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Os socialistas utópicos nas páginas de Buber

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socialistasutopicosUsualmente, quando, em textos e reflexões atuais, mencionamos o conceito de “socialismo”, estamos fazendo referência, quer ao Marxismo, tal como esboçado por Karl Marx e Friedrich Engels, quer às diferentes correntes e releituras que surgiram no campo da esquerda a partir dele, adaptando-o a novas circunstâncias, amputando algumas de suas características ortodoxas ou questionando alguns de seus fundamentos. Frankfurtianos, gramscistas e tutti quanti dialogam, em alguma medida, com a matriz marxista. Isso não é culpa nossa; é resultado de um enfrentamento interno que aconteceu nos primórdios do socialismo, em que todas as correntes pré-marxistas, cuja existência muitos negligenciam, foram suplantadas pela obra de Marx, claramente vencedora em termos de influência nos rumos da História.

livrobuberEm “O Socialismo utópico”, pequena obra que encontrei, vejam só, na biblioteca de Donald Stewart, fundador do nosso querido Instituto Liberal, o autor, Martin Buber (1878-1965) – um judeu, de inspiração sionista, que tinha afinidade com as ideias da maioria dos pensadores que aborda no livro – traça um pequeno quadro das ideias de figuras como Charles Fourier, Conde de Saint Simon e Robert Owen (tríade considerada por muitos como a dos “fundadores do socialismo”) e outros continuadores de suas linhagens teóricas, como William King, Kropotkin, Lassalle, Louis Blanc, Landauer, Cabet e até o famoso Proudhon. Essas personalidades, em um cenário contemporâneo e posterior ao revolucionário francês, diante das questões levantadas pelo capitalismo e a Revolução Industrial – lidando ainda, lembrava Von Mises, com a herança do panorama econômico mais arcaico que os antecedeu -, se puseram a questionar o liberalismo de mercado e as relações de poder vigentes. No complexo debate entre os elementos do lema revolucionário “liberdade, igualdade, fraternidade”, os socialistas apareceram defendendo que o sistema econômico e social, atomizado e calcado em “competição voraz”, não permitiria a instalação dos dois últimos – e, em sua visão torta e incapaz de enxergar além, também comprometeriam o que seria a “verdadeira liberdade”. Não puderam antever todos os avanços e benesses que o capitalismo proporcionaria, sendo o maior propiciador da mobilidade social que já existiu, o que hoje os liberais sustentam amplamente fundamentados e, já àquele tempo, houve quem percebesse, como o extraordinário Fréderic Bastiát, também francês, cujo livro “A Lei” é uma das maiores concentrações de verdades atualíssimas já escritas em tão poucas páginas.

Martin Buber
Martin Buber

Quando de seu surgimento no cenário filosófico-político, e sobretudo a partir do marco do Manifesto Comunista (1848), Marx e Engels – não obstante esse último tenha dito, como referencia Buber, em 1850, na Guerra dos Camponeses Alemães, que “figuram entre os pensadores mais importantes de todas as épocas, tendo antecipado inúmeras verdades cuja exatidão hoje verificamos cientificamente” (sic) -, taxaram os três grandes pioneiros do socialismo de “utópicos”, assim como aqueles que insistissem em seguir sua linha de pensamento. A alguns, como Proudhon, Marx abertamente taxou de “socialistas conservadores ou burgueses”; se, ao começo, as características ainda excessivamente moderadas e “não-revolucionárias” do socialismo eram justificáveis pelo fato de que “a produção capitalista ainda se achava pouco desenvolvida”, ao seu tempo, os criadores do marxismo achavam suas teses inaceitáveis e atrasadas. Do alto de sua presunção, diziam-se fundadores de uma ciência da sociedade, que traçaria o rumo adequado para corrigir as suas imperfeições, enquanto os primeiros socialistas eram sonhadores que idealizavam uma espécie de Utopia, de Thomas Morus, mas que por isso mesmo concebiam esquemas insuficientes para realizá-la. Buber rebate dizendo que “a utopia dos chamados utopistas é pré-revolucionária, a marxista é pós-revolucionária” e que, citando Paul Tillich, “o marxismo, a despeito de sua hostilidade para com a utopia, não pôde, jamais, subtrair-se à suspeita de que abrigava uma fé secreta na utopia”. A seu ver, os utopistas poderiam ser considerados muito mais “concretos” em suas teorias do que os marxistas, porque defendiam um “planejamento orgânico que procura reestruturar a sociedade, e isso não após a ‘extinção’ da ditadura do proletariado num futuro indeterminado, mas aqui e agora, a partir das condições atuais”.

