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Pensadores luso-brasileiros: Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846)

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Este estudo foi originalmente publicado no site do autor.

As nações, como de resto as demais organizações humanas, são moldadas de acordo com determinados ideais que prevalecem nelas. Assim como encontramos os idealizadores de universidades, clubes recreativos, sindicatos, exércitos, etc., podemos identificar os pensadores das organizações nacionais, nas quais palpita determinado conjunto de valores. A tese não é nova e já Hegel (1770-1831) tinha destacado a ideia de Volkgeist para se referir a essa realidade. Não há dúvida de que Silvestre Pinheiro Ferreira foi quem pensou as instituições brasileiras, surgidas da confusão criada pela vinda da família real portuguesa ao Brasil, logo no final da primeira década do século XIX. Esse processo de nascimento de uma nova nacionalidade culminaria com a independência da colônia brasileira, em face da metrópole portuguesa.

A ideia central de Pinheiro Ferreira, tributário, neste ponto, do pensador suíço-francês Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), era de que somente mediante a instituição do governo representativo seria possível tornar o Brasil um país imune à instabilidade crônica que vingou ali onde as ideias do democratismo rousseauniano foram adotadas tout-court, como em Portugal ou nos países da América espanhola. Ora, quem poderia construir essa representação, numa terra que não tinha tido a história secular das nações europeias, seria o monarca. Atento à especificidade da formação política brasileira emergente do latifúndio (portanto, contaminada com a perspectiva privatista da cultura patrimonialista), o pensador luso-brasileiro (que foi ministro de Dom João VI (1767-1826) no primeiro gabinete organizado pelo monarca português em terras brasileiras) considerava que não poderia ser adotada integralmente, no Brasil, a estrutura do parlamentarismo britânico. Far-se-ia necessário prevenir o espírito privatizante, com a ideia de representação dos interesses permanentes da nação, ao lado da que se referia aos interesses mutáveis, aqueles identificados com as reivindicações dos cidadãos.

O Poder Moderador, centrado ao redor do monarca, representaria os interesses permanentes e seria o fiel da balança da estrutura do Estado, ao garantir a concretização do governo parlamentar, sem que o élan privatizante do povo se transformasse em risco de abertura para o caudilhismo.

Dois itens serão desenvolvidos neste ensaio: I – Breve introdução biobibliográfica e II – A questão da Representação em Silvestre Pinheiro Ferreira e na Constituição Imperial Brasileira de 1824.

 I – Breve introdução biobibliográfica

Silvestre Pinheiro Ferreira nasceu em Lisboa em 31 de Dezembro de 1769. Os seus pais pertenciam à classe industrial e eram pouco acomodados. Orientado num começo à vida religiosa, o nosso autor entrou, com a idade de quatorze anos, na Congregação do Oratório, onde frequentou o Curso de Humanidades, tendo revelado grande capacidade intelectual. A atitude crítica que o caracterizava causou-lhe problemas, notadamente com o padre oratoriano Teodoro de Almeida (1722-1804), que era físico–matemático e que ficou extremamente incomodado com os pontos de vista do nosso pensador. Em decorrência da sua independência intelectual, Pinheiro Ferreira teve de abandonar a Congregação religiosa, tendo passado a desempenhar, em Lisboa, as funções de professor de filosofia.

Em 1794 ganhou, por concurso, a Cátedra de Filosofia Racional e Moral do Colégio das Artes, anexo à Universidade de Coimbra. Vítima, novamente, ali, dos ciúmes acadêmicos de alguns professores, teve de abandonar a Universidade e se refugiar no estrangeiro, a fim de escapar da prisão com que foi ameaçado. Refugiou-se, inicialmente, em Londres e, depois, na Holanda. Ao lado do embaixador de Portugal em Haia, António de Araújo e Azevedo, conde da Barca (1754-1817), o nosso autor desfrutou de tranquilidade e apoio, sendo esta a oportunidade para começar a desempenhar funções diplomáticas, pois graças à influência do embaixador português o nosso autor foi nomeado secretário da embaixada em Paris e, a seguir, secretário da legação diplomática lusa na Holanda.

Pinheiro Ferreira partiu, pouco depois, entre 1799 e 1802, para uma viagem de estudos ao norte da Alemanha. Por esse tempo, o nosso autor foi nomeado Oficial da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e, logo a seguir, Encarregado de Negócios de Portugal na Corte de Berlim. O tempo livre que a missão diplomática lhe deixava era dedicado ao estudo das ciências naturais e da filosofia alemã.

Pinheiro Ferreira viajou para o Rio de Janeiro em 1810, tendo desempenhado, ali, algumas missões oficiais, de caráter diplomático. Nessa cidade morou por espaço de vinte anos. O nosso autor alternava os seus trabalhos no Ministério do Exterior com a docência da filosofia, tendo sido publicadas pela Imprensa Régia, entre 1813 e 1820, as suas Preleções Filosóficas, que exerceram forte influência nas novas gerações, notadamente no que tange à superação do empirismo mitigado legado pelas reformas pombalinas.

Proclamada, no Rio de Janeiro, a adoção do sistema monárquico constitucional, em fevereiro de 1821, Pinheiro Ferreira foi chamado para integrar o novo ministério. Foram-lhe entregues as pastas de Negócios Estrangeiros e da Guerra. Praticamente sobre os seus ombros recaiu a chefatura do novo governo de Dom João VI, cabendo-lhe, destarte, a difícil tarefa de dar o passo da monarquia absoluta para a constitucional. Pinheiro Ferreira desempenhou a sua missão num ambiente bastante hostil, caracterizado pelo enfrentamento entre absolutistas, de um lado, e jacobinos, de outro. No desempenho dessas funções, acompanhou o rei Dom João VI no seu regresso a Portugal. Pouco tempo depois de ter chegado ali (em maio de 1823), pediu demissão do Ministério, em decorrência da radicalização crescente, que terminou obrigando-o a se exilar na França. No período da sua permanência em Paris (entre 1823 e 1842), o nosso autor deu acabamento ao seu sistema filosófico e completou a sua obra de constitucionalista e teórico do liberalismo. Dentre as várias obras que escreveu na capital francesa, ressaltam o Manual do cidadão em um governo representativo (1834) e o seu tratado intitulado Theodicée (1845).

Em várias oportunidades Pinheiro Ferreira foi eleito deputado à Câmara portuguesa (em 1826, quando se encontrava em Paris; em 1838 e em 1842), mas somente assumiu esse cargo representativo na última oportunidade, poucos anos antes da sua morte, acontecida em Lisboa em 2 de julho de 1846, aos 76 anos de idade. Ao longo do seu mandato como deputado, em 1843, apresentou à Câmara uma série de projetos que resumiam os seus profundos conhecimentos em ciências políticas e administrativas e que continham um sistema completo de organização do país, em harmonia com os princípios da Carta Constitucional.

Em que pese o fato de os projetos legislativos não terem tido, imediatamente, a repercussão que mereciam, representaram mais uma contribuição do ilustre filósofo e político ao campo do direito público português. A obra de Silvestre Pinheiro Ferreira é bastante extensa, especialmente no terreno da filosofia política e do direito constitucional. Os seus vários escritos são enumerados na parte correspondente à bibliografia do nosso autor.

 II –  A questão da representação em Silvestre Pinheiro Ferreira e na Constituição Imperial brasileira de 1824

Pretendo, em primeiro lugar, mostrar de que forma Benjamin Constant de Rebecque deitou as bases do conceito de representação e de Poder Neutro (Conservador, segundo Silvestre Pinheiro Ferreira). Em segundo lugar, exporei a forma em que Pinheiro Ferreira fundamentou a prática do governo representativo na tradição política luso-brasileira, inspirado nas ideias de Constant. Em terceiro lugar, é meu propósito ilustrar de que forma a Constituição Imperial de 1824 constituiu a passagem segura da Monarquia Absoluta para a Constitucional, preservando as instituições do Governo Representativo, num contexto jurídico e político (decorrente do patrimonialismo), em que se fazia necessário manter o centripetismo do Estado ao redor do Poder Moderador, mitigado com a prática do parlamentarismo, a fim de evitar os extremos do absolutismo e do democratismo. Serão desenvolvidos três itens: A) O conceito de soberania popular limitada e a crítica de Benjamin Constant de Rebecque ao democratismo rousseauniano; B) O poder monárquico segundo Constant; C) A herança de Benjamin Constant na teoria da representação de Silvestre Pinheiro Ferreira.

 1 – O conceito de soberania popular limitada e a crítica de Constant ao democratismo rousseauniano.

Benjamin Constant achava que só havia dois poderes: a força (ilegítimo) e a vontade geral (legítimo). Era fundamental conceber de forma correta a natureza desta última, a fim de determinar, de forma clara, a abrangência da mesma. Se isso não fosse feito, a tentativa de defesa da liberdade poderia, simplesmente, suprimi-la. A propósito, escrevia Constant: “O reconhecimento abstrato da soberania do povo não aumenta em nada a soma de liberdade dos indivíduos e, se lhe for atribuída uma abrangência indevida, pode-se perder a liberdade, apesar e contra esse mesmo princípio” [Constant, 1970: 8].

A delimitação da soberania, pensava Constant, não podia ficar nas mãos dos que exercem o poder, pois a tendência de todo governo constituído é a sua autopreservação. A soberania, portanto, deve ser limitada desde fora do poder, pela própria sociedade. Ora, a soberania jamais pode ser entendida como ilimitada. Esse era, para o nosso pensador, o grande defeito dos que a criticavam no Ancien Régime, identificando-a com o absolutismo monárquico. Foram atacados os reis, mas não a fonte do despotismo, que radicava na concepção inadequada de soberania como algo sem limites. Assim, o absolutismo de um ou de poucos foi substituído pelo de muitos, sem que mudasse a forma de se entender a soberania. Constant deixou clara a forma limitada em que entendia a soberania, com as seguintes palavras: “Numa sociedade fundada na soberania do povo, é evidente que nenhum indivíduo, classe nenhuma, tem o direito a submeter o resto à sua vontade particular; mas é falso que a sociedade, no seu conjunto, possua sobre os membros uma soberania sem limites” [Constant, 1970: 9].

