O que penso sobre o PL 1904/2024, que equivale aborto após 22 semanas a homicídio

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Mantenho, de longa data, uma posição favorável à legalização do aborto pelo menos até o fim do terceiro mês de gestação. Contudo, não é a legalização que está em debate aqui, e convém dizer isso, pois temos um hábito muito ruim no Brasil de misturar e confundir discussões. O PL 1904/2024 torna o aborto realizado após 22 semanas, mesmo em caso de estupro, crime análogo ao de homicídio simples, com uma pena que varia de 6 a 20 anos. Este projeto teve sua urgência aprovada na Câmara na semana passada, o que significa dizer que não precisará passar pelas comissões temáticas da casa. Comecemos por aí.

Sendo a liberdade a regra e a restrição desta a exceção, toda e qualquer discussão que vise a criar uma nova possibilidade de crime, e potencialmente enviar cidadãos por até duas décadas para a cadeira, deveria ser objeto de grande fundamentação e da mais ampla discussão no Congresso. Portanto, o projeto em questão jamais deveria ser discutido em regime de urgência. Além disso, há o fator de que aborto é um tema complexo e altamente controverso e que qualquer modificação da lei, seja em sentido de maior ou menor permissividade, deve ter amplo debate, tornando, mais uma vez, o regime de urgência inadmissível. Tudo piora quando sabemos que a votação para aprovar a urgência foi “simbólica”. Não só se articulou para evitar a discussão como (e isso vale também para legendas de esquerda, como o PT) para que os nobres parlamentares não fossem “constrangidos” com uma votação nominal.

E por que a urgência? A versão dos proponentes será que esse é um tema muito importante, que se visa a coibir o assassinato de bebês (ou coisa que o valha) e que não há tempo a perder. A versão real é que Arthur Lira quer agradar as bancadas evangélica e conservadora (entendendo aqui socialmente conservadora) com intenção de fazer seu sucessor na presidência da Câmara, que muitos dos parlamentares entusiastas buscam louros políticos na eleição que se avizinha (ainda que temas como aborto não sejam de competência municipal, muitos candidatos o usam para se venderem como “defensores da família”) e que as bancadas governistas, em um momento em que o governo encontra dificuldades, preferiram não se comprometer confrontando a coisa (defendendo uma votação nominal, por exemplo). Em suma, é política e politicagem o que está por trás da aprovação do regime de urgência.

Porém, há também outro fator, que é a ciência de que o que propõem tem viés inflamatório e é muito longe de unânime. Um dos autores do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL – RJ), se gabou de ter 300 votos garantidos para aprovação da proposta. Ora, se há tanta confiança na aprovação, por que o temor da discussão nas comissões? Por que o açodamento? Não pode ser uma inspiração democrática que faz com que se articule para abreviar a discussão sobre algo dessa envergadura.

Como alguém em sã consciência poderia pensar, independentemente de sua posição sobre o PL ou sobre o aborto, que a coisa pode ser votada a toque de caixa, sem debate adequado e sem o sopesamento das consequências? O bom legislador não apresenta projetos para “lacrar” com sua base, mas, antes, pensando nos desdobramentos, bons ou maus, os adequa à realidade. O legislador que não procede assim e prefere “lacrar” inevitavelmente produz contradições. Uma das inevitáveis contradições não tardou a aparecer: a possibilidade de uma vítima de estupro ser condenada a uma pena superior à de seu estuprador. Os proponentes não hesitaram em replicar: “Aumentemos então a pena para estupro”. Ocorre que temos então uma nova contradição: a pena para estupro seria superior à pena para homicídio. O estupro é um crime hediondo que deve ser exemplarmente punido, mas o homicídio o excede em gravidade e deve ter uma punição mais elevada; no entanto, aumentar a pena para homicídio simples implicaria repetir a contradição inicial e potencialmente condenar a vítima a uma pena maior que a do estuprador.

Outros problemas, não tocados no projeto, também podem ser imaginados. Se a morte do feto, após 22 semanas, é reconhecida como homicídio, então quem mata, com dolo, uma mulher nesse estágio da gravidez deveria responder por duplo homicídio? E quem mata sem dolo, como em um acidente, por exemplo, teria dois homicídios culposos a responder? Como esses problemas, certamente outros seriam suscitados com a aprovação dessa lei.

