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É o Brasil um país racista? (Parte 1)

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A afirmação, tão cara à militância identitária, de que o Brasil é um país racista já se tornou corriqueira. Muitos a aceitam como uma obviedade, não parando para pensar em seu significado último. Os que assim pensam costumam apontar para a escravidão e sua abolição tardia — o Brasil foi o último país das Américas a realizá-la — como a prova cabal do argumento. Na outra ponta, os que se atrevem a tecer o menor questionamento são logo apontados como negacionistas do racismo e racistas.

Pensemos em duas posições extremas; a primeira é a de alguém que enxerga o racismo em absolutamente tudo e, portanto, o identifica como algo inerente à identidade brasileira; a outra é a de alguém que simplesmente nega a existência do racismo, ao menos na atualidade, ou vê toda e qualquer queixa do gênero como “vitimismo”. Ambas as posições não dialogam com a realidade. Não há que se discutir a existência e ocorrência do racismo, bem como contrariar o identitarismo, que o enxerga nas mais simples nuances do cotidiano, não implica negá-lo. Ocorre que afirmar que há racismo no Brasil é muito diferente de dizer que o Brasil é um país racista. A primeira afirmação constata um fato, evidente por si só, de que, neste país de 211 milhões de habitantes, há pessoas racistas. A outra, de natureza antropológica, coloca o racismo nos genes da nossa formação como país e, consequentemente, na identidade do brasileiro, provocando uma generalização inevitável.

Tal generalização seria muito semelhante a afirmar que o Brasil possui “racismo cultural”, ou seja, que ele está de tal modo inserido em nossa cultura, que é aceito. Para colocar em evidência o que isso significa, pensemos em afirmação análoga, de que o Brasil padece da “cultura do estupro”. Da mesma forma que, em meio à massa de brasileiros que compõem a sexta maior população do mundo, há racistas, obviamente há estupradores, bem como aqueles que tentam atribuir o crime a um suposto comportamento errante da vítima. Agora, isso comprova a existência de uma pretensa cultura do estupro por aqui? É o estupro enraizado e aceito em nossa cultura como algo normal? Ou ele é considerado um crime vil que enfurece de tal forma os populares que os perpetradores devem com frequência receber escolta e gozar de proteção em presídios? A resposta, para quem ainda não teve os miolos fritados com teses “desconstruídas” e bizarras, é óbvia.

Agora, aplico a mesma pergunta ao caso inicial: é o racismo visto como algo normal por aqui? Antes de responder, faz-se mister separar aquilo que é punido como crime inafiançável de devaneios identitários que só apequenam a dor de quem sofre racismo de verdade. Por racismo, não entendo o uso de palavras ou termos que, segundo argumentam, deveriam ser banidos por possuírem uma suposta etimologia racista — quase sempre estão errados até nisso. Meu artigo pouco uso terá para quem acha que falar “denegrir” ou “criado-mudo” é ser racista, sendo que, para esses, só o divã pode ser a solução — e olhe lá.

O racismo, defendo, dispensa análises prolongadas, sendo quase sempre flagrante quando ocorre. Para ilustrar, pensemos em um caso recente. Em agosto de 2020, um vídeo em que um entregador sofre ataques racistas viralizou nas redes sociais. No vídeo, registrado em um condomínio em Valinhos (SP), entre outros xingamentos, um morador, branco, aponta para a própria pele e diz que o entregador, um rapaz pardo, “tem inveja disso aqui”. Ao invés de uma aceitação do racismo claramente praticado, que seria de se esperar em um país racista, o que se viu foi uma reação generalizada de repúdio e incredulidade — era difícil crer que ainda existissem pessoas com esse tipo de visão e atitude retrógrada. Tal incredulidade se contrapunha à afirmação, feita por alguns à época, de que casos assim aconteciam o tempo inteiro em cada esquina do país. Ora, ser razoável nada tem a ver com apequenar o problema quando ele ocorre; o fato é que é muito difícil acreditar que, em um momento em que muito raramente alguém sai de casa sem um celular no bolso, tais casos se avolumem desse modo e escapem de registros mais frequentes; e, se o argumento for que, por ser trivial, já se tornou banal, o que explicaria o choque e repúdio quando o vídeo viralizou? Algo tão inserido no cotidiano simplesmente não deveria gerar espanto.

Talvez alguém me acuse de usar um caso isolado com a intenção de ignorar os demais e apequenar o problema, mas nada está mais longe da verdade. Comentei sobre o episódio por a) ser recente, b) ser explícito, c) demonstrar que o racismo é repudiado de forma expressiva pela população. É evidente que muitos outros casos ocorrem, mesmo que não de forma tão aberta, mas tampouco faria sentido apelar para o número de ocorrências como prova do argumento. Os que afirmam que um alto número de ocorrências de casos no Brasil — não entrarei nesse mérito — justificam a afirmação de que o Brasil é racista ignoram afirmações análogas e igualmente generalistas que poderiam ser derivadas do mesmo tipo de fonte. Pensemos no homicídio. Em 2019 registramos 45.503 homicídios; o número, apesar de elevado, ainda assim representa uma queda considerável, haja vista que em 2017 chegamos a registrar 65.602 homicídios. Para colocarmos isso em perspectiva, a Índia registrou 41.023 homicídios em 2019; a diferença é que o país asiático possuía uma população de 1,366 bilhão, contra uma população estimada em 211 milhões no Brasil. Com uma cifra tão vergonhosa, que coloca o país como líder em número absoluto de homicídios, seria justo dizermos que o Brasil é um país de homicidas? Será o assassinato algo enraizado e aceito em nossa cultura? A resposta novamente é não.

