“Hans Hoppe e a insustentável defesa do Estado”: um desafio aos liberais
Iniciativa do prezado amigo e professor doutor em Filosofia Dennys Xavier, da Universidade Federal de Uberlândia, a coleção Breves Lições pretende ser uma série de livros dedicados a grandes autores liberais e libertários, reunindo textos introdutórios produzidos por diferentes estudiosos e pesquisadores. Já comentei detalhadamente dois volumes da coleção, um sobre Friedrich Hayek (em que contribuí com um ensaio acerca do contexto histórico do pensamento deste autor) e outro sobre Ayn Rand.
Além de um volume sobre Thomas Sowell, a coleção inclui agora uma coletânea de artigos sobre o pensador e ativista libertário Hans-Hermann Hoppe, o livro Hans Hoppe e a insustentável defesa do Estado. Com a mesma competência de sempre, o trabalho organizado pelo professor Dennys delineia os traços fundamentais do pensamento desse autor, que se define pela sua polêmica audaciosa e por representar autêntico desafio aos liberais. Conforme consta de seu texto de orelha, o livro revela como o autor de Democracia: o Deus que Falhou desafia “as nossas opiniões mais caras”, asseverando: “Seja para compreendê-lo ou para criticá-lo, o leitor terá, antes, que pagar os devidos tributos diante do tribunal da racionalidade erigido por ele”.
O livro parte de uma Apresentação redigida por Alex Catharino em que este situa a amplitude e a intrepidez do pensamento de Hoppe. A seguir, como já de praxe na coleção, vem uma biografia do autor analisado, redigida por Gustavo Henrique de Freitas Coelho, que destrincha sua atuação pelo mundo divulgando a proposta libertária do anarcocapitalismo, sua vinculação à Escola Austríaca, seu envolvimento pessoal com seu mestre Murray Rothbard – o fundador dessa corrente que defende a extinção do Estado e a substituição de tudo quanto for mantido através de impostos pela iniciativa privada – e os embates de que participou.
No capítulo Conceitos fundamentais da filosofia de Hoppe, de autoria do próprio organizador Dennys Xavier, com amplo espírito didático, alicerces do edifício teórico desse pensador são apresentados, a exemplo de seu conceito central, o de propriedade, possível apenas em associação com o conceito de escassez – isto é, algo é propriedade apenas porque existe em quantidade limitada e não está à inteira disposição de todos. A primeira propriedade, para Hoppe, é o corpo, desenvolvendo-se, a partir dela, contratos de interesse mútuo para o uso desses recursos escassos. Se não há aceitação mútua, existe agressão, aquilo que Hoppe deseja combater. O socialismo seria um regime agressivo de propriedade, por oposição ao regime capitalista, marcado pelo respeito a tais acordos contratuais.
Essa análise é ilustrada no capítulo seguinte, redigido em parceria pelo mesmo professor Dennys e Gabriel Oliveira de Aguiar Borges: Direito de propriedade no socialismo ao estilo russo, ao estilo social-democrata e ao estilo conservador. Definindo-se socialismo como “transferência de títulos de propriedade de pessoas que realmente utilizaram recursos escassos de alguma forma ou que os adquiriram contratualmente de pessoas que o fizeram anteriormente para terceiros, que nada fizeram com as coisas em questão e que nem as adquiriram formalmente por contrato”, há socialismo onde quer que haja impostos e a diferença é apenas de grau. Como já comentei noutra oportunidade, não aprecio essa conceituação um tanto atemporal e demasiado restrita à dimensão econômica adotada pelos libertários.
Análise econômica, socialismo de engenharia social e sustentabilidade do direito de propriedade, escrito por José Luiz de Moura Faleiros Júnior, avalia as ponderações epistemológicas de Hoppe e seu embasamento na Escola Austríaca, iniciativa que demanda, como diz o autor do ensaio, “maior atenção e algum esforço adicional” por parte do leitor, “por conter elementos mais técnicos da reflexão de Hoppe”. José Luiz desenvolve uma abrangente apreciação da crítica hoppeana às limitações de uma abordagem exclusivamente empirista.
O prezado Adriano Paranaíba, ligado ao Instituto Mises Brasil e adepto das teses anarcocapitalistas de Rothbard e Hoppe, redige em O que deve ser feito, segundo Hoppe um artigo elogioso à capacidade de Hoppe e dos economistas austríacos de se comunicar com o público em geral, evitando excessivo formalismo acadêmico. Em seu texto leve, ele mostra como Hoppe sustenta a ideia de que a necessidade do Estado para manter uma sociedade ordeira seria apenas um mito e o combate a isso deveria partir de uma nova geração de intelectuais com esse propósito.
Reflexões sobre a teoria do Estado à luz dos fundamentos sociopsicológicos do socialismo, fruto de uma parceria entre Dennys Xavier e José Luiz de Moura, traz uma contribuição imprescindível ao conjunto da obra. Os autores desnudam a interpretação hoppeana para a natureza dos recursos de legitimação psicológica e social de que o Estado faz uso para persuadir a sociedade de sua própria utilidade.
