Tributo a Raymond Aron: lições aplicáveis ao terrorismo do século XXI

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Ainda sob a comoção dos ataques do grupo terrorista Hamas contra Israel, de luto pelas vítimas, atuais e futuras, e inquieta diante dos rumos incertos do conflito, sugiro uma breve pausa em nossas vozes para invocarmos a sabedoria do pensador francês Raymond Aron, nascido em 1905, e que nos deixou há exatas quatro décadas. Tendo vivenciado a 1ª Guerra como criança, a 2ª como soldado e jornalista na Inglaterra, em resistência ativa contra o nazismo, e a dita “guerra fria” como intelectual, acadêmico e correspondente do prestigioso jornal Le Figaro, Aron, um dos espíritos mais livres, tolerantes e ponderados do século passado, viu boa parte de sua existência permeada pela violência das armas. Destino irônico e caprichoso, que o levou a dissecar o pensamento do militar prussiano Carl von Clausewitz e a empreender um audacioso projeto de dez anos na composição de sua própria obra sobre o tema: Paz e Guerra entre as Nações.

Se você imagina, caro leitor, que o volumoso tratado, publicado em 1962, tenha mofado na estante da História, aceite o desafio de refletir sobre a atualidade das lições de Aron, inclusive no tocante à barbárie no Oriente Médio, em manchete no noticiário. A começar pela trajetória de animosidade entre o mundo árabe e Israel desde a criação deste, que bem ilustra a fórmula de Clausewitz, retomada por Aron, sobre a eterna alternância, nas relações interestatais, entre paz e guerra, entre diplomacia e estratégia bélica, e entre negociações e meios violentos para o alcance de seus fins. Na busca por segurança, poder ou glória, a tríade de fatores elencados por Aron como objetivos permanentes da política externa, nações/unidades políticas islâmicas têm confrontado, pelas armas, a única democracia da região. Disparidades de cosmovisão que têm impossibilitado o diálogo entre atores políticos tão heterogêneos, reduzido os períodos de paz, e tornado a beligerância uma ameaça constante.

No amplo espectro da guerra, Aron dedica atenção considerável ao fenômeno do terrorismo, sobre o qual comenta: “diz-se terrorista uma ação de violência cujos efeitos psicológicos não guardem proporção com os resultados puramente físicos. (…) A ausência de discriminação (de alvos) contribui para a expansão do medo, pois, não havendo ninguém visado, ninguém está a salvo[1].” O pensador bem poderia estar descrevendo as recentes imagens protagonizadas pelo Hamas, em suas ações de captura e execução pública de alvos civis – até mesmo de crianças e bebês! -, no visível intuito de causar transtorno psicológico, lançando uma sociedade inteira ao pânico diante da iminência do horror que pode estar à espreita de qualquer cidadão desarmado logo na esquina, logo no minuto seguinte.

Se, no espectro amplo das guerras, o conflito, iniciado após o esgotamento das vias diplomáticas, é travado entre forças militares de todos os lados envolvidos, no estreito âmbito do terrorismo, não há que se falar em combate, pois muitos ataques são desferidos contra indivíduos comuns, impossibilitados de esboçarem reação. Portanto, em se tratando de terror, sequer se observa a dialética ataque-defesa concebida por Clausewitz e comentada por Aron. Muito menos a perspectiva de dissuasão, tão velha quanto a própria humanidade, onde uma unidade política, sentindo-se ameaçada por uma vizinha, possa tomar a dianteira e posicionar seus regimentos em plena fronteira entre ambas. No modus operandi do terror, só há covardia, imprevisibilidade absoluta e caos.

Ainda em relação aos meios utilizados pelo Hamas e demais organizações terroristas internacionais, irrigadas por recursos financeiros e midiáticos de vulto, não há como não recordar as lições de Aron, em plena “guerra fria”, nas quais o pensador expunha o seu temor em relação à era termonuclear, inaugurada com o advento da bomba atômica, e que tornou qualquer perspectiva de guerra mundial uma iniciativa potencialmente suicida. A propósito, diz Aron: “as ditas armas de destruição em massa modificaram algo no curso das relações entre os ditos estados soberanos. Não modificaram nem a natureza dos homens nem a das unidades políticas[2].” Se pensarmos nas “afinidades” entre Hamas e países como Irã e até Rússia[3], oponentes declarados dos valores ocidentais de liberdades e democracia, teremos noção da proporção da tragédia que o pensador tanto receava…

Por fim, os episódios de terror protagonizados pelo Hamas – como já o foram pela Al Qaeda no 11 de setembro e vêm sendo pelo autocrata Putin durante a invasão da Ucrânia – figuram como novas evidências da ineficiência prática do direito internacional público. Ora, como bem acentua Aron, se, no plano interno, boa parte das nações atingiram um estágio civilizacional compatível com os modernos Estados de Direito, na esfera das relações interestatais, ainda se vive em pleno estado de natureza hobbesiano, sem outra lei que não a capacidade de autoimposição do “mais forte”, e sem outro contrato que os tratados firmados sob a ameaça efetiva ou velada dos fuzis, e onde a cláusula pacta sunt servanda (o pacto faz lei entre as partes) costuma conviver com a rebus sic standibus (as coisas se modificam conforme as circunstâncias).

Nas palavras de Aron, “no plano teórico, o dito caráter primitivo do direito internacional era ainda mais revelador na medida em que se tratava do direito dos ditos Estados civilizados. Ora, estes, apesar dos tributos à soberania da lei, pagos, da ponta dos lábios, por este ou aquele ministro, não deixaram de agir como se se recusassem a reconhecer, de antemão, a autoridade dos tribunais. Os Estados assinam um tratado de arbitragem obrigatória? Logo correm para acrescentar que a arbitragem não se aplica às matérias de direito interno, e que cabe a eles a delimitação de tais matérias (o que corresponde a reservar, para si, a escolha das circunstâncias sob as quais incide a obrigação)[4].”

Ainda assim, apesar de todas as catástrofes sócio-políticas que testemunhou e sobre as quais refletiu com tamanha mestria, Aron, sábio compassivo, encerra seu Paz e Guerra em tom otimista, cônscio de que “a humanidade ainda está na sua infância, se nos referirmos ao tempo que ainda lhe resta a viver[5]. Portanto, longe de nos fecharmos à esperança, devemos, a seu ver, “pensar e agir com o firme propósito de que a ausência de guerra se prolongue até o dia em que a paz se tornar possível – se vier a sê-lo algum dia[6].”

Que essas palavras confortem os corações dos que padecem sob o jugo do terror, e que a humanidade ainda venha a ser testemunha da premissa enunciada por Montesquieu, e invocada, por Aron, como epígrafe à sua obra: “O direito das gentes (direito internacional) é naturalmente fundado neste princípio: que as diversas nações devam, na paz, fazer umas às outras o maior dos bens, e, na guerra, o menor dos males possíveis, sem prejudicar seus verdadeiros interesses.”[7]

[1] Paix et Guerre entre les Nations, ed. Calmann-Lévy, 1962, pg. 176, tradução livre de minha autoria

[2] Ibid, pg. 369

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/hamas-sauda-oferta-de-mediacao-da-russia-e-elogia-posicao-de-putin/

[4] Ibid, pg. 711

[5] Ibid, pg. 769

[6] Ibid, pg. 770

[7] Ibid, pg. 13

*Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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