Se a tese do racismo cultural, que implicaria uma necessária aceitação dessa forma de preconceito, não cola e é mais facilmente rebatida, os identitários tiraram da manga outra que visa, a um só tempo, admitir o fato de que no Brasil o racismo aberto é a exceção, ao mesmo tempo em que se insiste que ele está nos genes de nossa formação: racismo estrutural. Segundo os que defendem esse argumento, o racismo está inserido nas estruturas e instituições do país, acontecendo de forma cotidiana, porém muitas vezes silenciosa. Daí a predileção por “problematizar” palavras, expressões e tudo que se entenda como reprodutor do racismo, independentemente da motivação do interlocutor.

Para entender o que a tese do racismo estrutural implica, consideremos a afirmação feita por uma das principais ativistas do atual movimento negro, Djamila Ribeiro, em seu Pequeno Manual Antirracista: “É impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que está em nós e contra o que devemos lutar sempre”. Aí está a implicação última de se dizer que o Brasil é um país racista, o pecado original, congênito e irrenunciável. Se o Brasil é racista, logo, ser brasileiro implica ser racista. No texto Djamila fala em “nós”, o que, subtende-se, abarcaria também os negros, embora a aceitação disso não pareça ser unânime entre os identitários, já que muitos definem racismo como sendo, necessariamente, preconceito do branco contra o negro —os seis milhões de judeus chacinados por um aparato eugenista, na certa, foram um delírio coletivo.

Mas não nos enganemos: por trás do “nós”, que parece servir para dizer que não se aponta dedos para ninguém específico e que o problema é de todos, há uma armadilha. Se o racismo é estrutural e somos todos racistas, a negação disso se torna, em um raciocínio circular, a própria prova do argumento. Se você nega a tese, é porque você é racista. Se branco, é porque se recusa a “checar seus privilégios”. Se negro, é porque está condicionado pela lógica estrutural, sendo “manipulado” pelos racistas — como se os negros não pudessem ter autonomia intelectual. É realmente impressionante a empáfia de quem acredita ter a chave da história e não aceita questionamentos às suas teses generalistas, atribuindo um “crime” a todos que se recusem a vestir a carapuça.

No Brasil, o racismo está no rol de crimes inafiançáveis e é, junto com a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, a única possibilidade de crime imprescritível — crimes hediondos como homicídio, estupro e tortura, prescrevem. Fica claro que a letra da lei trata o racismo com rigor. Sendo um crime tratado com rigor e sujeito à pena de reclusão, seria de se esperar que o adjetivo racista fosse usado com parcimônia para caracterizar tão somente aqueles que cumprem os requisitos para responderem por tal. Tal parcimônia, acredito, seria do interesse das próprias vítimas de racismo. No entanto, o que os adeptos da tese do racismo estrutural fazem, ao afirmar que somos todos racistas, é banalizá-lo. Não é que eles não defendam o encarceramento de quem pratica racismo aberto, mas mesmo isso soa contraditório, se levarmos em conta que taxar os oponentes de racistas é um esporte que costumam praticar com gosto.

Há uma lógica perversa aqui, que é colocar todo e qualquer brasileiro, pelo simples pecado de nascer nesta terra tropical, ao lado de perpetradores de um crime inafiançável e imprescritível. Na falta de um racismo aberto mais pungente, os identitários são obrigados a buscar outros “sintomas” do mal, donde se tornam os censores culturais politicamente corretos que tanto temos notado nos últimos anos. Proponho, para separar o joio do trigo, um pequeno teste. Antes de catalogar alguém como racista, pense: “seria isso o suficiente para justificar a abertura de um Boletim de Ocorrência? Esse BO teria chance de prosperar?” Se, então, a ideia de envolver a polícia lhe soar ridícula, talvez você deva reconsiderar proferir o impropério, mesmo porque atribuir falsamente um crime a alguém também é crime.

Infelizmente, a opção dos identitários tem sido fazer o oposto e, com a penetração institucional que estão conseguindo atingir, graças ao silêncio e aquiescência dos covardes, negar que somos todos racistas pode se tornar um pecado. O que fazem é um grande favor para os verdadeiros racistas, que sempre poderão justificar seu “desvio” como um mal congênito e culpar a sociedade. Desconfio, aliás, que essa onda de personalidades públicas “desconstruindo” seu racismo, de forma vexatória, seja uma espécie de salvo-conduto ao qual sempre podem apelar se necessário for. As consequências a longo prazo serão deletérias para as vítimas, pois, se tudo é racismo, nada é racismo. A tese do racismo estrutural faz um favor aos racistas, e, tudo o mais constante, o que veremos no futuro é o retorno do racismo aberto com o argumento — injustificável, é claro — de “reação”.

Fontes:

https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2020/08/07/entregador-registra-boletim-de-ocorrencia-apos-sofrer-ofensas-racistas-em-condominio-de-valinhos-video.ghtml

https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/02/12/brasil-tem-aumento-de-5percent-nos-assassinatos-em-2020-ano-marcado-pela-pandemia-do-novo-coronavirus-alta-e-puxada-pela-regiao-nordeste.ghtml

https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/17

https://pt.countryeconomy.com/demografia/homicidios/india

https://statisticstimes.com/demographics/country/india-population.php

https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/04/04/brasil-tem-maior-numero-absoluto-de-homicidio-do-mundo-diz-oms/

Pequeno Manual Antirracista — Djamila Ribeiro

https://www.camara.leg.br/noticias/744156-comissao-aprova-projeto-que-torna-imprescritiveis-os-crimes-hediondos-trafico-de-drogas-e-terrorismo/

(continua…)

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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