João Paulo Silva Diamante e João Vitor Conti Parron constroem em Centralização e socialismo: relações entre a atividade estatal e o desenvolvimento econômico uma exposição dos argumentos de Hoppe para privilegiar pequenas unidades administrativas em vez de grandes Estados ou impérios. Para ele, “a centralização política e a formação de unidades territoriais extensas constroem grande barreira ao desenvolvimento” do sistema de livre comércio, o que faz de Hoppe, pragmaticamente, um ídolo dos defensores das propostas de secessão.
Os impactos da preferência temporal sobre os gestores públicos em Estados democráticos, de Francisco Ilídio Ferreira Rocha, começa a avaliar a crítica mais polêmica de Hoppe: seu desafio à democracia. Fundamentalmente, as lideranças públicas em um regime democrático, preocupadas em permanecer no poder o maior tempo possível e cientes de que essa permanência é limitada, tendem a reduzir as preocupações com o longo prazo, cujos efeitos recairão sobre os ombros de outros.
Outra visão bastante polêmica de Hoppe, mesmo entre os libertários, é sua leitura sobre a questão da imigração, contrária ao entusiasmo com o multiculturalismo e à política de fronteiras abertas. O professor Dennys e Marco Felipe dos Santos procuram evidenciar esse ponto no capítulo A questão da imigração em uma sociedade livre, mostrando como Hoppe condena a atração de imigrantes através de assistencialismo estatal e sustenta as sociedades baseadas na propriedade privada em que os indivíduos considerados nocivos à comunidade em questão poderiam ser fisicamente removidos.
Uma breve lição de como a democracia viola a propriedade privada, de Renato Ganzarolli, estende, com clareza e leveza, o posicionamento de Hoppe contra a democracia, sentenciando-a à condição de sistema que não poderia e não mereceria ser salvo. Em substituição ao Estado liberal-democrático, Daniel Colnago Rodrigues e Renan Braghin explicam a alternativa oferecida por Hoppe (e Rothbard, diga-se de passagem) para a área da segurança, que seria a substituição de polícias e Forças Armadas por agências seguradoras privadas, no capítulo Segurança coletiva baseada no Estado: um mito a ser superado.
Dennys Xavier e José Luiz de Moura também produziram em parceria o texto Os desafios capitalistas desvelados pelas problemáticas dos bens públicos e dos monopólios, em que mostram como Hoppe defende que os problemas atribuídos à ausência do Estado são geralmente – na visão hoppeana, melhor seria dizer sempre – produzidos por ele próprio. Por fim, Rafael Medeiros Espanhol escreve Conservadorismo, libertarianismo e liberalismo: erros fatais e como corrigi-los em direção à liberdade, que sintetiza a agenda política de Hoppe. Para o austríaco, os conservadores devem adotar do libertarianismo, em defesa das famílias e da ordem natural, a bandeira da completa desestatização da sociedade, enquanto os libertários anarcocapitalistas devem adotar dos conservadores a rejeição ao multiculturalismo e à “integração cultural e moral forçada” das democracias contemporâneas. Já o liberalismo clássico em si, este, para Hoppe, é um erro falido, que desvanece sob o peso da manutenção da crença no Estado e da aceitação das democracias no século XX e deve ser superado pelo anarcocapitalismo para que suas melhores bandeiras subsistam.
Em um epílogo, de minha autoria, intitulado As vantagens da monarquia absoluta sobre a democracia: entre Hoppe e Hobbes, destrinchei minha admiração pelo fato de que, a partir dos princípios do interesse pessoal do monarca pelo longo prazo da sociedade em que impere e a dimensão reduzida das vagas na Corte em comparação com as Assembleias democráticas, entre outros aspectos, tanto o anarcocapitalista Hoppe quanto Thomas Hobbes, o clássico justificador do Estado no século XVII, chegam a conclusões similares sobre as vantagens da monarquia em relação à democracia – ainda que Hoppe não defenda nem a adoção de uma, nem da outra.
Como bem enfatizou recentemente o amigo professor Ricardo Vélez Rodríguez, o bom liberal não teme a reflexão, mesmo sobre os críticos. Apesar das afinidades, considero Hoppe, em geral, um crítico do liberalismo, que sustenta a sua superação por uma alternativa considerada mais valorosa e sofisticada. Não milito por suas teses, tampouco as endosso. Contudo, trata-se indubitavelmente de um crítico poderoso, cujo barulho deve ressoar entre as diversas correntes políticas para que, de fato, reflitamos, sobre bases plurais, a respeito de nossos fundamentos. Nesse sentido, é uma honra ter contribuído para mais uma obra dessa coleção com que o professor Dennys Xavier e a LVM Editora procuram multiplicar as melhores referências para os leitores críticos do Brasil, tão necessitados de material de qualidade.