Já adentrando o mérito, é verdade que a maioria da população brasileira é contra a legalização do aborto. Segundo pesquisa do PoderData, realizada em janeiro deste ano, 61% dos brasileiros eram contrários a uma eventual liberação. Ainda que não seja a legalização o ponto aqui, estes números vão em linha com uma postura histórica: contrária à legalização e favorável à “manutenção da lei” em sua forma atual, isto é, com as exceções permitidas em lei.

Pensemos em dois casos extremos: de um lado alguém que, reverberando um feminismo radical, reduza a questão à vontade da mulher, independente de circunstâncias: “O corpo é dela, ela faz o que quiser e mesmo se ela quiser abortar um dia antes de parir, ela deve ter liberdade para fazer”; alguém que, crendo que o aborto deve ser considerado crime em qualquer estágio da gestação, por vê-lo como um assassinato, não importando se o feto tem nove meses ou um mês, defende que nem as hipóteses legais deveriam ser permitidas: “Se a gravidez decorrer de um estupro, a mulher deve ser obrigada a continuá-la, pois a culpa não é do feto”.

Agora, convido o leitor a se perguntar honestamente: quantas pessoas você conhece que se encaixam em um destes dois perfis ou em ambos? É verdade, todos já vimos exemplares de um ou de outro, mas quão representativos eles são da sociedade? Uma análise honesta concluiria que essas posições extremas são a exceção e que a maioria das pessoas adota posições intermediárias, podendo sim ser mais próximas de um extremo ou outro, mas intermediárias ainda assim. A população brasileira é majoritariamente contra a legalização do aborto, mas tampouco ocupa o extremo de defender a proibição em todos os casos. A posição corrente da maior parte dos brasileiros é a manutenção da lei na forma em que está, isto é, proibindo o aborto, com exceção dos casos de estupro, risco à mãe e anencefalia; com o adendo ainda de que punição no caso do aborto ilegal é muito mais branda do que a do crime de homicídio: pena máxima de 3 anos.

Bem se vê que o que vocalizam com o PL 1904 é bem diferente da opinião corrente de manutenção da lei atual. O imaginário popular simplesmente não equivale hoje aborto em caso de estupro, ainda que após 22 semanas, a homicídio, com a naturalidade que supõem os proponentes. Crimes, e especialmente crimes com uma pena elevada, para ser considerados como tal, devem ter um apoio incontestável da sociedade, esta sujeitos às leis. Com exceção talvez de bandidos e indivíduos com certas patologias, quem se opõe a que haja o crime de homicídio? Quem ousaria dizer que o estupro não deveria ser punido? Para estes, bem como para outros tantos crimes de grande gravidade, podemos dizer que temos seguramente um apoio unânime no que se refere à punição. Agora, podemos dizer o mesmo da equivalência penal entre aborto e homicídio? Não, seguramente não. Basta que vejamos a reação que o projeto está sofrendo — destaco que seria grande desonestidade reduzir essa oposição ao projeto ao feminismo radical. Essencialmente, o potencial do projeto é punir até mesmo vítimas de estupro que façam um aborto após o prazo em questão. A ideia de uma vítima de estupro, para além da violência sofrida, ir para a cadeia, só pode gerar reações enérgicas de vários atores da sociedade. Essa disparidade de sentimentos entre uma coisa e outra (homicídio, estupro e aborto) já é outro sinal do despropósito que é equiparar aborto a homicídio.

O projeto, da forma como está escrito, ainda que pareça visar apenas aos casos de aborto resultantes de estupro, abre margem também para os casos de aborto por riscos à vida da mãe, ou de fetos anencéfalos, fato já assinalado por alguns especialistas; isso porque o texto fala em “viabilidade fetal”. Em tese, se um feto de mais de 22 semanas fosse considerável “viável”, mas oferecesse risco à vida da mãe, haveria um imbróglio sobre o que fazer. A ética médica e o bom senso mandam que se dê predileção para a vida da mãe; agora imaginem se isso acabasse sendo desrespeitado por medo dos envolvidos de responderem criminalmente, ou se um processo judicial fosse necessário, postergando um procedimento que talvez seja emergencial e potencialmente custando a vida da mãe? Certamente isso é algo que os “defensores da vida”, autores do projeto, não desejariam ignorar – mas ignoram.