Quer a partir de Saint-Simon, tido por muitos como o fundador da Sociologia, e sua defesa da superação da distinção entre o que chamava de “ordem coercitiva do Estado” e “ordem espontânea da sociedade” (o conceito aqui é usado para apoiar um pensamento nada hayekiano, não preciso dizer), a partir do que, em vez de um Estado convencional, a sociedade seria regida pelos produtores e industriais, fundindo-se os capitalistas com os proletários; quer a partir de Fourier e sua tese da “união de interesses”, das “harmonias”, com base na “formação de unidades sociais comunais baseadas na relação de produção e consumo”, o que ele e seus seguidores tentaram experimentar através de seus falanstérios, resolvendo “o problema da organização da nova ordem, da ordem em que o individualismo se combina espontaneamente ao coletivismo”; quer a partir de Owen, com sua tentativa de uma união e associação de bens, com igualdade de direitos e facilidades, com uma administração em comum da sociedade, ainda podendo existir reduzidas diferenças de propriedade; quer a partir das ideias de qualquer um dos três “fundadores”, quer refletindo sobre o material de todos eles, os socialistas utópicos trabalharam suas teses  com a finalidade, segundo Buber, de “substituir, tanto quanto possível, o Estado pela sociedade e, efetivamente, por uma sociedade autêntica que não seja um Estado dissimulado”. Essa sociedade se comporia de “pequenas sociedades comunitárias e das federações dessas mesmas sociedades e tanto as relações entre os membros dessas sociedades, como as das sociedades e federações entre si, devem ser determinadas, na medida do possível, pelo princípio societário e pelo de vinculação íntima, colaboração e auxílio mútuo”. Em outras palavras, embora discordem entre si quanto à importância da presença em organizações partidárias e políticas para acelerar o processo, os socialistas ditos utópicos apostavam em experiências de agregação, que procuravam combinar entre si os processos de produção e consumo em vez de se submeterem à organização empresarial com um capitalista “dono dos meios de produção”, para que, gradualmente, a partir da expansão e congregação dessas experiências, elas se substituíssem ao sistema vigente e acabassem com o capitalismo. Não poderia haver, dizia a maioria deles, uma transformação tão radical na organização da sociedade, se ela não viesse de suas bases, atingindo apenas, num futuro mais ou menos remoto – esse, podemos dizer, totalmente utópico -, o todo.

O que achamos interessante é que, embora obviamente não estejamos escrevendo para defender as teses dos socialistas utópicos e elas sejam, para nós, algumas imorais – Fourier, diga-se de passagem, propunha a abolição dos conceitos de matrimônio e parecia antecipar, sob vários aspectos, os devaneios da nova esquerda “contracultural” dos anos 60 do século XX -, outras totalmente fantasiosas – que, se podem, talvez, funcionar, em alguma medida, em comunidades minúsculas, jamais fariam qualquer sentido se aplicadas em uma sociedade de capitalismo complexo como a nossa -, queremos reconhecer que eles enfrentaram questões importantes que os socialistas de hoje, ligados ao Marxismo triunfante e profundamente presunçosos tais como ele mesmo, preferem desprezar.

Pierre-Joseph-Proudhon-anarquista
Pierre Joseph Proudhon

Figuras como o próprio Proudhon atacavam a utopia marxista e discutiam os riscos da centralização – do que hoje chamamos, os liberais e conservadores, de “ameaça coletivista”. Proudhon já temia que o comunismo tal como proposto por Marx, no processo de sua constituição, degringolasse em uma ditadura arrasadora: “uma democracia compacta, aparentemente baseada na ditadura das massas, mas onde estas não têm mais poder que o necessário para assegurar a submissão geral, de acordo com as seguintes fórmulas e princípios tomados do antigo absolutismo: indivisibilidade do poder público; centralização absorvente; destruição sistemática de todo pensamento individual, quer corporativo, quer local, por considerá-lo agente destrutivo; polícia inquisitorial”. Defendia também a “associação livre” dos trabalhadores como única capaz de criar “comunidades onde subsiste a liberdade econômica. Os organismos que surgem por iniciativa e estruturação de seus próprios membros elevam, juntamente com a vida comunal reconstituída, a vida individual de seus membros”. Ou outra: “o sistema centralista pode ser muito bonito por sua grandeza, simplicidade e expansão, mas falta-lhe uma coisa: nele, o homem não mais se pertence a si mesmo, não se sente, não vive, não é tomado em consideração”. A leitura do livro de Buber tirado da coleção de Donald Stewart, devo dizer, me acrescenta um detalhe interessante: o fundador do Instituto Liberal-RJ, devo presumir, parece ter percebido isso, sublinhou citações como essas de Proudhon e de outros socialistas utópicos e escreveu ao lado: “isto é liberalismo” ou “isto tem muito a ver com liberalismo”.

Com todos os seus defeitos essenciais, os socialistas utópicos enfrentaram, com os instrumentos que ambos os lados teriam à época, as críticas tipicamente liberais clássicas aos perigos da centralização e do poder ditatorial, absorvendo essas mesmas críticas em muitos aspectos. Alguns deles souberam ver no Marxismo, a despeito de seus próprios erros, os perigos mortais que tomariam relevo no século XX. O Socialismo Utópico está repleto de elementos falsos e, como todo socialismo, não funciona a contento e não provou em que teria mais mérito que as estruturas liberais ou se ajustaria melhor à natureza humana; contudo, tampouco a isso chegou o Marxismo, que o suplantou e se tornou a face hegemônica. Perguntamo-nos, a partir da leitura de Buber, por pura curiosidade: que teria acontecido se a face do socialismo permanecesse brotando a partir de um ou mais dos utópicos, e o Marxismo jamais tivesse despontado ou prevalecido? O que quer que viesse daí seria, é verdade, nosso adversário; mas talvez fosse um adversário mais respeitável, que não diria, dos outros que lhe antecederam, que eram meras “utopias”, enquanto sustentaria um delírio tão impossível quanto e, em suas tentativas de concretização, muito mais assassino.

 

 

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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