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O velho anormal

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Nada é mais antiquado do que a vontade das pessoas que se dizem modernas em fazer parte de uma nova era. Nada é menos atual, menos próximo dos tempos que vivemos, menos conectado com o futuro, do que essa irrefreável vontade de dizer como serão os tempos que virão com base na pretensa modernidade de si mesmo. Toda era tem desses sujeitos, e toda era passa, levando com sua inexorável obliviedade suas tristes existências.

O sujeito que se julga moderno nada mais é do que conformado. Ele faz o que fizeram por séculos todos aqueles que não tinham um ideal próprio, que não conheciam suas próprias dúvidas, seus próprios caminhos e a si mesmos. Esses sujeitos escolhem ser vanguarda dos tempos, não de suas próprias vidas; e, com isso, se apegam a qualquer nova moda que apareça às suas vistas, numa busca incessante pela cabeça da serpente e de algum ideal para viver, ignorando o que querem, o que sentem e a si mesmos.

Na busca de serem vanguarda, esses sujeitos se tornam unicamente ultrapassados. A moda, o novo, assim como uma onda, avança em sua modernidade até deixar de ser; desaparecendo em toda a sua magnitude no solo arenoso da praia, insignificante, esquecida pelos tempos. A essência do moderno é o próprio movimento do tempo, incessante, que não para jamais. Sem isso, o moderno não é nada; nada fica velho mais rápido do que o que é novo e nada mais triste do que a decadência do que era meramente moderno.

Mas tristeza é um mister humano, o tempo é indiferente. Para o tempo não há anormalidades a serem consideradas, não há rupturas, nem perdão à ruína do antiquado. O tempo caminha, sempre à frente, arrogante; e, com ele, vão-se os velhos, vem o novo. De fato, o tempo estaria fora de seus gonzos se o velho que viesse e o novo que se fosse.

Assim, o novo, por imposição do tempo, é o normal. Já o normal, por essência, é o que não é contra o tempo, mas somente o que acompanha o novo, sem nem se dar conta disso. Na realidade tal qual a vemos, o normal, como o próprio nome já diz, é o que impera. Não há nada de nostálgico no reino animal, nenhum ato isolado que contrarie os princípios gerais da evolução, nenhum erro genético que não seja provável ao atual emaranhado de genes das espécies. A normalidade do novo é uma fatalidade temporal, a novidade do normal é a inevitabilidade do processo não criativo que rege a pura matéria.

O que é normal, então, se modifica a cada microssegundo que passa, se tornando novo. A cada instante que se perfaz, novas manifestações da eterna transformação material se performam, de um modo que o que é o normal jamais poderia ser o mesmo, sendo, então, obrigatoriamente novo. O que é normal é sempre novo, e o que é novo é sempre normal, inexistindo hierarquias de novidade ou de normalidade por entre causa e consequência: a regra da matéria é a monotonia. Não há atos criadores, não há vontades imperativas, princípios as serem conhecidos, nada que surpreenda e escape aos dedos dos tempos. Uma montanha que desaparece não é um ato grandioso que ocorre da noite para o dia, ou mesmo um espetáculo formado por milhares de pequenos atos que objetivam a derrubada do gigante; uma montanha desaparece da mesma forma como uma montanha surge, se arrastando por entre um evento e outro, de modo a não haver meios de separá-los; a montanha surge porque desaparecerá, desapareceu porque surgiu, e é isso.

Porém, a montanha que desaparece é um espetáculo para os olhos do homem, por mais monótona que a normalidade de seu desaparecimento seja. O tempo é indiferente ao homem, mas o homem nunca será indiferente ao tempo. A verdade é que a maldição do homem é a completa impossibilidade da indiferença. Tudo maravilha o homem, tudo o espanta.

O sujeito moderno, apesar de não saber, é, antes de moderno, um sujeito. E como sujeito que é, busca fincar raízes e florescer, construir e investir, mesmo que em meio ao turbilhão de fatos e sensações que a modernidade impõe. Ser sujeito é sujeitar-se a um projeto, mas é também ser indivíduo e, como tanto, apreender o mundo à moda de si mesmo e, como pessoa, personalizar a realidade à imagem de si mesmo para a consecução desse projeto. Assim, o sujeito moderno decide ser moderno, mas não consegue ver despretensiosamente a mudança dos tempos que o cercam, pois isso retiraria de si mesmo seu valor, e uma cabeça que retira o valor de si mesma é inexoravelmente valiosa.

É desse modo que o sujeito moderno, idólatra do novo, desconhecedor de si mesmo, afirma ser o novo dele mais importante que qualquer outro novo que possa vir, se tornando um traidor da causa moderna. Em sua decadência, o modernista deixa de ser um poeta da novidade, passando a mão nos tempos de agora e manchando-os até o futuro que não pode chegar jamais, tornando a história que tanto diz amar um borrão do hoje para o sempre. O apologeta da evolução, temente da ruína como qualquer humano, se torna, então, inimigo do tempo, reacionário; foge do tempo como Gancho foge do crocodilo, odeia o novo como ele odeia Peter.  Esquece ele, entretanto, que o novo sempre vem.