Outra lacuna do projeto é objetividade. Se há um ponto de corte que diferenciará quem está passível ou não de ir para a cadeia, no mínimo, esse ponto deveria ser concreto, objetivo, não sujeito a interpretações ou variáveis. Não é o que ocorre com o tempo de gestação. Em sua redação, não fica claro como será garantido que o tempo de gestação é mesmo de 22 semanas. A realidade é que mesmo um exame como a ultrassonografia está sujeito a erros, sendo que a margem de erro é cada vez maior quanto mais avançada a gestação. Isso abre margem para que mulheres sejam punidas ainda que a gestação não tenha atingido as 22 semanas, ou ainda que, mesmo com um parecer médico e laboratorial que garanta que o limite ainda não foi atingido e há possibilidade do aborto legal, isso venha a ser questionado posteriormente, sobretudo por haver um lapso entre o exame e a realização do procedimento abortivo. Além disso, a própria dificuldade em precisar o tempo de gestação, poderia atuar como desestimulante a médicos e enfermeiros, temendo possíveis punições, mesmo que oficialmente a gestação ainda não tenha atingido as 22 semanas, o que poderia potencialmente restringir o direito ao aborto legal antes mesmo desse prazo.

Muitos podem ficar tentados a responder tais objeções dizendo que 22 semanas é um prazo longo o suficiente para que a mulher, vítima de estupro, avalie os prós e contras e tome uma decisão. Novamente, aqui, o projeto não dialoga com a realidade. Via de regra, os primeiros sintomas da gravidez se apresentam a partir da 5ª ou 6ª semana de gestação. Ocorre que isso pode variar de mulher para mulher, sendo que há mulheres que passam meses grávidas sem saber que o estão. Mulheres que têm ciclos menstruais irregulares, que têm ovários policísticos (que podem dificultar, mas não necessariamente irão inviabilizar a gravidez, fazendo com que uma gestação nesse caso pegue muitas mulheres de surpresa), que têm sangramentos que podem ser confundidos com a menstruação etc. Além da menstruação, outros sintomas podem passar despercebidos por serem mais sutis, ou mesmo por serem associados com outras explicações. Outro sinal típico, o crescimento da barriga, também pode passar despercebido no caso de mulheres obesas, por exemplo. Além disso, embora raro, há o fenômeno da “gravidez silenciosa”, em que as mulheres descobrem a gravidez já no terceiro trimestre, ou mesmo próximo ao parto. Lembremos também que há o falso positivo em testes de gravidez.

Todos esses fatores não deixam de valer para vítimas de estupro. Um caso recente e de grande repercussão foi o de uma gravidez fruto de um estupro da atriz Klara Castanho. Em carta aberta, ela revelou que, após o fato, tomou a pílula do dia seguinte e fez exames. Ela descobriu a gravidez já próxima do final, sendo que, durante todo o período, seu ciclo menstrual se manteve normal, bem como não ganhou peso ou barriga. Como todos sabem, ela optou por dar à luz e encaminhar o bebê para adoção. Portanto, é perfeitamente possível que uma gravidez seja descoberta tardiamente.

Se isso é verdade para mulheres adultas, torna-se ainda mais para meninas, vítimas de violência sexual, muitas das quais, sequer tendo menstruado pela primeira vez, e não raro compelidas ao silêncio, também descobrem a gravidez já mais avançada. Escrevi em 2020 um artigo tratando da indevida exposição de uma menina de 10 anos, por óbvio estuprada, que teve que passar por um procedimento abortivo, vejam só, após a 22ª semana de gestação. Não é, infelizmente, um caso único, e convido o leitor a pesquisar por conta. Dois pontos, contudo, são dignos de menção no caso dessa menina. O primeiro é que, e me lembro muito bem disso, mesmo pessoas energicamente contrárias ao aborto e sua legalização não se opuseram à interrupção da gravidez — provavelmente por terem tido o bom senso de ver como sórdido uma criança ser obrigada a seguir com uma gravidez. Isso é mais uma demonstração de que o imaginário popular está muito distante do que pretendem os proponentes do PL 1904. Outro ponto foi, no outro extremo, pessoas dentre as quais, não tenho dúvidas, se encontram hoje os mais fervorosos defensores da tese de que o aborto deve se equivaler a homicídio sugerindo não só que o aborto fosse negado, mas que a “progenitora”, com seus 10 anos de maturidade, formasse um núcleo familiar com seu abusador. Não, não quero pegar o exemplar extremo e com ele dizer que todos os apoiadores do projeto pensam assim, mas sim demonstrar até que ponto vai um fanatismo, que nesse caso é com certeza religioso.