A soberania deve ser limitada em si mesma. Ela abarca, parcialmente, o ser dos cidadãos, ficando do lado de fora da mesma o que diga relação à independência e à existência do indivíduo. Ultrapassar esse limite torna a soberania ilegítima. Nem interessa se esse abuso é cometido por uma pessoa, um grupo ou a maioria dos homens na sociedade. Será sempre algo ilegítimo. A respeito, frisava Constant: “O assentimento da maioria não basta em todos os casos para legitimar os seus atos; há atos que é impossível sancionar. Quando uma autoridade pratica atos semelhantes, não importa a fonte da que pretenda provir, não importa que se chame indivíduo ou nação. Faltar-lhe-ia legitimidade, mesmo em se tratando de toda a nação e havendo um único cidadão oprimido” [Constant, 1970: 10].

O grosseiro erro de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) consistiu, frisava Constant, em ter imaginado uma Vontade Geral como poder ilimitado, que terminava sacrificando, em nome da democracia, a liberdade que pretendera defender. O filósofo de Genebra, considerava o nosso pensador, ignorou esta simples verdade: “o assentimento da maioria não basta (…) para legitimar os seus atos”. Vale a pena citar completa a crítica efetivada por Constant ao democratismo rousseauniano, pois ela serviu de base para as que foram levantadas, no seio do liberalismo francês, no decorrer do século XIX, com François Guizot (1787-1874), Alexis de Tocqueville (1805-1859) e outros e, ainda no século XX, com Raymond Aron (1905-1983), Alain Peyreffitte (1925-1999), Jean-François Revel (1924-2006), etc.

Eis o teor da crítica de Constant: “Rousseau ignorou esta verdade, e o seu erro fez do seu Contrato social, tão frequentemente invocado em prol da liberdade, o instrumento mais terrível de todos os gêneros de despotismo. Definiu o contrato celebrado entre a sociedade e os seus membros como a alienação completa e sem reservas de cada indivíduo, com todos os seus direitos em mãos da comunidade. Para nos tranquilizar acerca das consequências do abandono tão absoluto de todas as partes da nossa existência em benefício de um ser abstrato, diz-nos que o soberano, ou seja, o corpo social, não pode prejudicar nem ao conjunto dos seus membros, nem a cada um deles em particular; que, ao se entregar cada um por completo, a condição é igual para todos, e que ninguém tem interesse em torná-la onerosa aos demais; que ao se dar cada um a todos, não se dá a ninguém; que cada um adquire sobre todos os associados os mesmos direitos que ele lhes entrega, e ganha o equivalente de tudo quanto perde, com mais poder para conservar o que tem. Mas esquece que todos esses atributos preservadores que confere ao ser abstrato, que chama de soberano, resultam de que esse ser se compõe de todos os indivíduos sem exceção. Ora, tão logo que o soberano tem de fazer uso do poder que possui, ou seja, tão logo que deve proceder a uma organização prática da autoridade, não podendo o soberano exercê-la por si próprio, delega-a, e todos esses atributos desaparecem. Ao estar, necessariamente, pela sua própria vontade ou à força, a ação que se executa em nome de todos à disposição de um só ou de alguns, resulta que, ao se dar um a todos, não é verdade que não se dê a ninguém; pelo contrário, dá-se aos que agem em nome de todos. Daí que, ao se dar por completo, não se coloca numa condição igual para todos, já que alguns se aproveitam, exclusivamente, do sacrifício do resto. Não é verdade que ninguém tenha interesse em tornar onerosa a condição aos demais, posto que há associados que estão por fora da condição comum. Não é verdade que todos os associados adquirem os mesmos direitos que cedem; não todos ganham o equivalente do que perdem e o resultado daquilo que sacrificam é, ou pode ser, o estabelecimento de uma força que lhes tira o que têm” [Constant, 1970: 10-11].

O próprio Rousseau, frisava Constant, ficou tão impressionado com as consequências decorrentes do seu conceito de soberania absoluta que decidiu criar um mecanismo para tornar impossível o exercício da mesma. Fez isso quando declarou que “a soberania não podia ser alienada, nem delegada, nem representada” [Constant, 1970: 11], abrindo, assim, caminho à ingovernabilidade que tem afetado sempre aos sistemas alicerçados na ideologia rousseauniana.

A defesa do absolutismo por Thomas Hobbes, em meados do século XVII, antecipou a tese rousseauniana da soberania absoluta. Frisa a respeito Constant: “Thomas Hobbes (1588-1679), o homem que erigiu de modo mais inteligente o despotismo como sistema, apressou-se em reconhecer o caráter ilimitado da soberania, a fim de defender a legitimidade do governo absoluto de um só. A soberania, diz Hobbes, é absoluta; essa verdade sempre foi reconhecida, inclusive por aqueles que induziram à sedição ou provocaram guerras civis. A sua intenção não era aniquilar a soberania, mas transferir o seu exercício para outras mãos” [Constant, 1970: 11].

Os espíritos absolutistas, frisava Constant, entendem os conceitos da política de forma a eles traduzirem o seu ódio à liberdade e à limitação do poder. Para eles “a democracia é uma soberania absoluta em mãos de todos; a aristocracia, uma soberania absoluta em mãos de alguns; a monarquia, uma soberania absoluta em mãos de um só. O povo pôde se desprender dessa soberania absoluta em favor de um monarca, que então se converteu no seu legítimo possuidor” [Constant, 1970: 11-12].

O nosso autor resumiu em dois pontos as consequências dos princípios por ele enunciados em relação à soberania. Em primeiro lugar, a soberania do povo não é ilimitada. Ela está delimitada pelo marco da justiça e dos direitos dos indivíduos. A vontade de um povo não pode fazer com que aquilo que é justo vire injusto e vice-versa. Em segundo lugar, pode-se afirmar que a demonstração clara de certos princípios constitui a sua melhor garantia de aceitação universal. Ora, se reconhecermos que a soberania tem limites, ninguém, em sã consciência, ousará reivindicar o poder ilimitado. A história prova que “os atentados mais monstruosos do despotismo de um só deveram-se, com frequência, à doutrina do poder ilimitado de todos” [Constant, 1970: 17]. No que tange à natureza do poder numa monarquia constitucional, Constant destacava que até sua época reconheciam-se três poderes nas organizações políticas, mas ele considerava que estes deveriam ser cinco, a saber: o poder real, o executivo, o poder representativo da continuidade, o poder representativo da opinião e o judiciário.

Onde residiriam esses poderes? Constant explicava esse ponto da seguinte forma: “O poder representativo da continuidade reside numa assembleia hereditária; o poder representativo da opinião, numa assembleia eletiva; o poder executivo é confiado aos ministros; o poder judiciário, aos tribunais. Os dois primeiros poderes fazem a lei; o terceiro providencia a sua execução legal; o quarto aplica-a aos casos particulares. O poder real está no meio, mas acima dos outros quatro, sendo, ao mesmo tempo, autoridade superior e intermediária, sem interesse em desfazer o equilíbrio, mas, pelo contrário, com o máximo interesse em conservá-lo” [Constant, 1970: 19-20].

Poderíamos terminar a exposição deste item destacando um aspecto dialético no pensamento de Constant sobre a soberania: esta deve contemplar, ao mesmo tempo, os indivíduos e a coletividade, tentando estabelecer um liame entre a defesa dos interesses individuais e o interesse público. Difícil conciliação. Mas essa constitui a essência, para Constant, da vida democrática. Em relação a este aspecto, escreve o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017): “Constant, da sua parte, endereça ao poder uma dupla exigência: ele deve ser legitimado tanto pela sua instituição como pelo seu exercício. O povo permanecerá soberano; qualquer outra alternativa levaria a se submeter simplesmente à força; mas o seu poder será limitado: deve-se deter nas fronteiras do indivíduo que será, no seu foro íntimo, o único soberano. Uma parte da sua existência submeter-se-á ao poder público; uma outra permanecerá livre. Não se pode, pois, regulamentar a vida em sociedade em nome de um princípio único; o bem-estar da coletividade não coincide, forçosamente, com o do indivíduo. O melhor regime não se satisfaz, somente, nem com a democracia, nem com o princípio liberal que exige a proteção do indivíduo. Ele deve reunir essas duas condições: essa é, pois, a democracia liberal. O equilíbrio é difícil, e é por isso que o pensamento de Constant permanece sempre atual: o Estado moderno mesmo é, constantemente, tentado a usurpar a liberdade dos indivíduos” [Todorov, 1997b: 7].

2 – O poder monárquico segundo Constant.

Para Constant, era necessário que houvesse, na estruturação do Estado, um poder neutro. A razão para postular esse poder radicava na imperfeição humana. A propósito, frisava: “Dado que os homens não obedecem sempre ao seu interesse bem compreendido, é necessário ter a precaução de que o chefe do Estado não possa substituir, na sua ação, os outros poderes. Nisso radica a diferença entre a monarquia absoluta e a constitucional” [Constant, 1970: 20].

Ora, seguindo a lição do seu mestre o banqueiro e ministro de Finanças de Luís XVI (1754-1793), Jacques Necker (1732-1804), Constant considerava que essa função de caráter moderador deveria corresponder ao monarca. “A monarquia constitucional tem esse poder neutral na pessoa do chefe do Estado. O verdadeiro interesse de tal chefia não consiste, de maneira nenhuma, em que um dos poderes destrua o outro, mas em que todos se apoiem, se entendam e ajam de acordo” [Constant, 1970: 20]. Levando em consideração a prática da monarquia constitucional na Inglaterra, Constant achava que a função real era, nesse contexto, eminentemente moderadora. A respeito, escrevia: “Na Inglaterra, não se pode fazer lei nenhuma sem o concurso da câmara hereditária e da câmara eletiva. Não pode ser executado ato nenhum sem a assinatura de um ministro, nem ser proferida sentença nenhuma sem o concurso exclusivo de tribunais independentes. Mas, uma vez que se tomou a precaução de que falo, vejamos de que forma a Constituição inglesa faz uso do poder real, para pôr fim a toda luta perigosa e restabelecer a harmonia entre os demais poderes. Se a ação do poder executivo resultar perigosa, o rei destitui os ministros. Se a da câmara hereditária resultar funesta, o rei imprime-lhe uma nova tendência mediante a instituição de novos pares. Se a da câmara eletiva se apresentar ameaçadora, o rei faz uso de seu veto, ou dissolve essa câmara. Enfim, se a própria atividade do poder judiciário se mostrar acintosa, pelo fato de aplicar a atos individuais penas gerais demasiadamente duras, o rei a modera mediante o exercício de seu direito de graça” [Constant, 1970: 20].

