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Parte I – Origem e sentido da democracia

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agoraContínuos enlaces entre textos e discursos marcaram a magna Grécia; contínuas buscas de uma unidade solidária entre aquilo que se almejava e aquilo que poderia ser; regressos pátrios, louvores aos reis, peças teatrais, danças, folclore, esculturas e mestres filósofos. Conhecida do mundo pelo brilho intelectual, a Grécia almejou entre outras coisas a estruturação política e a união entre os povos gregos; alcançou parcimoniosamente a elite e desobrigou paulatinamente os servos; erigiu leis absolutamente originais e despertou o tom harmônico dos esteios benignos do amanhã democrático.

O horizonte ateniense favoreceu a construção do ideal democrático grego, ideal esse que se manteve em vínculo constante com os desdobramentos históricos da nossa civilização. Onde se deu o início dessa forma política, concebeu-se primeiramente uma postura menos aberta, mais restrita e, no entanto, tanto mais poderosa devido ao círculo no qual se desenvolveu. A democracia desenvolveu-se entre pessoas imbuídas de um projeto sóbrio de edificação moral e ética e, sobretudo, de aprimoramento individual a partir da construção de si, do autoaperfeiçoamento. Sem abstermo-nos de corroborar a tese que aponta para a desvinculação desse regime antigo em relação ao atual, apreciaremos, sobretudo, aquilo que os une, desconsiderando um pouco as suas diferenças.

Sempre se deu entre nós o desejo ininterrupto de progredir, seja na esfera econômica, seja na esfera política ou moral. Esse progresso se deu na Grécia abruptamente devido, entre outras coisas, ao brilhantismo de determinados indivíduos. Tradicionalmente, elencam-se costumes, hábitos, questões físicas e demográficas ou outros condicionamentos que teriam forçado o advento daquilo que se convencionou chamar “milagre grego”. Nós, porém, albergamos intimamente a certeza de que a História se constrói porque os indivíduos a constroem, ou seja, o determinismo histórico é um termo autocontraditório, pois a História é uma construção humana e os homens são livres.

Pois bem, houve na Grécia um momento em que tais individualidades conseguiram pautar a regra social de acordo com os seus mais nobres anseios e em consonância com as suas mais altas aspirações. Postularam-se leis – que outra coisa não era senão a máxima moralização por eles concebida – e entregou-se aos homens a tarefa de executá-las dentro da humana possibilidade. O que se destaca aqui como princípio democrático é, portanto, a formulação de leis. O alcance da lei e da promoção do indivíduo em Atenas favoreceu justamente essa circunstância na qual o indivíduo aquilata por si mesmo a postura condizente com a regra e se põe no propósito de servir.

Fortalecer o indivíduo para fortalecer a soberania, enaltecer a virtude para alcançar a perfeição moral, servir à polis servindo ao melhor de si mesmo, consagrar ao máximo o trabalho para com os próprios méritos a fim de servir maximamente aos concidadãos: eis o prontuário do estratégico poder político grego. Sem a coordenação entre o individual e o comum não se haveria de conseguir êxito no quesito máximo de elevação ética. Sem a estratégia prévia de autoconstrução não se haveria de alcançar os cumes gloriosos da verdadeira política. Polis significa cidade, população: cidadão e indivíduo unidos como um pensamento que se eleva e se constrói sob os auspícios da reta conduta e da dignidade humana.

Constituir leis é favorecer a máxima expressão da humana possibilidade de aperfeiçoamento moral e exigir daqueles que não se alçaram a isso o cumprimento do que se consagrou como norma. Nem o dedo do pequeno carpinteiro nem a coroa do grande rei pode deixar de seguir o que se estabeleceu segundo esse critério. Como se sabe, a perfeição da instituição depende da honesta execução e a honesta execução depende da individual correção e a individual correção depende da capacidade de autogoverno e de autoanálise, depende de um insigne projeto sobre o próprio indivíduo capaz de se enobrecer e, assim, se constituir executor das máximas comuns.

Coletivamente se constroem leis, mas individualmente se consagram os homens a elas. Compreender o tesouro de um Estado consagrado por leis é compreender a própria História no seu direcionamento democrático e evolutivo. Compreende-se facilmente a necessidade de lograr êxito comercial e estabelecer defesas contra ataques belicosos, compreende-se facilmente também a necessidade de assegurar o cumprimento de regras gerais e de convívio, mas, compreende-se pouco o ideal grego de iluminar a si mesmo a fim de colaborar com a cidade e de se instituir honra máxima entre os cidadãos a fim de ser consignado aos elevados postos da política.