Para além das “barreiras biológicas”, tratadas acima, que seguramente têm o condão, se aprovada a lei, de compelir até mesmo crianças a serem “mães”, há também as artificiais. Vejo-me obrigado a trazer outro exemplo indigesto, mas pertinente. Em maio de 2022, uma menina de 11 anos teve o direito ao aborto legal negado por uma juíza de Santa Catarina, que ainda tentou constranger a menina a postergar o procedimento. Também aqui, a gravidez havia sido descoberta com 22 semanas de gestação. A menina chegou a ser retirada da mãe e posta em um abrigo; se inicialmente a justificativa era protegê-la do abusador, a própria juíza admitiu que sua manutenção ali visava a impedir o aborto, que, vejam só, ela também qualificou como “homicídio” (se antecipando ao PL 1904, talvez). Aqui, a “barreira biológica” que agora tentam incutir na lei foi ao encontro de uma barreira artificial, esta motivada por uma visão de mundo particular da juíza — visão essa que deve contemplar crianças parindo, ou talvez mesmo um peculiar “núcleo familiar”, já que o estuprador recebeu o tratamento honroso de “pai” na boca da juíza. Após a intervenção de mentes mais civilizadas, a vítima (primeiro vítima de um estupro, depois vítima de um abuso de autoridade) pôde interromper a gravidez e seu martírio.

Se fazem isso com uma criança, apenas imaginem o que não fariam de forma muito mais generalizada se o aborto passasse a ser reputado como homicídio. A combinação das duas barreiras (biológica e artificial) seria o desiderato de antiabortistas ferrenhos. Contemplem uma hipotética vítima de estupro que descobre a gravidez tardiamente, digamos, com 20 semanas; então, ao chegar ao hospital, tem o aborto negado (quiçá, por uma questão de consciência da instituição ou dos médicos); talvez, por escassez de alternativas, procura a justiça; na melhor das hipóteses, encontra um juiz mais civilizado que agiliza tudo o mais rápido possível para lhe garantir seu direito; na pior, seja por uma morosidade clássica, ou por encontrar um magistrado com “peculiares visões de mundo”, não recebe uma decisão favorável em tempo hábil, ou sequer a recebe; 22 semanas se passaram e já não é mais possível realizar o procedimento de forma legal. Tal estado de coisas, que já não seria nada hipotético, significaria, na prática, que vítimas de estupro estariam sujeitas a ter o prazo legal encurtado ainda mais do que o oficial. Isso sem considerar outras medidas protelatórias, que, não tenho dúvida, os proponentes do projeto tentariam aprovar.

O que penso sobre o PL 1904/2024, enfim, é que é um projeto feito sob medida para constranger vítimas de estupro a prosseguirem com uma gravidez indesejada. A equiparação do aborto, mesmo após 22 semanas, ao homicídio, é ridícula e totalmente desproporcional. Se aprovado como está, o projeto criará contradições insanáveis e representará uma segunda violência, essa estatal, às vítimas de estupro, em especial às meninas. Além disso, levando em conta a classe de inspirações e o perfil dos proponentes, não tenho dúvidas de que sua aprovação seria a antessala para coisa muito pior; não há escassez de parlamentares que, dizendo defender “a vida desde a concepção”, já acenaram com simpatias a uma proibição do aborto em absoluto (o famigerado Estatuto do Nascituro não me deixa mentir).

