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A odiosa “Lei contra o Ódio”: um pedagógico exemplo venezuelano

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Depois de algum tempo, talvez menos do que gostaríamos que fosse necessário, voltamos a lançar holofotes sobre a situação da Venezuela. Se a ditadura chavista-bolivariana de Maduro já era, pela sua própria essência, um exemplo pedagógico do desastre do “socialismo do século XXI”, do “sonho bolivariano” – nada além de mais uma atualização de um velho mal que remonta pelo menos à Revolução Russa, em seu século de nefasto legado -, a novíssima “Lei Contra o Ódio para a Tolerância e a Coexistência Pacífica” tem um aspecto ainda mais elucidativo para o resto do mundo.

A ideia de que precisamos de uma intervenção com pulso firme do Estado para “policiar” a sociedade e os seus mais lamentáveis pré-julgamentos tem sido uma presença constante e perniciosa no debate – ou melhor, a tentativa de debate – com as formas mais contemporâneas de esquerda. Como bem disse Roger Scruton, a suposta ânsia por libertar os oprimidos desencadeou uma “inflação de direitos”, estimulando a querer ver todo tipo de suscetibilidade contemplada em alguma previsão legal ou constitucional.

Esquecemos desde há muito a orientação de Edmund Burke de que “a base da liberdade política é um governo limitado que presta contas aos contribuintes, não um governo ativista que visa libertar cidadãos dos preconceitos e das disposições”. O discurso da necessidade de combater a “homofobia”, o “fascismo”, a “supremacia branca”, o “racismo” e outras abominações tem estimulado uma série de propostas de contenção do alastramento de publicações consideradas “duvidosas”, a serem controladas por mecanismos diferenciados, às vezes implementados pelas próprias empresas de gestão de redes sociais, às vezes pelo Estado – mas a pergunta “quem vai determinar o que é falso, odioso e duvidoso?” é convenientemente evitada, ou sequer ocorre aos “justiceiros sociais”, para quem qualquer opinião conservadora ou liberal clássica se enquadra no elástico espectro desses adjetivos.

O regime de Maduro veio prestar um serviço inestimável de permitir a dispensa de regimes totalitários da ficção, como a inolvidável Oceania de George Orwell no clássico 1984, para a exemplificação desse alerta. Estamos falando de uma tirania que, em nome do combate ao “imperialismo ianque” e do sonho de emancipar os “pobres e oprimidos”, provocou a carência de artigos fundamentais como o papel higiênico, instrumentalizou forças de repressão armada e assassinou mais de 100 manifestantes em protestos. Um regime que sobrevive apenas em função do discurso de responsabilizar o sucesso alheio pelos seus próprios fracassos inerentes – ou, melhor dizendo, pelo próprio sucesso em devastar o próprio país e destroçar o tecido da própria nação, em prol de aprofundar um domínio que se prova a cada dia mais difícil de ser desmontado.  

Poderia esse regime ser julgado apto a combater o ódio, se é o próprio ódio a sua essência? Já dizia a Oceania de Orwell: “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”. Estamos encarando uma batalha, sobretudo no Ocidente, contra aqueles que querem travestir o ódio e a tirania de amor e justiça, o que terá por consequência fazer da liberdade um sinônimo do mais inescapável servilismo.

Maduro, porém, já está adiantado nesse processo! Sua ditadura é a exata encarnação dos efeitos dessa demanda, seja quem a reivindique um acéfalo manipulado ou um protótipo de autocrata mal-intencionado. Ele apenas inverteu a ordem; instalou o regime autoritário primeiro, para depois aprofundá-lo pela consagração oficial da sua presença em todas as esferas de expressão do pensamento e da vida. É o que tem potencial para produzir a nova lei a que fazemos referência.

A Assembleia Constituinte, ela própria uma impostura chavista para sequestrar as prerrogativas do Parlamento, concebeu a lei, que permite o fechamento de meios de comunicação que a descumprirem, com penas de até vinte anos de prisão para os “crimes de ódio”. A proposta é “frear a campanha de ódio e violência promovida por setores extremistas da oposição venezuelana e buscar o reencontro, a reunificação, a harmonia e a paz do povo”. Tradução: perseguir implacavelmente qualquer um que acha péssimo ser governado por um troglodita que deixou o povo sem papel higiênico é um radical financiado pela CIA e deve ser calado de qualquer maneira e a qualquer preço.

Pessoas que incitarem “o ódio, a discriminação ou a violência contra uma pessoa ou conjunto de pessoas em razão de sua filiação real ou contra determinado grupo social, étnico, religioso, político” serão punidas. Não parece o tipo de parágrafo que veríamos nos textos de um “engajadinho politicamente correto” qualquer em diretório acadêmico de universidade? Pois é… mas o que um parágrafo assim pode “mascarar” nas intenções de um regime como o de Maduro? Alguém realmente acredita que os chavistas se importam com qualquer “minoria” que não a dos abastados que se nutrem dos privilégios desfrutados apenas pela “corte” bolivariana, reinante sobre um povo miserável?

Os desmandos e a algazarra financeira do governo nada tiveram a ver com a falta de papel higiênico, conclui a genial Assembleia. Na verdade, foi tudo por causa das “mensagens de ódio” – tradução: qualquer divergência mínima de uma vírgula do que foi determinado pelo fanfarrão e sua trupe é uma abominação antissocial.

“O prestador de serviços de rádio ou televisão que divulgar mensagens que constituam propaganda a favor da guerra e apologia ao ódio nacional, racial, religioso, político ou de qualquer outra natureza serão punidos com a revogatória da concessão”. Além disso, os meios de comunicação serão obrigados a publicar conteúdos que promovam a “tolerância”. Tradução: “ataquem os americanos e louvem as nossas inexistentes realizações, ou ferraremos vocês”.

Diz também a presidente da Constituinte, Delcy Rodríguez, que a lei é “uma homenagem aos que perderam a vida sendo vítimas do ódio e da intolerância durante os protestos” (!). Tolice. Quem perdeu a vida foi vítima da ditadura. Aprofundar a ditadura e dar-lhe mais instrumentos legais de repressão não é homenagear as vítimas, é ofendê-las. Mais uma revoltante inversão orwelliana.

Parece muito bonito entregar a faca e o queijo na mão, em nosso caso, do Poder Judiciário, do Supremo Tribunal Federal, do procurador-geral, para decidir o que é “odioso” e o que é o “bem e o belo sobre a Terra”. Quando vemos o Judiciário venezuelano receber esse poder, submetido aos interesses da casta brutamontes reinante, aí a feiúra nisso tudo talvez fique mais evidente a quem tiver olhos de ver.

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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