Constant achava que o equilíbrio dado pela moderação exercida a partir do monarca constitucional não se daria no seio de uma República, pois não haveria, aqui, clara distinção entre as esferas do poder supremo e daquele que exerce as funções executivas. “Um poder republicano que se renova periodicamente, frisava Constant, não é um ser aparte, não impressiona em nada a imaginação, não tem direito à indulgência para os seus erros, já que buscou o posto que ocupa e não tem nada mais precioso que defender do que a sua autoridade, comprometida quando é atacado o seu ministério, integrado por homens como ele e dos que sempre é solidário” [Constant, 1970: 25]. Somente a monarquia constitucional garantiria a presença do poder neutro, que exerceria as funções moderadoras.

Eis a forma em que o pensador completava o quadro desse poder: “A monarquia constitucional oferece-nos, como já frisei, esse poder neutro, tão necessário para o exercício normal da liberdade. O rei, num país livre, é um ser à parte, superior à diversidade de opiniões, sem outro interesse que a manutenção da ordem e da liberdade, sem poder jamais cair na condição comum, inacessível, portanto, a todas as paixões que tal condição faz nascer e a todas as que a perspectiva de a ela voltar alimenta, no coração dos agentes que estão investidos de uma potestade passageira. Essa augusta prerrogativa da realeza deve infundir, no espírito do monarca, uma calma e, na sua alma, um sentimento de tranquilidade, que não podem ser patrimônio de nenhum indivíduo situado numa posição inferior. O monarca flutua, por assim dizer, por cima das agitações humanas e constitui um grande acerto da organização política ter criado, no seio mesmo dos dissentimentos, sem os quais nenhuma liberdade é possível, uma esfera inviolável de segurança, de majestade, de imparcialidade, que permite a eclosão desses dissentimentos sem nenhum perigo, desde que não excedam certos limites, e que, quando aquela se anuncia, lhe ponha término por meios legais, constitucionais e não arbitrários. Todo esse imenso benefício perde-se se o poder do monarca for rebaixado ao nível do poder executivo, ou se for elevado este ao nível do monarca” [Constant, 1970: 22].

Ficavam superadas, na instituição da monarquia como poder neutro, no sentir de Constant, as velhas lembranças do rei-administrador de justiça, sentado debaixo de uma árvore e rodeado dos seus súditos, que enxergavam nele uma espécie de enviado dos deuses. A instituição régia, na prática da monarquia constitucional, se bem que delimitou os poderes do soberano, deu-lhe, no entanto, um perfil de salvaguarda da estabilidade política. A propósito, escrevia o nosso pensador: “Muitas coisas que admiramos e que nos parecem impressionantes, em outras épocas, são agora inadmissíveis. Representemos os reis da França fazendo justiça ao pé de um carvalho; esse espetáculo nos emocionará e reverenciaremos esse exercício augusto e simples de uma autoridade paternal. Mas, hoje, o que acharíamos de um julgamento efetivado por um rei, sem o concurso dos tribunais? A violação de todos os princípios, a confusão de todos os poderes, a destruição da independência judicial, tão energicamente querida por todas as classes. Não se constrói uma monarquia constitucional com lembranças e com poesia” [Constant, 1970: 30].

A prática da monarquia constitucional tirou do soberano a pecha de ser um poder arbitrário e o revestiu, em compensação, de uma auréola moral que se sobrepõe à luta rasteira pelo poder. Se os reis perderam funções políticas, conservaram, no entanto, um acúmulo de funções que lhes assegura o respeito da sociedade, ao torná-los a garantia viva da estabilidade das instituições.

Eis a forma em que Constant elencava as prerrogativas régias, na sua concepção liberal moderada: “Numa Constituição livre, restam, aos monarcas, nobres, formosas, sublimes prerrogativas. Pertence-lhes o direito de conceder graça, direito de uma natureza quase divina, que repara os erros da justiça humana ou os seus rigores demasiadamente inflexíveis, que também são erros; pertence-lhes o direito de investir os cidadãos distintos de uma ilustração perdurável, guindando-os a essa magistratura hereditária, que reúne o brilho do passado e a solenidade das mais altas funções políticas; pertence-lhes o direito de nomear os órgãos das leis e de garantir à sociedade o gozo da ordem pública e a inocência da segurança; pertence-lhes o direito de dissolver as assembleias representativas e preservar, destarte, a nação dos desvios dos seus mandatários, convocando novas eleições; pertence-lhes a nomeação dos ministros, o que proporciona, ao monarca, a gratidão nacional, quando os ministros se ocuparem dignamente da missão que lhes foi confiada; pertence-lhes, enfim, a distribuição de graças, favores, recompensas; a prerrogativa de pagar com um olhar ou com uma palavra os serviços prestados ao Estado, prerrogativa que dá à monarquia um tesouro inesgotável de opinião, que faz de cada amor próprio um servidor e de cada ambição um tributário. Eis aí, certamente, uma ampla carreira, atribuições imponentes, uma grande e nobre missão; seriam maus e pérfidos os conselheiros que apresentassem, perante um monarca constitucional, como objeto de desejo ou de nostalgia, essa potestade despótica sem limites, ou melhor sem freio, equívoca porque ilimitada, precária porque violenta e que pesaria, de modo igualmente funesto, sobre o príncipe, a quem não pode menos de desviar, que sobre o povo, ao qual só pode atormentar e corromper” [Constant, 1970: 30-31].

3 – A herança de Benjamin Constant na teoria da representação de Silvestre Pinheiro Ferreira.

A doutrina política de Constant de Rebecque foi a base sobre a qual o máximo expoente do liberalismo de início do século XIX entre nós, Silvestre Pinheiro Ferreira, deitou os alicerces da teoria da monarquia constitucional. Decorreu da concepção do pensador suíço-francês a teoria ferreiriana do Poder Conservador, que, posta em prática pela Constituição Imperial de 1824, transformou-se na instituição do Poder Moderador.

Pretendo, em primeiro lugar, mostrar de que forma Silvestre Pinheiro Ferreira deitou os alicerces teóricos da prática do governo representativo na nossa tradição política. Em segundo lugar, é meu propósito ilustrar de que forma a Constituição Imperial de 1824 constituiu a passagem segura da Monarquia Absoluta para a Constitucional, preservando as instituições do Governo Representativo, num contexto jurídico e político (decorrente do patrimonialismo), em que se fazia necessário manter o centripetismo do Estado ao redor do Poder Moderador, mitigado com a prática do parlamentarismo, a fim de evitar os extremos do absolutismo e do democratismo.

Serão desenvolvidos três itens nesta parte: A) Tradição libertária versus tradição patrimonial na cultura luso-brasileira; B) A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira; C) A Carta de 1824 e a prática do parlamentarismo. Destacarei, notadamente nos itens ‘b’ e ‘c’, a forma em que Pinheiro Ferreira e os estadistas do Império inspiraram-se em Benjamin Constant de Rebecque, para pensarem e darem forma às instituições do governo representativo no Império, no contexto da monarquia constitucional adotada por eles.

A – Tradição libertária versus tradição patrimonial na cultura luso-brasileira.

Ficou claro, a partir das análises de Max Weber (1864-1920), que os Estados modernos não surgiram de forma unívoca, mas que a sua estruturação decorreu de um duplo modelo: contratualista e patrimonial.

O primeiro modelo consolidou-se, de acordo com Weber, ali onde houve uma experiência feudal completa: na Europa Ocidental e nas Ilhas Britânicas. O segundo constituiu o arquétipo que pautou o surgimento e estruturação do Estado, ali onde a experiência feudal foi incompleta, ou substituída por práticas diretoriais oriundas do despotismo oriental. Este foi o caso específico dos países que se situam nos confins da Ilha Europeia e que, por isso mesmo, sofreram, ao longo da Idade Média, a influência das invasões provenientes do extremo e do médio oriente. Os casos paradigmáticos desta versão foram constituídos pela Rússia, que sofreu as invasões da Horda Dourada de Genghis Khan (1162-1227) e pela Península Ibérica, que entre 710 e 1490 ficou submetida, em boa extensão do seu território, à dominação muçulmana.

O modelo contratualista foi caracterizado por Weber [Cf. 1944, I: 226-227; 235-236; 240-244; 267-272; 276-278. Weber, 1944, IV: 131-251] como aquele em que o Estado surge a partir da negociação e do pacto entre as classes que lutam pela posse do poder. Esse modelo vingou, como já foi anotado, na Europa Ocidental e nas Ilhas Britânicas, tendo dado ensejo, a partir do século XIX, à prática do parlamentarismo e ao aparecimento, na administração pública, de uma burocracia racional. Foram influenciados por esse modelo os países que, embora não tendo experimentado o feudalismo de vassalagem, sofreram, no entanto, a influência do liberalismo anglo-saxão, como Estados Unidos, Canadá e outros pertencentes à Commonwealth.

Já o modelo patrimonial foi caracterizado por Weber como aquele em que o Estado surge a partir da hipertrofia de um poder patriarcal, que estende a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, que são administrados como se fossem propriedade familiar (patrimonial) do governante. Weber, e também Karl Wittfogel (1896-1989) [cf. Wittfogel, 1977] estenderam, nos seus estudos, a vigência do modelo de Estado patrimonial para além das fronteiras do mundo moderno, arrolando, sob esse conceito-tipo, os antigos Estados hidráulicos (o Egito dos Faraós, o Império chinês, notadamente sob a dinastia Liao, os Califados árabes, os Impérios pré-colombianos inca e asteca, etc.).

