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A pequenez humana diante de sua própria História

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Somos de maneira irremediável os autores de nossa própria História. Mesmo em sociedades onde não há o conceito de historicidade, ou o costume de guardar os eventos do passado, existe História. Um evento histórico nada mais é do que a ação humana passada, ou seja, toda e qualquer atitude cultural dos Homens através do tempo que não é o presente.

Sem Homens, sem História. Nossa biologia não é um dado histórico, por exemplo, pois é metacultural. Sentir fome, morrer, a procriação… tudo isso não é de matéria histórica, pois transcende a cultura, porém como sentir fome, como comer, como morrer, como procriar, isso sim são dados históricos. Ler um texto é um acontecimento na História, pentear os cabelos também… não gostar de uma fruta? Idem.

Biografias são matérias da História, conflitos sociais também, assim como as estruturas, mentalidades, crenças, concepções de valor, ideologias, formas de governo, meios de inclusão, exclusão, cosmovisões, hierarquias… nós somos os autores da História. A humanidade, unicamente, a forma. Não pensemos nas influências que características geográficas terão no Homem, pois essas influências – como a ação de bacias, rios, montanhas e vulcões, que podem influenciar em um fluxo migratório, por exemplo; quando uma mudança climática empurra um povo para a anarquia ou para a guerra – só interessam para a História quando tocam no Homem, e não em si mesmas. Uma ilha nunca habitada no meio do Atlântico, com toda sua composição mineral, fauna e flora próprias, jamais será matéria de História, pois não há a presença do Homem lá.

Com essas características basilares e conceituais, pode-se dizer sem medo que o Homem forma sua História. Sem ação humana, sem cultura, sem cultura, sem História. Mas… controlamos nossa própria História? Definitivamente não.

Por mais que sejamos os autores de toda a História que já ocorreu, não podemos controlar como ela ocorre, tampouco como ocorrerá. Isso porque, malgrado o Homem seja o motor da História, ele não é seu combustível, comburente, veículo, tampouco o condutor. A começar pelo fato de que a humanidade não pode ser resumida em História. Não somos a História; esta é que é parte do Homem, mas nunca o seu todo. A biologia humana é meta-histórica – aliás, ela é uma das condições necessárias para que o ser humano exista como existe e, portanto, uma das condições da História, logo, descolada e independente da História para existir –, as leis matemáticas e físicas são meta-históricas. Por fim, a metafísica humana, sua ontologia, é meta-histórica.

A História é de nossa composição, porém não subsiste por si só. Não é como um material que, depois de ser criado, permanecerá como está até ser decomposto por alguém ou pelo tempo, mesmo depois que a humanidade acabar. Acabado o Homem, acabada está a História. Esse é o único Fim da História possível.
E, claro, o Homem não é o único partícipe de sua jornada pelo planeta. Pelo fato de o mundo (entenda-se, aqui, universo) ser um objeto, ele se emana para nós, isto é, ele existe independentemente do Homem e, além disso, como tal, se objeta ao Homem. Um objeto apresenta barreiras para o sujeito, regras para agir e reagir a tal objeto, pois o mundo não é uma massa que a mente humana molda de acordo com sua vontade. Vulcões ceifam civilizações, pestes moldam sociedades, a morte fulmina a vida do indivíduo. A natureza, aliás, nos abarca, e não o oposto.

Não controlamos, em absoluto, a natureza de nada. Afirmar que, antes, “pessoas não podiam voar” sem a invenção do balão ou do avião, mas que agora podemos voar pelos céus porque “quebramos a natureza” é uma estupidez. Não controlamos ou quebramos natureza alguma. Humanos são animais que não voam, assim como aviões necessitam seguir leis aerodinâmicas para alçar voo – não moldamos natureza alguma, apenas “contornamos a montanha”, e não a rasgamos.

A História depende desses objetos da natureza para existir. E, como interage e está sujeita à realidade, ao mundo, ela tem componentes e uma natureza que vão para além da vontade do Homem, e além da própria marcha que fazemos, há milênios, durante nossa existência enquanto espécie.