Não poderia, no entanto, encerrar, sem considerar o argumento de que 22 semanas é um prazo deveras avançado, que há chance de viabilidade fetal e que a assistolia fetal, método necessário para fazer o aborto nesse estágio, seria “cruel”.

Comecemos pelo último ponto. A assistolia fetal, longe de ser uma técnica obscura, é recomendada pela OMS em interrupções de gestações acima de 20 semanas. Lembremos que muitas meninas descobrem a gestação tardiamente, sendo a única alternativa para o aborto legal, nesses casos. Ao contrário de dramatizações e espetacularizações, o procedimento é indolor para o feto.

Contudo, há um ponto aqui não há como deixar de considerar. A assistolia é recomendada justamente para que não se corra o risco de o feto nascer com sinais vitais, causando uma dor emocional adicional à vítima de estupro, o que poderia ocorrer com a indução do parto. Se o procedimento é necessário para cessar os sinais vitais, isso é um indicativo claro de que pode haver viabilidade fetal, o que abre a possibilidade de uma discussão ética sobre o procedimento e a alternativa (indução do parto). Não é por acaso que o tema volta e meia retorna ao debate, tendo sido turbinado por uma recente resolução do Conselho Federal de Medicina, vetando a prática, e uma posterior decisão do ministro do Supremo, Alexandre de Moraes.

Faço um adendo aqui para dizer que, se parece impróprio que temas polêmicos como o aborto sejam tratados pelo Judiciário e não pelo Legislativo, também é impróprio que uma autarquia, cuja função é fiscalizar a prática médica, pretenda impor limites legais que a lei não impôs. Os legisladores devem estar ciosos de todos que tentem afanar suas funções, e estes não estão apenas no Judiciário. Nesse caso, a despeito das críticas que sempre faço a Moraes, creio que sua decisão (que nada teve a ver com legalização do aborto, forçoso lembrar), foi correta. Isso também significa dizer que qualquer discussão sobre isso deve acontecer no Congresso – e repito: discussão de verdade, não o que estão tentando fazer. Acho até, levando em conta que a questão não restará adormecida, mesmo que o PL 1904 morra na praia, que é conveniente que o parlamento discuta o tema, de forma sã e sem açodamento, até mesmo para evitar retrocessos que signifiquem novas violências às mulheres.

Diante do dilema ético, acho possível sim abrir uma discussão sobre a indução do parto como alternativa à assistolia fetal, sopesando a viabilidade fetal versus o possível sofrimento emocional de um parto induzido. Também deve ser considerado, além da viabilidade, o possível sofrimento do feto prematuramente nascido, o que seria passível de instigar um virtual limite ao procedimento mais além das 22 semanas sugeridas, hipótese na qual a assistolia seria aplicada a partir das 20 semanas, até o referido limite, a partir do qual a indução do parto seria a alternativa. A opinião médica deve ser escutada, assim como a de psicólogos e de vozes que possam trazer ao parlamento a atenção pelas vítimas de estupro, em especial meninas.

Importante dizer que o que admito discutir é talvez a possibilidade do estabelecimento de um limite legal para o aborto, tendo como alternativa, resguardada, o parto induzido, em qualquer momento da gestação a partir do referido limite. Em qualquer hipótese, não pode ser admitido — exceto talvez por questões médicas de força maior, como riscos à mulher/menina — que uma vítima de estupro seja obrigada a dar sequência a uma gravidez decorrente desse estupro. Aconteça a interrupção por um aborto ou parto induzido, o fator preponderante deve ser a vontade da mulher.

Os que podem se escandalizar com essa posição talvez não contemplem com profundidade o quanto uma gravidez fruto de um estupro pode impor de sofrimento a uma mulher/menina. Naturalmente, todos (ou quase todos) somos capazes de entender a gravidade do estupro, mas é especialmente difícil para nós homens compreender o fato de que muitas mulheres cheguem a concebê-lo como pior até mesmo que o homicídio; e mesmo as mulheres podem desconhecer as raízes do seu repúdio.