A característica fundamental das formações políticas patrimoniais é, segundo Wittfogel, o fato de constituírem Estados mais fortes do que a sociedade. Nelas, o poder político não é entendido como instância pública, como busca do bonum commune, como res publica, mas como res privata ou coisa nossa. Há uma confusão radical entre público e privado. Weber e também Wittfogel anotaram outras características típicas dos Estados Patrimoniais: neles surge, como instância auxiliar do soberano, um estamento burocrático pré-racional, porquanto não pautado por regras impessoais, mas alicerçado na fidelidade pessoal. De outro lado, a lei não exprime uma ordenação que vale para toda a sociedade, mas apenas constitui casuísmo a ser utilizado pela autoridade central a seu bel prazer. A sociedade, outrossim, comporta-se de forma passiva e insolidária, sendo a única força a autoridade do soberano absoluto, que é invocada para solucionar qualquer pendência. A religião, que na Europa feudal constituiu instância de poder espiritual irredutível ao imperium, no contexto patrimonial passa a ser cooptada pelo poder temporal.

O Estado português, já desde a Revolução de Avis (1385) [Cf. Faoro, 1958: I, 39-72] consolidou-se como Estado patrimonial. Alexandre Herculano (1810-1877), na sua História de Portugal [1914: I] destacou a ausência de feudalismo em Portugal e a forma em que os príncipes cristãos, que venceram os sarracenos, passaram a administrar o Reino como propriedade particular, tendo sido nesse ponto influenciados pela cultura política muçulmana. Lúcio de Azevedo (1855-1933), na sua obra Épocas de Portugal econômico [Azevedo, 1978], identificou o Reino de Portugal como empresa do Rei, que presidia, inicialmente, uma monarquia agrária, para se tornar, depois, “Mercador de mercadores”. O mercantilismo da empresa ultramarina esteve indissociavelmente ligado à característica centrípeta e privatizante do exercício do poder monárquico. Raymundo Faoro (1925-2003), no seu clássico estudo de 1958, Os donos do poder, analisou, detalhadamente, a forma em que se consolidou o estamento burocrático da monarquia portuguesa, alicerçado esse processo na fidelidade pessoal ao monarca, na progressiva substituição da nobreza de sangue pela de funcionários públicos, na submissão da burguesia à empresa do Rei, bem como na incorporação do direito romano, a partir da ação decisiva do Mestre de Avis, Dom João I (1357-1433). Oliveira Vianna (1883-1951), no magistral estudo intitulado Introdução à história social da economia pré-capitalista no Brasil [Vianna, 1958], mostrou, claramente, que o comportamento da nobreza decadente portuguesa pautou-se, a partir dos “fumos da Índia”, pelos critérios da improdutividade e do consumo suntuário, ensejando, assim, a forte tendência orçamentívora que a caracterizou.

O Brasil herdou de Portugal a estrutura patrimonial do Estado. Esse fato tem sido estudado, além de Raymundo Faoro (que foi o pioneiro, no meio brasileiro, nesse tipo de análise), por Simon Schwartzman [1982], Antônio Paim [1978], Fernando Uricoechea [1978], Wanderley Guilherme dos Santos [1978], José Osvaldo de Meira Penna [1988] e, mais recentemente, por Arno Wehling [2004]. Este último autor, se aproximando do modelo desenvolvido por Tocqueville, em relação ao absolutismo francês em L’Ancien Regime et la Révolution, ilustrou a forma em que foram sendo constituídas as instituições, as práticas cartoriais e as profissões que deveriam servir ao Estado Patrimonial, entre 1750 e 1850.

Se o Brasil herdou de Portugal a estrutura e a tradição patrimonial do Estado, herdou também a luta que se travou, ao longo de séculos, no seio das sociedades ibéricas, entre o estatismo centrípeto e a tradição consuetudinária e libertária do antigo direito visigótico. Weber, aliás, já tinha chamado a atenção para o fato de que sociedades presididas por Estados patrimoniais pudessem abarcar, no seu seio, tradições contratualistas, que entrariam em atrito com o caráter centrípeto das instituições políticas e que, dinamizadas em virtude de processos endógenos e exógenos, poderiam faze-las progredir até formas de tipo contratualista. A evolução de Espanha e de Portugal, nas últimas três décadas do século XX, corresponderia a um processo desse tipo.

Convém destacar que Weber reconhece, também, a possibilidade de involução de sociedades de caráter contratualista para sociedades de tipo patrimonial, em virtude do predomínio da tendência autocrática e do esfacelamento da solidariedade social. Esse seria o caso ocorrido na Rússia, a partir da adoção dos processos diretoriais, de origem mongólica, pelo Principado de Moscou (no século XIII) [cf. Thambs, 1979: 8].

Essas duas tradições (a patrimonial-tuteladora e a libertária) são bem antigas. A primeira, a patrimonial [cf. Vélez, 1984: 81-136] deita raízes, como já foi explicado, no duradouro e profundo influxo que exerceu, na Península Ibérica, a cultura muçulmana, com a sua tendência centrípeta e paternalista em política. A dominação dos Califados árabes, entre 710 e 1490, certamente, foi responsável pela incorporação, às práticas administrativas, dessa carga de nepotismo, de clientelismo, de indiferenciação entre público e privado, que vieram a florescer na América Latina, no conhecido fenômeno do caudilhismo. Trata-se, evidentemente, de uma tradição cultural paradoxal que, de um lado, renovou a intelligentsia ibérica com o legado das Universidades de Córdova e Toledo, nos brumosos confins do final da Idade Média, mas que, no terreno político, revelou-se claramente despótica, até o ponto de pretender cooptar a variável religiosa como raison d’État do absolutismo. É o que aconteceu, na Espanha e em Portugal, sob a dominação dos Áustrias, ao ensejo da tutela exercida sobre o catolicismo, considerado pelos soberanos espanhóis como religião de cruzada, destinada a reforçar o Império no contexto da Contrarreforma, fato que levou o pensador português Fidelino de Figueiredo (1888-1967) a caracterizar as políticas estatizantes de Carlos V (1500-1558) e Filipe II (1527-1598) como instauradoras de uma “alfândega cultural” [cf. Figueiredo, 1959].

A tradição libertária é, contudo, mais antiga e se filia ao direito consuetudinário de origem visigótica, que veio a florescer nas “cartas de foral” e na vida municipal, tão fortemente enraizada nas práticas políticas ibéricas. Essa é a tradição que permitiu o renascimento das instituições do governo representativo e da prática da democracia parlamentar, na Espanha e em Portugal, na segunda metade do século passado, de forma a se integrarem esses países, plenamente, à Comunidade Europeia. Testemunho bastante antigo dessa tradição libertária é dado pelos Foros Aragoneses, na fórmula recitada pelo justiça-mor no ato de coroação do Rei: “Nós, que valemos cada um tanto quanto vós e que, juntos, valemos mais do que vós, vos fazemos nosso Rei e Senhor, com a condição de que conserveis nossos foros e liberdades, ou se não, não!” [Jaramillo Uribe, 1974: 104, nota].

Foi essa tradição libertária que inspirou os príncipes cristãos, no início do século VIII, na luta da reconquista, que se estendeu até o final do século XV. Apesar de que os cristãos tivessem se deixado contaminar pela cultura política muçulmana, conforme foi referido acima, no entanto preservaram-se, nas práticas políticas ibéricas, elementos fundamentais da tradição libertária. Esse núcleo poderia ser identificado com a valorização das Câmaras Municipais, cuja origem remonta, segundo o bispo e historiador espanhol Francisco Javier Martínez Marina (1754-1833), às Cortes medievais. “O autenticamente tradicional em Castela – escreve Ots Capdequí [1968: 10] sintetizando o pensamento liberal de Martínez Marina – tinha sido a existência de um regime político que descansava, igualmente, na autoridade dos monarcas e na pujança autônoma das cidades, representadas nas altas esferas do governo pelos seus procuradores, que tiveram parte ativa e destacada nas reuniões das Cortes. O contrário dessas boas tradições democráticas foram os ideais absolutistas, exaltadores, sem freio, do poder pessoal dos Reis, que introduzimos na Espanha, como em outros povos da Europa Ocidental, com a adoção do Direito Romano Justiniano, e que chegaram a culminar no governo político da nação, com a entronização infeliz das dinastias estrangeiras”. A tradição municipalista foi portadora do ideal libertário e contribuiu, eficientemente, ao longo dos séculos, para mitigar a tradição patrimonialista.

Tão forte foi a presença da tradição liberal municipalista na mentalidade política ibérica que chegou a inspirar um dos mais importantes teóricos da Segunda Escolástica, o jesuíta Francisco Suárez (1548-1617) que, na sua obra De legibus ac de Deo legislatore, publicada em 1613, defendia a idéia da soberania popular [cf. Gallegos Rocafull, 1946: 37-56]. Com razão escreve o historiador colombiano Jaime Jaramillo Uribe (1917-2015), referindo-se à repercussão dessas ideias no meio ibero-americano: “Não era (…) absolutamente necessário o contato com as correntes do pensamento francês e inglês do século XVIII, para que fossem divulgadas, nas últimas gerações neo-granadinas da época colonial, as ideias de soberania popular, de poder limitado por normas jurídicas e de livre eleição dos governantes pelo povo, porque essas ideias eram patrimônio comum do pensamento escolástico espanhol e da escola do direito natural, ambos estudados nas Universidades coloniais desde o século XVII. De tal espírito estava impregnada a geração dos precursores da Independência – inclusive a educação de Antonio Nariño (1765-1823), o tradutor dos Direitos do Homem – e ainda na primeira geração republicana” [Jaramillo Uribe, 1974: 103-104].

