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Um ‘cale-se’ com caneta tinteiro de sangue

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“Cálice” é uma musica escrita em 1973 por Chico Buarque e Gilberto Gil como uma grave crítica ao período da censura imposta pelo Regime Militar a jornalistas da época. Seu grito “cálice” é uma paronímia da palavra “cale-se”, fazendo de seu uso uma alusão à falta de liberdade de expressão para se criticar o governo então vigente. Em ato contínuo, os autores pedem que seja afastado esse “cálice de vinho tinto de sangue”, dando a entender que a supressão da liberdade de expressão seria uma violência tão grave quanto uma agressão física, por se tratar de um direito humano fundamental.

Nesta última semana, Maria Bethânia, uma das muitas cantoras a regravar esse sucesso, fez uso dessa canção no setlist de seu show para ao final bradar, ininterruptamente, a palavra “inelegível”, em alusão à condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro em oito anos de inelegibilidade em virtude de críticas feitas por ele ao sistema de apuração por urna eletrônica em uma reunião com embaixadores.

Obviamente que o espírito dessa canção em nada coaduna com uma inelegibilidade imposta em virtude de mera opinião, mas a esquerda brasileira de 2023 certamente não tem o mesmo apreço pela liberdade de expressão que a esquerda de 1973.

No momento da criação da canção, a esquerda brasileira encontrava-se em oposição ao regime vigente, seja no parlamento, através do MDB, ou organizada na sociedade civil através das universidades, dos sindicatos e outros agrupamentos. Alguma aglomeração mais radical chegou a usar o expediente do terrorismo e da guerrilha.

Essa era uma época em que a esquerda brasileira considerava fundamental a liberdade de expressão como meio de combate aos estamentos sociais e de condução da sua revolução. Para além da defesa prática do exercício de liberdade de imprensa, os autores clássicos e modernos de esquerda, em regra geral, sempre buscaram defender, de maneira abstrata, a ampla liberdade de expressão, ainda que na práxis socialista a regra tenha sido a repressão à oposição. Destacam-se três autores que são paradigmas do pensamento de esquerda sobre o tema ao longo do processo de evolução da mesma no tempo.

Karl Marx, em obra específica sobre o tema “liberdade de imprensa”, não só defendeu a liberdade de expressão plena como advogava que essa liberdade serviria como crítica ao “Partido” e meio de correção de rumos.

Dentro da “Escola de Frankfurt”, movimento intelectual que repaginou o marxismo para a guerra cultural com novos paradigmas éticos, estéticos e práticos, uma de suas estrelas foi Jurgen Habermas, filósofo que desenvolveu o conceito de democracia deliberativa, afirmando que era a comunicação livre a base para a construção de direitos e do novo homem.

John Rawls, principal pensador da esquerda “social-liberal” americana, em seu livro O Liberalismo Político, no capítulo originado pela palestra As liberdades básicas e sua prioridade, rejeita restrições à liberdade de expressão sobre o conteúdo do discurso, aceitando apenas restrições sobre tempo, modo e lugar da manifestação; destacando-se que o livro em comento é uma resposta e evolução perante as críticas da sua magnum opus “Uma teoria da Justiça”, onde o autor tendeu a ser um pouco mais restritivo no campo da tolerância.

Chega-se à conclusão, portanto, que a esquerda brasileira de 2023 está dissociada não só de suas raízes intelectuais mundiais como da sua própria prática política dentro da sua tradição nacional ao exaltar a condenação de inelegibilidade de Bolsonaro por mera opinião, que sequer trazia elementos de intolerância ou afronta às instituições democráticas, restringindo-se tão somente ao modo de sufrágio com apuração através de uma urna eletrônica que, embora possa ser auditada (de acordo com a posição do TSE), certamente tem menor capacidade de gerar segurança jurídica e institucional do que uma dupla conferência através da impressão do voto em conjunto com sua inserção eletrônica.

Estamos diante de uma ordem inconstitucional de “cale-se”, expedida pelo Tribunal Superior Eleitoral e assinada com caneta tinteira de sangue, contra um cidadão cujas ideias representam, de acordo com a própria urna eletrônica, o montante de 59 milhões de brasileiros, tudo isso sob aplausos, risadas e cantorias de uma esquerda que já vivenciou a importância da liberdade de expressão, mas que se esqueceu de onde veio e o que defende por pura conveniência política, numa grande ironia ensurdecedora.

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Bernardo Santoro

Bernardo Santoro

Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Mestrando em Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política das Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal.

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