Quantos dentre nós se alçam ao mérito público? Quantos se tornam dignatários de aceitação pela labuta própria do autoaperfeiçoamento? Como se pode falar em democracia sem que o instituinte seja um dentre tantos outros insignes lutadores pela possessão de si mesmo? Menor dentre os menores é aquele que se arvora titular e defensor da lei sem que a honra a isso o acompanhe, pois a lei é o conjunto harmonioso necessário ao soerguimento de um povo, é o escudo protetor da justiça e é o pão dividido entre aqueles que necessitam.

Convidar ao banquete público da oferta de cargos é desonrar o processo final da contínua evolução política na História e desordenar o que deveria pôr a ordem. Conjurar o homem ao aperfeiçoamento moral antes de convidá-lo ao espetáculo da autopromoção nos cargos públicos é o que urge nos dias atuais. Quem se lança ao púlpito sem descer em si mesmo desmerece o trabalho, pois a lei moral, tal como foi concebida posteriormente por Kant, se exalta no autoexame e se confirma na própria consciência. A lei transita entre o autodomínio e a autoentrega, entre o forçar a si mesmo e o servir ao próximo, entre o dever para consigo e o dever para com o outro, que outra coisa não é que a execução plena da própria moralidade.

Como se sabe, a lei exige de todo indivíduo a parcimônia quanto ao seu próprio interesse a fim de que a integridade e o interesse do outro seja assegurada. A lei estabelece princípios norteadores da justiça e prescreve a normatividade, seja no âmbito pessoal, seja no âmbito público. Postular assim a lei e exigir seu cumprimento possibilitou aos indivíduos remanejarem seus propósitos e revisitarem seus objetivos. Tendo que assumir um compromisso perante a lei, houve a necessidade de recuar na própria instintualidade destrutiva e no propósito de domínio e de autopromoção. A lei possibilitou, portanto, uma reestruturação do indivíduo, conduzindo-o assim a um novo patamar de moralidade, se não perfeito, pelo menos perfectível, pois atravessado por um ideal altamente nobre de justiça e de equidade.

Construiu-se assim uma nova época da civilização, que tratou de aprimorar as leis de acordo com os seus costumes, mesclando-as com as mais diversas facetas culturais, mantendo, no entanto, a ideia de que o homem guiado por leis é o homem ideal para uma sociedade equilibrada e propícia ao desenvolvimento. Fomos então levados a uma nova era em que o depósito clássico que estava em vias de construção pôde simultaneamente ser absorvido pela História e alimentá-la em seu progresso.

Tendências díspares atravessaram os séculos e, conforme nos seja permitido aqui um aceno bastante pessoal, diremos que se travou uma batalha entre duas posições contrárias no que diz respeito à democracia: de um lado tivemos os socialistas, que pressupuseram que a justiça social carecia mais de um poder capaz de assegurá-la que de uma lei que a justificasse; do outro lado tivemos os teóricos mais afeitos às conquistas sólidas, mas graduais, resultado de um processo ainda em construção.

Dentro desse paradigma em que se contrapõem, de um lado, um fluxo de ideias retroativas que propõe a aniquilação do que já foi conquistado em nome de uma conquista futura e, de outro, um fluxo de ideias que pretende aperfeiçoar as conquistas a fim de obter o máximo da qualidade do que já foi constituído, pessoas se mobilizam para levar a termo cada um dos dois lados, verificando-se, ainda hoje, a mesma presunção passada de justificar as mais atrozes e perniciosas condutas contrárias ao senso crítico e ético pela simples crença de que assim se chegará a um estágio melhor de justiça social. Fortalece-se com isso uma tendência revolucionária que classifica como parcial e seletiva a democracia que deveria ser destinada a todos.

Ora, como seria possível desvincular o conceito de democracia de uma ideia e postulá-la como uma realidade sem que antes houvesse a justa compreensão do seu valor e do seu significado?

Primeiro de tudo, democracia é um governo regido, limitado e questionado pela lei e a lei é o ideal mais próximo daquilo que se pôde conceber como justiça. Como então se poderia, sob o pretexto de se buscar a Justiça, rompê-la e desrespeitá-la como se dá em todo processo de uma falsa emancipação? Pois foi justamente essa a atitude mais famigerada dos regimes socialistas que brutalmente respaldaram atentados contra a humanidade sob a forma de morticínios e de aniquilamento da liberdade individual. Sendo que, voltemos à Grécia antiga, foi a liberdade individual que garantiu à humanidade os mais altos avanços e as mais formidáveis conquistas.

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Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".

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