Em relação à presença, no meio colonial brasileiro, da tradição municipalista ibérica, escreveu a historiadora Mury Lydia [1973: 46]: “Entre as instituições dignas de menção, encontram-se as câmaras municipais. Herdeiras das vereanças ibéricas e dos parlamentos municipais e comunas europeus, vieram manter aqui a noção viva da representação popular e da ascendência da deliberação no processo político — bem como a da decisão pluripessoal no jurídico (…). Já se observou, com razão, que as atribuições oficiais daquelas câmaras superavam, mesmo, às das municipalidades contemporâneas, pois inclusive enfeixavam competências hoje correspondentes às do Ministério Público. Realmente, certas experiências, então trazidas e mantidas, como a da eleição de juízes – indireta e oligárquica, embora -, foram muito interessantes e a situação era suficiente para poder-se dizer, hoje, que o município colonial foi embrião de nossas estruturas políticas e sociais posteriores”.

A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, ao definir no Título I, artigo 3º que “O (…) governo é monárquico hereditário, constitucional e representativo” [Brasil, 1948: 35], afastou-se da feição patrimonial do Estado e se aproximou da tradição libertária, tendo dado ensejo à prática do parlamentarismo. Os fundamentos filosóficos dessa mudança estão na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira.

B – A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira.

A grande contribuição de Pinheiro Ferreira consistiu em ter deitado as bases que possibilitaram o trânsito pacífico, no Brasil, da monarquia absoluta para a constitucional, o que correspondeu à mitigação da tradição patrimonial-tuteladora pela libertária-contratualista. Antônio Paim (1927) sintetizou, da seguinte forma, a atuação do pensador português: “Com a Revolução Constitucionalista do Porto e sua repercussão no Brasil, decide o Monarca entregar a chefia de seu governo a Silvestre Pinheiro Ferreira, em fevereiro de 1821, que nele acumula as pastas de Exterior e de Guerra. Nessa condição regressa com o Monarca a Portugal, afastando-se do governo em 1823, em vista dos propósitos absolutistas que logo se configurariam. Coube, portanto, ao ilustre pensador a espinhosa missão de efetuar o trânsito da monarquia absoluta para a constitucional e, em meio a clima de todo desfavorável, lutando contra os que apenas ganhavam tempo e somente desejavam a volta da situação antiga e, simultaneamente, cuidando de isolar o radicalismo” [Paim, 1983: 55].

Analisarei a concepção política de Silvestre Pinheiro Ferreira, detendo-me no que tange à sua teoria da representação. Antes, contudo, convém salientar com Vicente Barretto (1939-) que a sua obra “constituiu marco fundamental na história do pensamento político português e brasileiro. O estadista e pensador português desenvolveu de forma sistemática, pela primeira vez em língua portuguesa, a teoria do Estado liberal constitucional. Encontramos nos seus diversos livros a preocupação de construir uma teoria política que, antes da Independência do Brasil em 1822, servisse de fonte inspiradora para a reforma das instituições da monarquia luso-brasileira e, depois da separação do Brasil de Portugal, constituísse o modelo para a organização política de ambos os países” [Barretto, 1976: 11].

Em dez itens poderíamos resumir a concepção liberal moderada de Silvestre Pinheiro Ferreira, que buscava garantir o exercício da liberdade, num contexto jurídico que permitisse a organização constitucional do Estado [cf. Paim, 1979: 11-17; Barretto, 1976: 11-18]:

Base moral do pacto político: Pinheiro Ferreira retomou a tese, defendida por John Locke (1632-1704) no seu Segundo Tratado sobre o governo civil (1689) [cf. Locke, 1965], da antecedência dos direitos naturais individuais aos direitos da sociedade. Esta surgiu, precisamente, para garantir os direitos naturais à vida, à liberdade e às posses. O ponto de partida do pensador português era, portanto, nitidamente liberal e haveria de informar toda a sua restante concepção política.

Finalidade imediata da sua teoria política sendo reestruturar a monarquia para salvá-la e fortalecê-la: Pinheiro Ferreira, em face dos extremos do democratismo jacobino (que conduziu à Revolução e ao Terror, na França), e do absolutismo monárquico (que tanto sangue fez verter na Península Ibérica), optou, decididamente, pela hegemonia do Estado entre os demais grupos sociais e pela sua reformulação, no contexto da Monarquia Constitucional, conforme tinha sido pensada pelos publicistas franceses do período da Restauração, notadamente, por Benjamin Constant de Rebecque.

Iniciativa da reforma política a partir da Coroa: Esta ideia de Pinheiro Ferreira orientava-se a impedir que se fizessem as reformas pela via revolucionária. Os desmandos acontecidos na Revolução Francesa decorriam, no sentir do pensador português, do fato de se ter perdido o controle sobre os acontecimentos. Pinheiro Ferreira defendia ardentemente a luta contra o imobilismo e contra qualquer forma de regresso às instituições absolutistas, mas o caminho que assinalava era, basicamente, o das reformas promovidas a partir do Estado.

Criação do governo pela Constituição: Este ponto constituía a pedra angular das reformas políticas propostas por Pinheiro Ferreira. O pensador português seguiu, nesse aspecto, o pensamento liberal de Thomas Paine (1737-1809), para quem “uma Constituição não é um ato de governo, mas de um povo constituindo um governo; e o governo, sem Constituição, é poder sem direito” [Paine, 1961: 420]. O constitucionalismo representou, na verdade, no contexto da evolução histórica do liberalismo, a tentativa de institucionalização jurídica da teoria política lockeana [Cf. Macedo, 1987: 33-44].

Existência de cinco poderes – o eleitoral, o legislativo, o judicial, o executivo e o conservador: Pinheiro Ferreira inspirou-se, sem dúvida, nos cinco poderes propostos por Benjamin Constant de Rebecque, nos seus Princípios de Política (publicados em 1815) [Cf. Constant, 1970: 18-31]. O “Poder Neutro” de Constant seria denominado, pelo filósofo português, de “Poder Conservador” e inspiraria o “Poder Moderador” da Constituição do Império do Brasil de 1824. A sua finalidade consistiria em restabelecer o equilíbrio, no momento do choque dos demais poderes.

Problema principal da reforma política – a representação: Pinheiro Ferreira retomou aqui a tradição liberal lockeana. O pensamento constitucional do estadista português tinha quatro grandes preocupações: definição dos direitos individuais, fixação dos limites ao poder estatal, estruturação equilibrada dos poderes governamentais e, fundamentalmente, a representação política. A função desta consistiria, no sentir de Vicente Barretto, em “através do voto ou da representação virtual (do Imperador), fazer com que os problemas sociais e políticos fossem debatidos por uma elite” [cf. Barretto, 1976: 17].

Não há dúvida de que é liberal (à la John Locke e à la Benjamin Constant) a inspiração política de Silvestre Pinheiro Ferreira. Detenhamo-nos, um pouco, na sua teoria da representação. O pensador português não duvidava de que os males que afetavam ao Reino de Portugal, nas duas primeiras décadas do século XIX, decorriam do seu afastamento da verdadeira tradição liberal-contratualista no terreno constitucional. Não foram os franceses os que fizeram afundar a Península Ibérica quando da invasão napoleônica, mas a rapacidade dos ineptos Ministros de Espanha e Portugal, que administravam corruptamente o Estado mergulhando-o na bancarrota.

Eis as palavras que o estadista dirigia a dom João VI, em carta escrita no Brasil, em 1814: “Não foram os franceses os que precipitaram a Península no abismo em que se acha: eles nada mais fizeram do que apoderar-se, sem honras e sem glória, de uma fácil presa, que os ministros de V. A. R. e os de seu augusto sogro [Fernando VII da Espanha], parte por perfídia, parte por inépcia, apresentaram sem defesa à sua rapacidade. Eu não remontarei a épocas mais antigas do que o ano de 1790. Não foram estes ministros os que, de vinte anos a esta parte, não cessaram de esgotar o real erário com o pagamento das dívidas de tantos dissipadores? Não foram eles os que, a título de melhor administração, sobrecarregaram com inúteis juntas, mesas e inspeções a real fazenda que, à sombra destes corpos imorais, imunes por sua natureza, se viu mais dilapidada do que antes? Não foram eles os que, com escárnio dos estrangeiros e insensato desperdício das rendas públicas, desfiguraram a marinha e o exército com uma tão numerosa quanto imperita oficialidade? Não foram eles os que, a peso de ouro, ajustaram um ou outro general estrangeiro para organizar os exércitos de V. A. R. e em nada mais cuidaram para impedir a decadência, em que todo o mundo os via precipitarem-se com a monarquia?” [Ferreira, 1976: 28].

Entretanto, se a inépcia e a corrupção do absolutismo eram as culpadas pela negativa situação dos países ibéricos, era também causa responsável o vício do democratismo revolucionário, em que eles tinham descambado, à sombra da Constituição espanhola, inspiradora da Revolução Constitucionalista do Porto (1820). A respeito, escreve Pinheiro Ferreira: “Se governos tais como o de Espanha e provavelmente o de Portugal não fossem condenados pelo democratismo das suas constituições a serem o ludíbrio de partidos incapazes de razão e de sistema, mui fácil seria à Península, não digo já resistir, mas até fazer passar à Santa Aliança toda a vontade de se intrometer nos seus negócios internos” [Ferreira, 1976: 74].

Qual seria o caminho para sair dos males presentes? Somente um: institucionalizar o sistema representativo. A adoção deste correspondia, para Silvestre Pinheiro Ferreira, não a uma quebra das tradições portuguesas, mas à retomada da mais sadia de todas elas: a tradição contratualista, que fazia do Rei mandatário da nação, única depositária da soberania. Em detalhada exposição histórica, no seu Manual do Cidadão em um Governo Representativo, Pinheiro Ferreira destaca que a tradição mais antiga, a que acompanha Portugal desde a sua consolidação como nação independente, é a da soberania popular que delega o poder no Rei, mas que não duvida em tirá-lo dele nos momentos em que o Monarca esquecer a busca do bem comum.