Afora as evidentes leituras emocionais, adentremos nas evidências biológicas em busca de uma resposta. Um ponto de partida é o excelente livro A Natural History of Rape:  Biological Bases of Sexual Coercion de Randy Thornhill e Craig T. Palmer. Sabemos, com base em ampla evidência científica, que homens e mulheres possuem diferenças biológicas, inclusive no seu grau e forma de seletividade sexual. Não é apenas impressão, as mulheres são de fato mais seletivas na escolha de seus parceiros. E por que isso ocorre? Pois o ônus de uma gestação, por óbvias razões, recai majoritariamente na mulher: é ela quem carregará o feto por todo o período, além de incorrer em maior risco à sua vida (se hoje essa mortalidade é baixa, em grande parte da história, esteve em patamares bastante elevados). Claro que isso não necessariamente é algo consciente, mas está subjacente na seletividade feminina.

Quando ocorre um estupro, o poder de escolha é corrompido e a seletividade desrespeitada. Na ocorrência de uma gravidez decorrente da violação, a mulher terá um ônus para o qual ela não concorreu de forma alguma. O estuprador, satisfeita sua lascívia, lhe deixa não apenas com o fardo emocional e psicológico, mas também com um ônus “biológico”. É realmente um dos maiores ultrajes que pode haver e a razão para que o repúdio a esse crime seja tão grande tem ramificações biológicas, portanto científicas, bastante enraizadas. Obrigar uma mulher ou uma menina (muitas ainda brincam de boneca) a dar sequência ao produto do coito tenebroso (isto é, a gravidez, reste claro, para que não me acusem de culpar o feto) é coisa de gente medieval.

“Mas muitas mulheres estupradas optam por dar sequência com a gravidez”, replicam, sem perceber que só corroboram meu ponto. Sim, muitas “optam”, e para que isso ocorra é pressuposto que elas tenham o poder de optar. E, se há as que optam, por razões múltiplas, pela não interrupção da gestação, é porque isso é e deve continuar sendo uma questão de foro íntimo. Debata-se o que quiserem debater, mas o resultado não pode implicar, se ainda somos civilização, violentar novamente pela mão estatal quem já sofreu uma das piores violências.

Fontes:

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2425262&filename=PL%201904/2024

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/06/15/autor-projeto-equipara-aborto-homicidio-votos-deputados.htm

https://www.poder360.com.br/poderdata/contrarios-ao-aborto-no-brasil-batem-recorde-e-chegam-a-61/

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/06/pl-antiaborto-da-margem-para-que-interrupcoes-por-risco-a-vida-ou-anencefalia-sejam-afetadas.shtml

https://vidasaudavel.einstein.br/como-calcular-idade-gestacional/#:~:text=Existem%20exames%20para%20descobrir%20a,semanas%20para%20uma%20maior%20precis%C3%A3o.

https://www.saudebemestar.pt/pt/clinica/ginecologia/sintomas-de-gravidez/#:~:text=O%20aparecimento%20dos%20primeiros%20sinais,esperado%20para%20vir%20a%20menstrua%C3%A7%C3%A3o.

https://www.fetalmed.net/gravidez-silenciosa-e-possivel-estar-gravida-e-nao-sentir-nada/

https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/06/26/a-integra-da-carta-aberta-de-klara-castanho-sobre-doacao-de-bebe-e-estupro.htm

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/06/22/cnj-abre-processo-disciplinar-sobre-juiza-de-sc-que-negou-aborto-a-menina-de-11-anos-estuprada.htm#:~:text=O%20Conselho%20Nacional%20de%20Justi%C3%A7a,A%20decis%C3%A3o%20foi%20un%C3%A2nime.

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/20/juiza-sc-aborto-crianca-11-anos-estuprada.ghtml

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/23/menina-de-11-anos-que-foi-estuprada-em-sc-consegue-fazer-aborto-diz-mpf.ghtml

https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/06/17/aborto-legal-o-que-e-a-assistolia-fetal-procedimento-que-sera-alvo-de-debate-hoje-no-senado.ghtml

https://www.metropoles.com/saude/assistolia-fetal-o-que-e-aborto

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2024/06/17/assistolia-fetal-o-que-e-o-procedimento-questionado-pelo-cfm.htm

A Natural History of Rape:  Biological Bases of Sexual Coercion — Randy Thornhill, Craig T. Palmer

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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