Nossa natureza ontológica é inalterável e, portanto, parte de nossa História também o é. O Homem é instável, por exemplo, e tem tendências ao melhoramento técnico pelo acúmulo de conhecimentos pelos tempos; essas duas características, por não serem absolutas, tornam a humanidade inquietante, imprevisível e por demais plural. Uma sociedade que tem tudo para alcançar um avanço técnico pode simplesmente não alcançá-lo, um povo dado a instabilidades sazonais também tem a potência de ser mais estável em uma situação onde normalmente tenderia à instabilidade. E isso não fica apenas no caráter episódico, mas ecoa pelo espaço e pelo tempo, modificando a mentalidade e, por fim, atingindo e afetando os modos por que o Homem encara o mundo, ruindo concepções, até então, reinantes em algum meio – mesmo que tais concepções sejam, aliás, verdadeiras. Só porque algo é verdadeiro não significa que irá ter terreno para sempre: o avanço da ignorância também existe na humanidade.

Outro fator que move a história é… o acaso. “Acaso” não é apenas algo conhecido, mas que ocorreu sem que ninguém pretendesse que ocorresse, como um acidente de carro – pode ser alguma coisa desconhecida da humanidade, ou de certos grupos e indivíduos. O acaso pode abundar em vários eventos históricos. Guerras civis podem ser decididas pelos acasos dos campos de batalha, dos grandes cercos, nas vias de comunicação e abastecimento das partes beligerantes e do povo no meio da guerra.
Um simples escorregar pode definir uma guerra inteira, um mensageiro atrasado por causa de uma picada de inseto pode destruir um complô político, uma indisposição intestinal pode estragar uma revolução. Não temos nenhum controle absoluto sobre nossa História, e nem mesmo sobre nós mesmos, já que elementos externos podem, a qualquer momento, aniquilar todas as nossas pretensões possíveis.

Na História, existem alguns exemplos disso: a II Guerra Mundial teve um grande exemplo de como o acaso, mesmo sendo feito por mãos humanas, pode decidir o caminho de grandes eventos, potências e de tudo o que conhecemos.

Em 1º de julho de 1936, nos estaleiros alemães, o gigante couraçado Bismarck tinha sua construção iniciada. Quando ficou pronto, em 24 de agosto de 1940, era o maior e mais poderoso navio construído na Europa até então . A missão do Bismarck era simples, porém de vital importância: ele deveria caçar os comboios de navios de suprimentos (comida, remédios, munição, etc.) que iam dos Estados Unidos para o Reino Unido. O valor da missão do Bismarck era claro: minar os recursos necessários para a permanência dos súditos da coroa inglesa na guerra. Os exércitos nazistas simplesmente não conseguiam uma passagem segura pelo Canal da Mancha, tampouco invadir o Reino Unido. A marinha e as defesas em terra na Inglaterra, Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales eram absurdamente boas na defesa das Ilhas Britânicas.

Se o Bismarck conseguisse sanar o problema dos suprimentos, a capacidade britânica para a guerra estaria esgotada. Os recursos necessários para tamanho esforço de guerra se exauriam de maneira rápida, de modo que sempre era preciso que mantimentos chegassem da América; sem os navios para transportar os recursos, o Reino Unido não conseguiria se manter na guerra por muito tempo, mesmo com o espírito belicista britânico sendo extremamente poderoso – e os britânicos sabiam disso.

No dia 19 de maio de 1941, o Bismarck partia para a sua primeira e última missão; a Marinha Real britânica mandou tudo o que tinha para tentar afundá-lo. Tinham consciência de que o Bismarck, sozinho, tinha capacidade para destruir todo e qualquer navio de suprimentos que conseguisse alcançar. A blindagem, tecnologia e os armamentos do Bismarck faziam-no ser a coisa mais mortal em todo o Atlântico. A Marinha Britânica colocou todas as suas forças do Atlântico para interceptá-lo e afundá-lo: eis o verdadeiro desespero do Reino Unido.

No estreito entre a Islândia e a Groelândia, o Estreito da Dinamarca, iniciou-se a Caçada ao Bismarck. Com toda a marinha britânica do Atlântico atrás de um único navio: dois porta-aviões, um couraçado, dois cruzadores pesados, um cruzador de batalha e seis destroyers contra o Bismarck e um outro cruzador que o acompanhava, o Prinz Eugen.