Concluindo a sua exposição, escreve o pensador português: “Não há povo algum na Europa, exceto o espanhol, onde a origem da monarquia seja mais popular, e os limites da realeza mais bem estabelecidos do que no português. (…) Fica, pois, provado, além de outros muitos documentos da história portuguesa pela Ata das Cortes de 1641, no reinado de dom João IV, e pela Exposição remetida ou autorizada por dom Pedro II, não só a verdadeira origem, mas as condições essenciais do poder monárquico em Portugal; e que neste reino o princípio da soberania do povo tem prevalecido sobre a doutrina do chamado direito divino, doutrina falsa e subversiva enquanto considerada como imediata origem do poder civil. Por esta ocasião é de notar que o princípio da soberania do povo foi expressamente reconhecido e adotado pelos dois primeiros reis da casa de Bragança; que foi depois renegado por outros monarcas da mesma dinastia tornando-se absolutos; e ultimamente foi restabelecido por dom Pedro I, outro Príncipe da mesma dinastia e imperador do Brasil, no artigo 12 da constituição daquele império onde se diz: Todos os poderes políticos no Império do Brasil são delegações da Nação” [Ferreira, 1976: 154-156, nota].

Pinheiro Ferreira considerava que somente a adoção do sistema representativo permitiria ao Brasil superar os males que afetavam Portugal, vítima, sucessivamente, do absolutismo e do democratismo. Eis as palavras com que o nosso autor inicia o seu Manual do Cidadão em um Governo Representativo: “O Projeto de código constitutivo que hoje publicamos é a pura expressão das opiniões políticas que de quarenta anos a esta parte havemos constantemente professado. Consultados, em 1814, pelo monarca, a quem naquela época estavam confiados os destinos da nação, sobre o meio de atalhar os males de que o reino estava ameaçado, dissemos, sem rebuço, que a adoção do sistema representativo era o que unicamente podia obstar à iminente catástrofe da monarquia” [Ferreira, 1976: 107].

Feita a defesa incondicional da soberania popular e do sistema representativo, os restantes pontos da teoria da representação revelam, também, a mais ortodoxa inspiração no liberalismo lockeano e na interpretação elaborada por Benjamin Constant, a que já fizemos referência na parte inicial deste trabalho. A representação é, fundamentalmente, de interesses [cf. Ferreira, 1976: 121]. Para que a representação seja autêntica, é necessário a sua vinculação a uma base territorial definida, bem como a sua institucionalização permitindo a representação das várias ordens de interesses presentes na sociedade; o nosso autor defendia a divisão do território em cantões (proposta que deu ensejo aos distritos eleitorais do Império).

A respeito dessas exigências da representação, escreve: “O que importa, pois, determinar é a extensão do território que, em regra geral, é de presumir que os conhecimentos do deputado possam abranger na sua especialidade. Ora, nós entendemos que todo o homem é capaz de representar e conhecer, mesmo em todos os pormenores, não a província, mas decerto o cantão onde é domiciliado. De onde se segue que cada cantão deve mandar ao congresso um deputado por cada um dos três estados, comércio, indústria e serviço público” [Ferreira, 1976: 133].

No que tange às várias ordens de interesses a serem representados, Pinheiro Ferreira frisa: “O que, porém, distingue essencialmente o nosso método do que vulgarmente está recebido, é que nós exigimos, em cada deputado, a especialidade de conhecimentos requerida para bem representar cada uma das três sortes de interesses relativos às três seções de que se deve compor o congresso legislativo; enquanto nos métodos vulgares cada eleitor escolhe, sem saber que condições deve reunir o candidato. Por isso, vemos que os interesses dos diferentes estados são mui imperfeitamente representados, nos congressos de quantas nações se presumem viver debaixo do regime constitucional; pela simples razão que a lei não dirigiu a atenção do eleitor afim de que ele se concentrasse no círculo de seus conhecimentos, e procurasse, entre as pessoas do seu mesmo estado, as mais capazes de representar os respectivos interesses [Ferreira, 1976: 133-134].

O Congresso deve representar todos os interesses presentes na sociedade. A respeito, Pinheiro Ferreira escreve: “O Congresso deve ser dividido em três seções (…). Destas seções, duas são destinadas a representar os interesses especiais do comércio e da indústria, e a terceira os interesses gerais de todas as classes, à qual por isso daremos o nome de estadística. Para cada uma das três mencionadas seções deve ser eleito um deputado por cantão, sendo eleitores os cidadãos aí estabelecidos, e que, em razão de seus empregos ou profissões, pertençam àquela das sobreditas ordens de interesses, que o deputado tem de representar, quer ele pertença à seção do comércio, quer à da indústria. Quanto à seção da estadística não se faz diferença de profissão ou emprego” [Ferreira, 1976: 136].

O pensador português considerava que a principal vantagem do sistema representativo surgido das eleições, consistia na conquista da verdadeira estabilidade política. Contrariamente ao preconceito dos espíritos absolutistas, que criticavam a democracia representativa pelo fato de ensejar a instabilidade política decorrente dos contínuos pleitos eleitorais, Pinheiro Ferreira achava que a história prova exatamente o contrário: ali onde se concretizou a institucionalização da representação a partir das eleições, conquistou-se a verdadeira estabilidade política e a paz social, como nos Estados Unidos. A respeito, escreve o nosso autor: “Bastaria citar o exemplo dos Estados Unidos da América setentrional para mostrar quanto é falsa a asserção dos perigos inerentes ao sistema eletivo” [Ferreira, 1976: 165].

Silvestre deixa claro, evidentemente, que pode haver pleitos eleitorais viciados. Daí a grande importância que confere à elaboração de uma apropriada legislação eleitoral, que impeça as fraudes, ou que o processo democrático termine sendo manipulado por uma minoria, como no caso extremo do democratismo. Refletindo acerca das medidas que devem ser tomadas para salvaguardar os pleitos eleitorais, escreve: “Uma observação, que não podemos passar em silêncio, vem a ser: que as comoções populares de que as eleições têm sido algumas vezes acompanhadas, tiveram origem nos defeitos em que elaboravam os métodos para esse efeito adotados. Mas desde que estes forem fundados nos princípios que havemos desenvolvido na conferência em que tratamos da teoria das eleições, os erros que se introduzirem (porque o erro é inevitável em toda a instituição humana) serão tão fáceis de reconhecer como de reparar. Quando as eleições não forem o monopólio de alguns, mas sim o direito de todos; quando nenhum cidadão capaz de emitir voto com conhecimento de causa puder ser excluído, nem dispensado de o fazer; quando todo o cidadão que reunir as condições de elegibilidade requeridas for necessariamente objeto de votação, e esta se fizer por via de uma simples remessa de listas, com a maior independência e publicidade, sem tumulto, confusão, nem surpresa, todo o acesso à intriga será impossível, pois é evidente que não se pode intrigar à face de toda a gente” [Ferreira, 1976: 165-166].

Uma vantagem adicional para a institucionalização de regimes representativos a partir do sufrágio popular, é a garantia que daí decorre, no que tange ao zelo dos administradores da coisa pública. À pergunta: “Por que se fazem as eleições anualmente?” o nosso autor responde: “Há para isso duas razões: 1ª porque a experiência tem provado que mesmo as eleições feitas com o maior escrúpulo nem sempre correspondem à expectação; 2ª porque a dependência em que ficam os administradores dos votos dos seus (eleitores) em uma determinada época, é a única verdadeira garantia de zelo com que hão de cumprir as suas obrigações” [Ferreira, 1976: 138].

Construção dos canais de comunicação entre a sociedade e o poder.- Isso se conseguiria mediante a representação, que faria com que as instituições políticas correspondessem às relações sociais. Esse era o caminho que Silvestre Pinheiro Ferreira enxergava para vencer o perigo da guerra civil. A respeito, escrevia em 1834: “Sobre o meio de atalhar os males de que o Reino estava ameaçado, dissemos sem rebuço que a adoção do sistema representativo era o que unicamente podia obstar à iminente catástrofe da monarquia” [Ferreira, 1976: 107].

Teoria da dupla representação: Constant de Rebecque tinha formulado a existência de uma dupla representação: da continuidade (desempenhada pela assembleia hereditária) e da opinião (desempenhada pela assembleia eletiva). O Rei, outrossim, para o publicista suíço-francês, era independente do Poder Executivo [cf. Constant, 1970: 19-24]. Em Pinheiro Ferreira, em que pese a influência recebida de Constant, encontramos uma reformulação desses princípios: de um lado, a dupla representação, que consistia, de um lado, em representação virtual, exercida pelo Monarca e que não dependia de eleições, e, em segundo lugar, representação dos interesses dos estados sociais (comércio, indústria e serviço público), que era proveniente das eleições. A representação virtual espelhava os interesses permanentes da Nação (ou seja, salvaguardava aquelas exigências sem as quais – como no caso da defesa da soberania – desapareceria o corpo político), ao passo que a representação dos estados sociais espelhava os interesses mudáveis da sociedade. De outro lado, Pinheiro Ferreira [cf. 1976: 144-145] conferia ao Monarca o privilégio de ser o chefe supremo do Poder Executivo. Mas, de acordo com os princípios que tinham sido desenvolvidos por Constant, o pensador português preservava o rei de ser objeto da luta política ou das invejas da sociedade, em virtude do caráter de “inimputabilidade” de que a pessoa do monarca estava revestida.

Caráter nacional e não individual da dupla representação: Para Pinheiro Ferreira, tanto a representação virtual do Monarca, quanto a relativa aos estados sociais, não era individual, mas nacional, o que significava que o representante não defendia os interesses de cada eleitor individualmente. A respeito, escreve Vicente Barretto: “Tanto no Brasil, como em Portugal, o Estado continuava a ser o centro da vida política nacional e as reformas propostas, ainda que com justificativas liberais, terminavam sempre no aperfeiçoamento das instituições estatais. O patronato político brasileiro subsistiria em função do Estado, não se encontrando características individualistas em suas manifestações liberais” [Barretto, 1976: 18].

A ideia da relação entre civilização e dependência: No terreno das relações internacionais, Pinheiro Ferreira elaborou interessante teoria acerca da interdependência das Nações. O cerne dessa teoria foi expresso assim pelo estadista português: “E portanto pode-se dizer que o máximo de civilização é inseparável do máximo de dependência: tanto em extensão de artigos de que se precisa, como pelo grande número de homens e países, cujo concurso se torna necessário” [Ferreira, 1970: 281].

