborou diretrizes para dar continuidade ao programa de implantação da malha ferroviária brasileira e ordenar a existente. A proposição inverteu a situação anterior, em que cada empresa apresentava a proposta do local que se interessava em explorar.
A partir disso, o governo arrogou para si, portanto, o protagonismo da construção de ferrovias. Dessa forma, várias linhas consideradas estratégicas foram implantadas, com objetivos de toda sorte, incluindo a construção de ferrovias para “defesa das fronteiras”.
Auge e declínio das ferrovias no Brasil
O apogeu do modal ferroviário foi interrompido no governo de Getúlio Vargas, que iniciou um ciclo de priorização do modal rodoviário. Nos anos 1940, a malha ferroviária já enfrentava diversos problemas, que iam desde locomotivas de baixa potência até traçados completamente antieconômicos.
O problema era tão grave que, na década de 1950, 90% do déficit público brasileiro advinha das ferrovias. Assim, foi criada a Rede Ferroviária Nacional (RFFSA) em 1957, que passou a administrar 18 estradas de ferro da União — quase toda a malha ferroviária nacional. Em busca de sanar o rombo orçamentário, um percentual de tributo sobre combustíveis passou a ser destinado à RFFSA.
Várias linhas férreas deficitárias foram fechadas sob a promessa de investimento estatal em novos projetos posteriormente, que acabaram por não acontecer, sendo as ações integralmente centralizadas no governo até a abertura do mercado em 1990.
A tímida retomada das ferrovias no Brasil
No governo de Fernando Collor de Mello, foi instituído o Plano Nacional de Desestatização, sendo realizadas dezenas de concessões. Todavia, elas acabaram por concentrar as linhas férreas, principalmente, em três grandes grupos empresariais: a América Latina Logística (ALL), a Vale S.A. e a MRS Logística.
A reforma dos anos 1990 gerou aumento de produtividade nas vias férreas. Na última década, as cargas transportadas aumentaram em 30% segundo a ANTT, mesmo com praticamente a mesma extensão de linhas férreas.
Contudo, o principal problema foi que a reforma não cedeu somente a linha férrea, mas também a exclusividade geográfica. Isso resultou na não criação de incentivos concorrenciais para que houvesse ampliação e renovação da malha existente.
As ferrovias atualmente no Brasil
Em absoluto, o Brasil transporta uma carga relevante na malha ferroviária existente. Houve um crescimento na média anual de transporte de carga no modal ferroviário de 3,8% entre 2001 a 2017.
Contudo, tamanha evolução se deu basicamente em virtude da expansão do transporte de minério de ferro, que teve incremento anual de 5,4%, enquanto outras cargas registraram crescimento anual de apenas 0,4%. Dessa forma, o peso do minério de ferro no fluxo da carga ferroviária aumentou de 60%, em 2001, para 77%, em 2017.
A conclusão é que outros setores da economia poderiam ser beneficiados se houvesse uma estrutura da malha ferroviária adequada.
A viabilidade econômica de uma ferrovia geralmente está associada a quando a mercadoria possui mais de 40 toneladas ou quando a distância é superior a 400 km. Contudo, o ideal é haver boa estrutura em todos os modais (ferroviário, hidroviário e rodoviário), porque eles se complementam. Uma lição que parece ter sido perdida por muitas décadas no país.
Dependência do modal rodoviário
As rodovias brasileiras são responsáveis por 60% do que é transportado no país e por escoarem 75% da produção nacional. Houve uma priorização governamental do modal rodoviário no país, em especial a partir do governo de Juscelino Kubitschek em meados da década de 1950.
Contudo, também não significa que elas sejam de boa qualidade: quase 60% delas estão em situação de má conservação, de acordo com levantamento da Confederação Nacional do Transporte.
Tamanha dependência resultou, inclusive, em um poder de barganha desproporcional da categoria dos caminhoneiros. Em maio de 2018, a categoria deflagrou uma revolta (com evidências de locaute), que resultou no bloqueio de 11 dias nas principais rodovias do país, e prejuízos da ordem de dezenas de bilhões de reais.
Os benefícios do Novo Marco das Ferrovias
O PLS 261/2018, denominado o Novo Marco das Ferrovias, é apontado como fator para desenvolvimento da malha ferroviária brasileira.
A proposição abre a possibilidade de que o setor privado possa explorar e ampliar a rede ferroviária por meio de autorizações ou construção de vias privadas, o que pode diminuir o custo de produção no país.
Isso se daria a partir da abertura de espaço e maior segurança jurídica para investimentos da iniciativa privada na construção da malha ferroviária, contribuindo para descentralizar o modal rodoviário.
Diante da tramitação do projeto, foram protocolados 14 pedidos de novos projetos de ferrovias privadas, totalizando R$ 80 bilhões em investimentos para a construção de pouco mais de 5 mil km. Trata-se de uma reforma estrutural que pode ajudar o Brasil a sair do início do século XX quando falamos de transporte sob trilhos.