Os porta-aviões lançaram seus ataques: biplanos começaram a atirar e a lançar torpedos contra o Bismarck, contudo sua blindagem o protegia. De fato, o Bismarck conseguiu afundar um dos melhores navios britânicos, o HMS Hood, além de danificar consideravelmente o Prince of Wales.

Com tantos navios na perseguição ao Bismarck, criando uma das maiores batalhas navais da História, não foram os poderosos canhões ingleses os principais responsáveis pelo afundamento do Bismarck, tampouco o poder combinado de vários aviões. Foi apenas um piloto de um biplano frágil (esqueçam aqueles aviões típicos da II Guerra Mundial, como um SpiritFire ou um spitfire ou um Thunderbolt; eram aviões como aqueles da I Guerra: lentos e frágeis) acertando em um dos poucos pontos fracos do navio, fazendo seu leme travar em um ângulo de 15º, obrigando o gigantesco navio a “andar em círculos”.

Com sua capacidade de manobra comprometida, o Bismarck foi presa fácil para os canhões inimigos – seus canhões foram avariados, comandantes mortos. Com isso a tripulação decide então explodir o navio para que ele não caísse em mãos britânicas.

Bismarck: o terror dos mares, o navio que poderia virar o jogo na maior guerra que a humanidade já presenciou… foi destruído graças a um golpe de sorte de um piloto lançando um torpedo de um frágil biplano. A questão maior é: onde estão as projeções sociais? Onde foram parar os desenhos e laços que a sociedade lança nos indivíduos, as teorias enfeitadas e complexas sobre como uma sociedade é soberana no andar da História? Nos eventos que ocorrem com a humanidade, nos arranjos, atos, pensamentos e crenças?

Não há espaços para um totalitarismo social em todo e qualquer acontecimento humano. Não foi uma construção social que levou o Bismark a ser afundado, que fez com que o torpedo explodisse no lugar certo para o leme travar do modo que travou. E mais: o afundamento do Bismarck é que definiu a sociedade. Imaginem ter esse titã de metal ceifando as provisões dos exércitos de Sua Majestade. O moral dos soldados britânicos iria por água abaixo, faltariam comida, remédios, combustível… Hitler teria a cabeça do rei da Inglaterra e Churchill possivelmente seria torturado e morreria no processo.

Dominando o Reino Unido, quase todo o Ocidente Europeu estaria em mãos nazistas. Os americanos, se ainda ousassem entrar em guerra com a Alemanha (isso seria temerário, mesmo com os japoneses atacando os EUA), teriam muito mais preocupações com invasões alemãs na América do que com um ataque maciço – mesmo se conseguissem invadir a Europa, teriam mais locais para tomar, como todo o Reino Unido. Stalin teria mais alemães para combater e devemos lembrar que o III Reich só não tomou Stalingrado por uma questão de abastecimento de tropas: caso mais contingentes alemães fossem para o front do leste, quais seriam as chances dos comunistas? Bem poucas se comparadas com o que realmente se seguiu.

Mesmo que Hitler não vencesse a II Guerra Mundial (e devemos levar em conta que sem o Reino Unido essa vitória seria bem mais provável), com toda a certeza nossas sociedades atuais seriam tremendamente afetadas porque um piloto de um reles biplano não acertou um torpedo no lugar certo do Bismarck.

É claro que outros acasos poderiam ocorrer e teriam a potência de fazer com que a Alemanha Nazista perdesse a guerra, e de forma mais rápida. Mas o ponto deste texto é: nem mesmo os rumos das Ações humanas podemos domar. Somos pequenos dentro de nossa própria História, dentro de algo que, sem nós, sequer existiria. Não há controle ou proeminência social como determinantes primares dos acontecimentos que nos rodeiam.

“Um fio de cabelo”… e o acaso molda mais sociedades do que todas as estruturas, funções e esquemas de uma sociedade poderiam ter feito em séculos. É claro que o acaso não reina absoluto. Arranjos sociais ainda existem, a cultura ainda é determinante em alguns episódios… mas não deixamos de estar sujeitos às vicissitudes do mundo, às somas de fatores que, solapando todo um conjunto social, nos moldam e moldam toda a humanidade.

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Hiago Rebello

Hiago Rebello

Graduado e Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminense.

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