O nosso autor considerava, no entanto, que havia uma diferença na dependência das nações ricas e das nações pobres. A das primeiras era positiva e consistia no pleno funcionamento da economia de mercado livre, que evitava o monopólio, ao aceitar a pluralidade de fontes produtoras. Os três princípios de economia internacional obedecidos pelas nações ricas eram os seguintes: “a) Não depender de outra Nação para bens que interessem essencialmente à própria existência; b) não depender de outra Nação de modo que não se possa por outro meio conseguir os bens por ela fornecidos; c) dar preferência no mercado à nação melhor compradora dos produtos primários ou industriais” [Ferreira, 1970: 281].

Como fundamento desta teoria da interdependência, o pensador português desenvolveu uma espécie de eudemonismo moral, válido tanto para os indivíduos quanto para as Nações. Vicente Barretto sintetizou da seguinte forma esse aspecto do pensamento de Pinheiro Ferreira: “Para o autor das Preleções filosóficas, a felicidade era entendida como a predominância de gostos sobre as dores encontradas na vida humana. Tanto nos indivíduos, como nas Nações, a felicidade, que se busca, pode ser avaliada levando-se em conta a suficiência de meios, que protegem os indivíduos e as Nações; e em meios que possibilitam o aumento do número e variedade dos prazeres. A riqueza e opulência, individual ou nacional, é atingida quando se combinam as duas condições referidas, ficando assim o indivíduo ou a sociedade aptos a superar a adversidade e desenvolver, plenamente, as suas potencialidades” [Barretto, 1976: 12-13].

José Esteves Pereira (1944-), o mais importante estudioso contemporâneo da obra de Pinheiro Ferreira, caracterizou da seguinte forma a singular concepção moral deste autor, que oscila entre o espiritualismo (de inspiração leibniziana) decorrente da moral cristã e o mais puro benthamismo: “No autor se recupera uma matriz que sublinha o primado da personalidade e adivinha o enfrentamento com a transcendência. Quanto a este último aspecto, segundo o autor, das ciências que têm por objeto as faculdades do espírito acedemos àquelas que nos permitem entender um sistema geral do mundo. Deparamos, neste caso, com a nítida inspiração leibniziana (O presente está prenhe de futuro) que também o motiva para uma mathesis universal (Pasigrafia), constituindo a meditação sobre o mundo o enfrentamento com a criação e a necessidade de uma Teologia Natural que coroará o relacionamento entre a realidade física e espiritual do homem, abrindo-se ao mistério e à revelação. Mas, esta abertura à transcendência, que passa pela aceitação de uma moral fundada no decálogo, nem por isso deixa de admitir, também, o princípio utilitarista, como em Bentham (1748-1832), do maior bem para o maior número, através de uma consideração dos móbeis da ação e dos resultados experienciais de prazer e de dor. É certo, porém, que o teor empirista do utilitarismo de Silvestre Pinheiro Ferreira tem um alcance espiritual inegável. Tratava-se de promover uma pedagogia intencionada a, em época de definição teórica do liberalismo, reconduzir a palavra a uma precisão sintática e pragmática para o aperfeiçoamento espiritual, social e político, mediando o entendimento da perenidade e da transcendência dos valores com as possibilidades de uma sociedade que se procurava para lá do puro formalismo dos direitos individuais e do amor próprio excessivo ou egoísta. Neste sentido, talvez se perceba a admissão, não incontestavelmente conflitante, entre a esfera moral de matriz transcendente e uma ética de ação liberal de base solidarista, que as suas reflexões sociais indiciam aproximando-o do krausismo (embora o seu empirismo e sensualismo de base pareçam dificultar tal aproximação)” [Pereira, 1995: 40].

C – A Carta de 1824 e a prática do parlamentarismo.

A Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824, no seu Título V, Capítulos I e II, estabeleceu o Poder Moderador nos moldes cogitados por Silvestre Pinheiro Ferreira. Lembremos os aspectos fundamentais: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos. (…) A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma” [Brasil, 1948: 42].

O Imperador exerce o Poder Moderador nomeando os senadores vitalícios, a partir das listas tríplices surgidas das eleições provinciais, convocando a assembleia geral extraordinária, sancionando os decretos e resoluções da assembleia geral, aprovando e suspendendo interinamente as resoluções dos conselhos provinciais, prorrogando ou adiando a assembleia geral, dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos em que o exigir a salvação do Estado, nomeando e demitindo os Ministros de Estado, suspendendo os Magistrados, etc. O Imperador é, outrossim, o chefe do Poder Executivo e o exercita pelos seus Ministros de Estado [Brasil, 1948: 42].

O conjunto de leis denominado de “Regresso”, em 1841, corrigiu os excessos de desconcentração do poder e de exagerada autonomia provincial do período regencial, consubstanciados no Ato Adicional de 1834 [cf. Brasil, 1948: 50] e deu ensejo ao período de maior estabilidade política da história brasileira. O princípio formulado por Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), de que “é preciso deter o carro da revolução”, lembra muito bem a convicção dos constituintes de Filadélfia, que reagiram, pela boca de Jefferson (1743-1826), contra a “retórica utópico-democrática” que ameaçou deitar por água abaixo a unidade das 13 ex-colônias americanas, após o excessivo federalismo dos “Artigos da Confederação”. Lá, como no Brasil, o equilíbrio entre o princípio hobbesiano da unidade e da centralização do poder e o princípio lockeano da defesa da liberdade mediante a representação seria a fórmula salvadora.

Enxergadas as instituições imperiais à luz do hodierno parlamentarismo, é evidente que impressiona o acúmulo de poderes de que gozava o Imperador. Esses poderes centravam-se, fundamentalmente, no exercício do Poder Moderador e no fato de o Imperador ser o chefe do Executivo. O exercício da função moderadora permitia ao soberano prorrogar ou adiar a assembleia geral (integrada pelo Senado e pela Câmara dos Deputados), dissolver a Câmara e convocar imediatamente outra que a substituísse. Moderando o exercício do Poder Legislativo, controlando, de outro lado, a Polícia e a Magistratura, acúmulo enorme de poderes descansava nas mãos do Imperador. A Guarda Nacional, a maior organização pré-burocrática de homens livres do Hemisfério Ocidental [Cf. Uricoechea, 1978], que em 1851 arregimentava 250 mil pessoas livres, cooptadas pelo Imperador, era o instrumento básico, típico instituto do Poder Patrimonial, para ganhar qualquer eleição. Daí o famoso sorites do senador Nabuco de Araújo (1813-1878): “O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios: esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la e esta eleição faz a maioria” [cit. por Torres, 1968: 18]. A centralização, pelo Imperador, dos poderes de polícia e de controle sobre a magistratura, decorreu da reforma do Código de Processo (1841). “Graças a essas medidas – frisa João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973) – foi possível ao Governo Imperial implantar a sua autoridade sobre todo o território nacional” [Torres, 1968: 59].

Tratava-se, sem dúvida, de uma prática de democracia induzida, como se o Imperador chamasse a ganhar as eleições aqueles que garantissem o funcionamento das Instituições. Heitor Lyra (1887-1926), o biógrafo de dom Pedro II (1825-1891), pretendia desmontar assim o sorites de Nabuco, destacando, no entanto, o caráter induzido já apontado: “Este raciocínio era, sem dúvida, exato, quer dizer, todas as suas proposições de fato se verificavam. Mas, convinha indagar: era por culpa do Imperador? Por culpa da Constituição? Ou por culpa da escassa cultura das massas eleitorais? Se as proposições que formavam o ‘sorites de Nabuco’ se verificavam de fato, uma delas, pelo menos, de direito, era falsa e tirava, assim, ao sorites, todo o fundamento legal. Os presidentes de Província, dizia Nabuco, faziam as eleições. De fato, assim era: os presidentes de Província faziam bem as eleições, a mando e sob o controle dos Gabinetes, que fabricavam eles mesmos as Câmaras, as quais, teoricamente, os deviam sustentar. Mas onde estava o fundamento legal da atribuição que se arrogavam os presidentes de Província, de fazerem as eleições?” [cit. por Torres, 1968: 18].

A razão que justificava este modelo de exercício programado e vertical das eleições era, portanto, a fragilidade do tecido social num meio eivado de práticas familísticas. Oliveira Torres identificou com clareza essa razão: “O drama do Império, que pouca gente sentia na época e que muitos até hoje não compreenderam, residia, exatamente, no fato de quererem que as práticas da democracia representativa à inglesa (nascida num país industrializado e de forte concentração demográfica) vigorassem num país cuja população era escassa e rala, quase toda espalhada pelos campos, vivendo em função da autoridade semifeudal dos senhores de terras” [Torres, 1968: 31].

Em que pese o fato do poder concedido ao Imperador, é válida, contudo, esta afirmação: o Segundo Reinado (1842-1889) deitou as bases para a prática da representação política, uma representação dos interesses de proprietários, comerciantes e funcionários públicos, é bem verdade, alicerçada no voto censitário (como, aliás, tinha acontecido na Inglaterra e no resto da Europa Ocidental, ao longo dos séculos XVII a XIX), mas que se encaminhava à ampliação da base social a ser representada. Convém enumerar aqui os aspectos em que a Constituição Imperial de 1824 e a legislação subsequente (até 1889), contribuíram à valorização e ao alargamento da representação e dos direitos dos cidadãos. Esses aspectos são os seguintes:

• 1) Reconhecimento do Poder Legislativo como “delegado (pela Nação) à assembleia geral”, integrada pela câmara dos deputados e a câmara dos senadores. As funções da assembleia geral eram claramente definidas no Título IV, Capítulo I da Constituição de 1824 e entre elas figuravam: tomar juramento ao Imperador, ao Príncipe Imperial, ao Regente ou Regência; eleger a Regência ou Regente e marcar os limites de sua autoridade; reconhecer o Príncipe Imperial como sucessor ao trono; resolver as dúvidas sobre a sucessão da Coroa; instituir exame da administração anterior, quando da morte do Imperador ou quando da vacância do trono, “e reformar os abusos nela introduzidos”; escolher nova dinastia, em caso de extinção da imperante; fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las; velar pela guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação; fixar anualmente as despesas públicas, e repartir a contribuição direta; fixar anualmente as forças de mar e terra; conceder ou negar permissão para a entrada de forças estrangeiras dentro do Império ou dos portos dele; autorizar o governo para tomar empréstimos; regular a administração dos bens nacionais e decretar a sua alienação; criar ou suprimir empregos públicos, etc.”.

