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Não, o neoliberalismo não começou em Bretton Woods

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Nas minhas andanças pelo meio universitário, vejo, por vezes, comentários a respeito do “malvado” neoliberalismo. Um desses comentários mais repetidos, não só entre alunos, mas também entre professores, sobretudo aqueles com viés de esquerda radical, é que o neoliberalismo começou no Acordo de Bretton Woods, em 1944, pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial. Bretton Woods é o nome do local onde o evento aconteceu, ou seja, o acordo ocorreu no Estado de New Hampshire, nos Estados Unidos.

Foi a partir desse famigerado acordo que as “instituições de Breton Woods” foram criadas, tais como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o BM (Banco Mundial), além do BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento). Alguns pontos foram acordados neste encontro, que contou com a presença de mais de 40 países, entre eles os EUA e países da Europa, tais como a paridade monetária em dólar, sendo que o dólar detinha o seu fundo em ouro. Além disso, houve uma intensificação na cooperação econômica internacional, sobretudo a fim de garantir a busca por uma estabilidade depois que a Segunda Guerra Mundial terminasse.

Como podemos perceber, isso não possui tanta relação com o neoliberalismo ou até mesmo com a equivocada afirmação da “criação do neoliberalismo”. Bom, para iniciarmos o entendimento da formação de um “neoliberalismo”, precisamos resgatar os escritos de John Stuart Mill, que, em seu livro Sobre a Liberdade, em 1859, já falava numa preocupação com a justiça social e com a igualdade de oportunidades. Mill não abre mão de um mercado livre e do laissez-faire, mas enfatiza a busca pela correção das desigualdades sociais, o que poderia ser considerado como uma falha de mercado.

Ainda no século XIX, o “modelo liberal clássico de economia” foi saindo de cena durante a primeira grande crise do sistema capitalista de produção, a “Crise de 1873”. Países como EUA e Alemanha começaram a adotar regulamentações no mercado e tentativas de combater trustes e cartéis a fim de melhorarem a competitividade e, consequentemente, a sua produtividade. Isso é relatado pela professora de direito concorrencial, Renata Mota Maciel, que, além disso, mostra como essa política regulatória fez com que os países se recuperassem mais rápido da crise. Com a ascensão de Estados sociais e também dos Estados totalitários no pós-Primeira Guerra Mundial, o “modelo liberal clássico” acabou sendo deixado de lado, tendo menor relevância no cenário internacional. O liberalismo só foi retomado, de fato, no pós-Segunda Guerra Mundial, através do “modelo renano de economia de mercado” e também do “modelo anglo-americano de economia de mercado”, sendo estes denominados como “modelos neoliberais”.