Não é estranho que o sujeito moderno queira dizer como será o novo normal e nem é surpreendente que ele tente dar à novidade ou à normalidade toques burlescos que contradizem ambas as ideias. Quando o modernista assim o faz, ele em verdade tenta elogiar a si mesmo, escondendo ser ele mesmo normal demais para ser mais do que novo; novo demais para fugir da inevitável impresteza de sua velhice. O homem, nunca indiferente, teme a indiferença que é a regra da novidade e da normalidade e, por isso mesmo, tentar impor hierarquia ao plateau material, constrói castelos de areia à beira da praia dos tempos, se apega à ordem e tenta domar o incontrolável, sem se dar conta, porém, de que ele é só mais um moderno, dentre tantos outros modernos que já se foram e que nunca profetizaram mudança significativa alguma. O profeta do novo surge porque o profeta do antigo novo desapareceu – e o profeta do novo desaparecerá porque surgirá um novo profeta.

Enquanto olha para o normal e para o novo, enquanto se distrai com trivialidades e se engana sobre a possibilidade de conforto diante da mudança, enquanto finge se encaixar no cinza histórico, o sujeito moderno esquece que descansa no fundo do homem algo tão antigo, tão ancestral, que remonta a tempos que parece que nunca se foram. Habita nos recantos abissais de todo homem, adormecido, lento como todo colosso, um monstro que, de tão vasto e tão arcaico, com sua magnitude faz penumbra por toda a extensão do futuro que há por vir.

Mesmo no homem moderno, embebido pela constância das rupturas dos tempos e pela eterna transformação da matéria, se manifesta de forma latente a aspiração e a busca pela eternidade de todas as coisas e a integridade dos tempos. O homem moderno, eternamente infantilizado pelo rotineiro ato de morrer e nascer de novo, foge, como toda criança, deste ser abissal que também o define, evitando, a cada nova morte, encará-lo de frente. Comporta-se como um arquiteto que empreende reformas desnecessárias e voluptuosas, mas que deixa o tempo corroer suas próprias fundações.

Esse titã que habita os confins de todos os homens é grande demais para se encaixar nos tempos, vasto demais para permitir que o homem se sinta confortável em curtos e repetitivos períodos de tempo. O homem moderno aspira a importância do tempo em que vive não de forma inocente, não de forma errônea; o homem moderno aspira a importância do tempo em que vive pois sua vida é importante demais para estar contida no tempo. De fato, a carne do homem boia no mar dos tempos, mas sua coluna vertebral se levanta e se estende, encobrindo tudo o que foi e tudo o que pode ser um dia. O homem é, antes de tudo, todas as possibilidades em si mesmas, um trabalho de ficção semovente, um novelista de si próprio cuja razão de viver é projetar sua razão de viver para o mundo.

O erro do homem moderno é viver sobre a superfície espelhada do mar dos tempos. De fato, seus sentimentos estão corretos, o tempo em que vive é o mais importante de todos os tempos, o tempo em que vive é determinante para o futuro de tudo o que importa para ele na face da Terra. O homem moderno falha quando olha para seu reflexo na água e se assusta com o que vê, e foge, sem olhar mais à fundo. Lá, abaixo da superfície, olha para ele o abismo; e é no abismo que se encontra o valor atemporal do homem.

O novo e o normal são a máscara que encobrem algo velho que incomoda o homem moderno e de que ele nunca conseguirá se livrar: a realidade de que o homem nunca será normal, nunca estará contido no seu tempo, nunca será indiferente às mudanças, nunca as aceitará com desdém ou tranquilidade. Os tempos sempre estarão fora dos gonzos para o homem, pois é o homem que está eternamente fora dos tempos. A normalidade do homem é a sua secreta anormalidade.

E é dessa anormalidade que nascem todas as particularidades humanas, e delas que nasce toda a epopeia das vidas humanas que colore o cinza mundo que vivemos. Nenhum acontecimento material foi capaz de causar uma ruptura do homem consigo mesmo, nenhum vírus, nenhuma catástrofe, será capaz de romper com o laço irrevogável que liga o homem à toda a beleza e toda a abominável vilania que coexistem nele mesmo. Existirão milhares de novos normais, e eles serão irrelevantes, assim como são os seus profetas. Nenhum novo normal será o arpão do destino que ferirá o monstro que dorme nos recantos abissais de nós mesmos, mais antigo que nós, mais atual que os tempos, e que, dia após dia, tira um pedaço de nós.

Se o homem não adentra voluntariamente na barriga do monstro que habita nele para salvar suas raízes, o que faz dele ele, o que o faz diferente de todos os outros, assim como Pinóquio fez, paradoxalmente o monstro o engole. Perdido na tempestade dos tempos, mutilado, o homem moderno é menos homem do que moderno, mais monstro do que homem. Com medo da morte, com medo do tempo, o homem moderno é engolido por ambos, se tornando, ele mesmo, a morte, o próprio tempo, engolidor de homens.

E assim se fez a história de todas as modas que tentaram definir o homem como fruto de seu tempo e das circunstâncias: a história das circunstâncias e do tempo perseguindo e matando homens. Tudo começa com o medo de um vírus, tudo termina com um grupo de homens sendo considerados como se doença fossem. Tudo começa com a ciência como definição da vida do homem, tudo termina com a morte definitiva do homem em honra à ciência. Tudo nasce com a saúde pública, tudo termina em eugenia. Tudo nasce com a gripe espanhola, tudo termina com a solução final.

Para o tempo, o novo sempre será normal, e o novo normal é agora, como fora ontem. Para o homem, o novo é, afinal, mais antigo do que imaginamos, e o normal é, de fato, mais estranho do que aparenta.

*Igor Damous é advogado criminal.

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