• 2) Reconhecimento da inviolabilidade dos membros de cada uma das Câmaras pelas opiniões que proferissem no exercício de suas funções, bem como da sua imunidade durante a respectiva deputação.

• 3) Institucionalização do Conselho de Estado “composto de conselheiros vitalícios, nomeados pelo Imperador” (Título V, Capítulo VII, art. 137). Os conselheiros deveriam ser ouvidos sempre que o Imperador fosse exercer o Poder Moderador. Eles seriam responsáveis pelos conselhos que dessem opostos aos interesses do Estado. Acerca da forma como funcionou o Conselho de Estado, escreve Oliveira Torres: “O Conselho de Estado não seria, como pensaram os alarmados liberais mineiros de 1842, a concentração da oligarquia conservadora, mas um tribunal político admirável, no qual tinham assento gregos e troianos, que diziam ao Imperador o que ele devia ouvir, nem sempre, talvez, o que gostasse de ouvir. E com isto tivemos a única experiência que o mundo conheceu de participar a oposição, conservada a sua condição oposicionista, na direção da coisa pública [Torres, 1968: 60]. Tão significativa foi a atuação do Conselho de Estado na tarefa de moldar a opinião do Imperador, que chegou a ser chamado de “o quinto poder” [cf. Rodrigues, 1978].

• 4) Funcionamento das câmaras eletivas “em todas as cidades e vilas ora existentes, e nas mais que para o futuro se criarem (…), às quais compete o governo econômico e municipal das cidades e vilas” (Tit. VII, cap. II, art. 167-168). Essa disposição vinha equilibrar o centralismo contido no poder do Imperador de nomear os presidentes das Províncias (Tit. VII, cap. I, art. 165).

• 5) Reconhecimento da “Inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade” (Tit. VII, art. 179).

• 6) Abolição de “todos os privilégios que não forem essencial e inteiramente ligados aos cargos para utilidade pública” (Tit. VII, art. 179, par. 16).

• 7) Aperfeiçoamento da representação e alargamento do voto, mediante as reformas eleitorais: a de 1846 (que organizava o eleitorado permanente); a de 1855 (que organizava os distritos eleitorais) e a de 1881, a famosa Lei Saraiva (que adotava o sistema da eleição direta). Expressão do cuidado com que o Imperador tratava a questão do voto e da representação, é o seguinte trecho da Fala do Trono de 1º de fevereiro de 1877: “Na execução da nova lei que regulou o processo eleitoral, a expressão do voto popular tivera plena liberdade e, no decurso da eleição, não fora perturbada a ordem pública. Conviria, entretanto, examinar se as disposições da mesma lei asseguravam suficientemente a desejada e possível pureza da eleição, base fundamental do sistema representativo” [cit. por Barretto, 1982: 75]. A Lei Saraiva, de 1881, viria culminar esse processo de aperfeiçoamento da representação, pois como escreve Vicente Barretto, “viria consagrar o estabelecimento final das instituições liberais no Império. Passava o regime a ser fundado na eleição direta e censitária, onde todos os participantes do processo político, os cidadãos ativos, encontravam-se em igualdade de condições jurídicas para escolher os governantes, desde que satisfeitas as exigências econômicas para participar do processo político” [Barretto, 1982: 77-78].

• 8) O equilibrado revezamento de liberais e conservadores no poder, graças à ponderada atuação do Poder Moderador. Ao longo do reinado de dom Pedro II, entre 1840 e 1889, somaram ao todo 36 gabinetes, sendo que os conservadores permaneceram no poder 26 anos e os liberais 18. João Pandiá Calógeras (1870-1934) escreveu a respeito desse fato, no seu livro Da Regência à queda de Rosas: “Ritmicamente, alternavam-se em prazos de cinco a seis anos, com um máximo, para os conservadores, de 10 anos no período de 1868 a 1878” [cit. por Tapajós, 1963: 374].

• 9) A presença atuante de uma elite de homens públicos, formados ao redor de dom Pedro II e que constituíram a elite de homens de 1000, que permitiram fazer surgir, num contexto de cultura patrimonialista e privatizante, o ideal do bem público e que, a partir daí, construíram o sentimento de Nação, num amplo processo de Paidéia política [cf. Barros, 1973]. Esses homens de 1000 – frisa Oliveira Vianna – caracterizavam-se pela sua “inata vocação ao bem comum da Nação” e eram “homens que aborrecem a avareza (…) como os da vocação mosaica. Conselheiros, senadores, ministros, altos dignitários da Coroa, eles passaram pela administração (di-lo a história do Império) nutridos do sentimento do seu dever público, impregnados do desejo de bem servir ao país, colocando os interesses da Nação e o cumprimento das suas obrigações cívicas acima dos seus interesses pessoais e de família, e mesmo de partido. Todos eles timbravam – como os cavalheiros do antigo regime – em morrer pobres e de mãos limpas. Todos eles eram trabalhados pelo fogo dessas preocupações, dessas absorventes preocupações do patriotismo e do serviço público” [Vianna, 1982: 582].

Essa elite ensejou importante reflexão de cunho filosófico-jurídico, que contribuiu decisivamente para firmar e desenvolver as Instituições imperiais. Eis algumas das mais representativas contribuições teóricas: Pimenta Bueno (Direito público brasileiro, 1857); Domingos José Gonçalves de Magalhães, visconde de Araguaia (Fatos do espírito humano, 1858; A alma e o cérebro, 1876; Comentários e pensamentos, 1880); Paulino José Soares de Sousa, visconde de Uruguai (Ensaio sobre o direito administrativo, 1862); Affonso d’Albuquerque Mello (A liberdade no Brasil, 1864); Brás Florentino Henriques de Souza (Do poder moderador, 1864; Dos responsáveis nos crimes de liberdade de exprimir os pensamentos, 1866); José Soriano de Souza (Compêndio de filosofia, 1867; Lições de filosofia elementar racional e moral, 1871; Estudos de filosofia do direito, 1880); Américo Brasiliense (Os programas dos partidos e o II Império, 1878); M. Sá e Benevides (Elementos de filosofia do direito, 1884); Tavares Bastos (Cartas do solitário, 1862); etc.

Weber previu que era possível evoluir de sociedades marcadas pela tradição patrimonial, até sociedades de tipo contratualista. No caso ibérico, isso se tornou possível graças a causas exógenas (a influência da tradição liberal anglo-saxônica, por exemplo), ou endógenas (a retomada de tradições de inspiração libertária e contratualista na Península Ibérica, ao longo do século XX). A evolução do mundo ibérico e ibero-americano, ao longo dos últimos trinta anos, (o amadurecimento da democracia representativa e a modernização da economia na Espanha, em Portugal, no México, na Argentina, no Brasil, no Chile, etc.) parece sugerir que esse processo de abertura pode ser dinamizado a partir da sociedade, tendo por base um novo pacto político e sob a inspiração de uma nova Constituição ou de reformas constitucionais significativas.

O que ocorreu no Brasil no século XIX insere-se neste contexto. O Império do Brasil e as instituições do governo representativo que lhe eram inerentes constituíram-se, a partir de nova concepção do Estado, no terreno do direito constitucional, sob a inspiração de Constant de Rebecque e dos doutrinários como Guizot. Essa concepção, no entanto, como destacou Silvestre Pinheiro Ferreira, não era alheia à cultura luso-brasileira, porquanto retomou a tradição de defesa da liberdade presente no antigo direito visigótico, sem contudo esbarrar no extremo do democratismo. Essa tradição, reforçada pelo conceito de soberania elaborado pelos filósofos do século XVII (entre os quais sobressai a figura do padre Francisco Suárez), veio ser vivificada pela abertura de Pinheiro Ferreira à filosofia liberal, nas versões moderadas de Locke e de Constant.

O efeito dessa magna obra criativa foi o Império do Brasil, uma nação organizada nos moldes do que Simon Schwartzman [1982] e Antonio Paim [1978] convencionaram em chamar de patrimonialismo modernizador ou neopatrimonialismo, em que a variável da democracia representativa constituía elemento essencial do processo, apesar do evidente centripetismo do Estado.

A marcha modernizadora do Estado patrimonial brasileiro no período republicano, em decorrência do primado exercido pela filosofia positivista, abandonou as preocupações com a democracia representativa e acirrou o centripetismo do executivo hipertrofiado, no modelo de ditadura científica implantado por Júlio de Castilhos (1860-1903) e seus seguidores, no Rio Grande do Sul (entre 1891 e 1930) [cf. Vélez, 2000]. Esse modelo seria aplicado a nível nacional por Getúlio Vargas (1883-1954), a partir de 1930. As atuais ambiguidades da política brasileira, ainda às voltas com a síndrome arcaizante do estatismo que teima em se manter, explicam-se em boa medida pelo abandono da tradição liberal que o Império soube preservar, graças à têmpera de teóricos da talha de Silvestre Pinheiro Ferreira e de estadistas como dom Pedro II ou o visconde de Uruguai.

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• WEHLING, Arno [2004]. “Ruptura e continuidade no Estado Brasileiro – 1750-1850”. In: Carta Mensal, Rio de Janeiro, vol. 49, num. 587 (fevereiro de 2004): pg. 45-67.

• WITTFOGEL, Karl [1977]. Le despotisme oriental: étude comparative du pouvoir total. (Tradução ao francês a cargo de Micheline Pouteau). Paris: Minuit.

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Ricardo Vélez-Rodríguez

Ricardo Vélez-Rodríguez

Membro da Academia Brasileira de Filosofia e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, professor de Filosofia, aposentado pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ex-Ministro da Educação.

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