Falando no “modelo renano de economia de mercado”, a Escola de Friburgo de Economia foi a grande pensadora deste modelo econômico, que teve grandes economistas e sociólogos e é muito famosa na Europa, primeiro por ter reunido os grandes economistas e sociólogos alemães da época, tais como Wilhelm Röpke, Walter Eucken, Alfred Müller-Armack, Franz Böhm, Alexander Rüstow, entre outros, que começaram a discutir o futuro da Alemanha e da Europa, na Universidade de Friburgo, na Alemanha, pouco antes da queda do Nacional-Socialismo e do fim da Segunda Guerra Mundial. Alguns deles foram até exilados da Alemanha, como é o caso de Walter Eucken, que acabou indo para a Turquia, uma vez que era um grande opositor de Hitler, além de Wilhelm Röpke, que foi morar na Suíça, onde permaneceu até o seu falecimento, em 1966. Dentro da Universidade de Friburgo, surgiu o Ordoliberalismo, abordagem política da Escola de Friburgo, além da também conhecida Economia Social de Mercado (ESM), que foi um modelo econômico implementado na Alemanha e na Europa no pós-Segunda Guerra Mundial, colocando a Alemanha na quarta posição entre as maiores economias do planeta na década de 1980, além de realizar de maneira efetiva a integração regional da Europa e influenciar a política econômica de outros países, como a Itália de Luigi Einaudi e, posteriormente, dos governos do Partido Popular Italiano, de vertente democrata-cristã; a França de Charles de Gaulle; outros países do Vale do Rio Reno e vizinhos da Alemanha, como Holanda, Suíça, Suécia e Áustria; além de outros países dentro do continente asiático, como o Japão, assim como destaca o economista francês, Michel Albert, em seu livro Capitalismo x Capitalismo, que relaciona a disputa entre o “capitalismo anglo-americano” e o “capitalismo renano”, do qual faz parte a ESM. O economista Alfred Müller-Armack, em seu livro Teoria econômica da política econômica, de 1926, já falava sobre a combinação da liberdade de mercado com a justiça social e a solidariedade, coisa que foi retratada pela Escola de Friburgo anos depois. A Economia Social de Mercado (ESM/Ordoliberalismo) ou a Ordopolítica, também assim alcunhada por Walter Eucken, é uma proposta de alternativa ao capitalismo liberal laissez-faire, ao capitalismo keynesiano (em todas as suas versões), ao capitalismo nacional-desenvolvimentista e ao socialismo marxiano, uma vez que ela mescla a liberdade econômica com uma visão humanística e social. Como já dizia Erhard: “O consumidor e o indivíduo devem estar acima de tudo e não o contrário”. No livro A Economia Humana e também no livro A Crise Social do Nosso Tempo, Röpke afirma que o Estado deve ser apenas um “mediador” para que as leis sejam cumpridas e o funcionamento do mercado esteja em ordem. Outra questão que Röpke traz em outro livro de sua autoria, Crises e Ciclos, é a de que a ESM sempre vai analisar a história e as políticas que deram certo ao longo do tempo, e não se prender apenas em números, tal como faz a ortodoxia. Por isso mesmo, Eucken diz que é preciso ter uma certa racionalidade dentro de um sistema econômico, como retratou em seu famoso livro Fundamentos de Economia Política. Ademais, citando novamente o economista francês Michel Albert, a ESM ou o modelo renano possui uma ética muito diferente do “modelo anglo-americano de economia de mercado”. Enquanto a ESM busca a ideia de um lucro a longo prazo, como fruto de um trabalho de longo prazo e bem estruturado, a economia anglo-americana visa um lucro a curto prazo e também uma valorização demasiada do mercado financeiro, mais especificamente do mercado de ações, as chamadas “bolsas de valores”, o também conhecido “capital especulativo”.

A Escola de Friburgo surgiu no período entre guerras e suas ideias surtiram efeito no pós-Segunda Guerra Mundial, mas também podemos destacar outras iniciativas que ajudaram a fortalecer a ideia de um “neoliberalismo”. Em 1938, o jornalista e cientista político norte-americano Walter Lippmann escreveu um colóquio chamado A Opinião Pública. Nesse colóquio, Lippmann ressalta a importância da justiça social como reparadora de desigualdades sociais causadas pelas falhas de mercado, mas sem deixar de enaltecer os pontos positivos de uma economia de mercado livre para a geração de riqueza. Walter Lippmann, ainda bastante impactado pelo contexto de seu tempo, é considerado a primeira pessoa a retratar o termo “neoliberalismo” de forma pública. Ainda no século XX, mais precisamente em 1947, surge a Sociedade Mont Pèlerin, na Suíça. Essa instituição reuniu os grandes pensadores do liberalismo até o momento, tais como os intelectuais de Friburgo e até mesmo Friedrich Hayek, um dos influenciadores da chamada Escola Austríaca de Economia, além de nomes de outros países, como o economista italiano Luigi Einaudi, que viria a ser presidente da Itália.

Ainda poderíamos citar outros nomes e ideias que contribuíram para a formação do “neoliberalismo”, tais como o “Relatório Beveridge”, que trouxe as bases para o Welfare State britânico, canadense e diversos outros países no pós-guerra.

Portanto, vimos ao longo deste texto que o neoliberalismo não começou em 1944 diante do Acordo de Bretton Woods. O chamado neoliberalismo foi uma construção gradual de conceitos que iniciaram ainda no século XIX e que se consolidaram durante o século XX, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial.

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Kayque Lazzarini

Kayque Lazzarini

Estudou ciências econômicas na FECAP e atualmente é estudante de relações internacionais na FECAP.

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