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O problema dos falsos amigos do liberalismo

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Em entrevista datada de 1967 para o saudoso repórter Saulo Gomes, na Tupi, o tribuno da antiga União Democrática Nacional, Carlos Lacerda, o mais expressivo líder anticomunista do país, comentava a formação da Frente Ampla, uma associação de políticos rivais criada para combater o regime militar. Analiso a Frente Ampla, à qual até tenho minhas próprias críticas, em meu livro Lacerda: A Virtude da Polêmica.

O ponto que dali ressalto é que algumas palavras de Lacerda permanecem instrutivas para os defensores contemporâneos da sofrida e perseverante tradição liberal brasileira. Destaco o que ele registrou ao ser indagado sobre a perda de apoio entre suas próprias bases populares ao enfrentar o governo militar: “Há muita gente que não compreendeu ainda. Há muita gente que põe a questão em termos estáticos. (…) O perigo agora é outro. O perigo é nós ficarmos passando da mão de general para general e o povo não ter mais nem liberdade, nem possibilidade de fazer valer os seus direitos. (…) Ora, nós temos o dever de, exatamente, se queremos livrar o Brasil do comunismo, não dar razão aos comunistas.”

Em nenhum momento, Carlos Lacerda se reconverteu ao comunismo, que esposava na juventude. Ele simplesmente estava dizendo que o antiliberalismo, nem tanto aqui em termos especificamente econômicos, mas mesmo em termos político-institucionais, é sempre inimigo dos liberais de todas as estirpes, não importa qual a cor de que se revista. Estava dizendo que a alternativa à extrema esquerda não era a ditadura militar. Não era mesmo.

Não havia a menor necessidade. Se eleições fossem convocadas, o presidente teria sido, quase certamente, ou o próprio Lacerda, ou Juscelino Kubitschek. Por antipático que seja ao segundo, tenho certeza de que os militares teriam ampla liberdade para combater o terrorismo e a subversão sob o governo de qualquer um dos dois, naquelas circunstâncias.

Em 1964, a maioria dos liberais brasileiros – liberais conservadores, liberais sociais, democratas cristãos com esqueleto liberal de pensamento, qual categorização se queira incluir aqui – apoiou a deposição do presidente João Goulart, do PTB, depois de sua fomentação à quebra da hierarquia nas Forças Armadas e os discursos golpistas da esquerda no Comício da Central de 13 de março. No entanto, para que o petebista e seus aliados fossem derrubados, uniram-se aos liberais e aos udenistas grupos tão diferentes quanto os integralistas, os tradicionalistas reacionários, os amantes do autoritarismo militar e parte considerável dos herdeiros da ala pessedista do varguismo. Todos queriam ver Goulart pelas costas e se uniram com esse propósito.

Evidentemente, porém, estavam longe de ter o mesmo projeto de país, a mesma visão acerca da organização social. O processo histórico maciçamente “engoliu” os liberais e submeteu o país a um regime militar, que assumiu as proporções claras de uma ditadura e depois se apaixonou pelo estatismo galopante, que infelizmente grassa em nosso mar de patrimonialismo. O desfecho, todo mundo sabe.

Em certos momentos de nossa História, falsos amigos do liberalismo se aliam a ele para atingir objetivos comuns. Quase sempre, os liberais terminam por sair perdendo. Não o proclamo com o objetivo de sustentar que essas alianças circunstanciais tenham sido sempre um pecado mortal; nem sempre se vislumbrava outra solução. Porém, resta claro que os liberais estão historicamente falhando em cultivar o próprio segmento de opinião como alternativa sólida e de personalidade própria, rejeitando qualquer hipótese de negociar ou submergir na abdicação de princípios como o Estado de Direito, o sistema representativo liberal, a autonomia dos poderes, a heterogeneidade social e religiosa e a importância do indivíduo.

Desde que o fenômeno da chamada “nova direita” despontou no Brasil, trazendo novo relevo a ideias liberais e conservadoras no país, observei muitas transformações de discurso dos seus porta-vozes. Respeitando todas as escolhas, não posso me alinhar a muitas delas. Acredito que os fatos e a História já demonstraram que o caminho certo não as acompanha.

No bojo da “nova direita”, os velhos inimigos anticomunistas do liberalismo, que, sob o pretexto de combater a esquerda, se aliam a ele para depois devorá-lo, também reapareceram com certa relevância. Infelizmente, há quem, diante de defesas reiteradas e desbragadas do AI-5, um ato ditatorial que foi mortalmente destrutivo para o liberalismo brasileiro – muito mais que para as nossas esquerdas -, insista em minimizá-las, declarar solidariedade aos seus entusiastas contemporâneos quando as proferem, sob o pretexto de que o inimigo comum é pior do que eles. De outro lado, outros tantos, querendo se distinguir dos “reacionários” e dos autoritários de “sinal trocado”, acabaram absorvendo parcela significativa da retórica da esquerda. De repente, deparo-me com companheiros de trincheira subitamente convertidos em simpatizantes da turma do Supremo Tribunal Federal, amantes do “progressismo”, acenando até a concessões antes impensáveis às agendas identitárias – na verdade, afirmo sem pestanejar, nocivas ao pensamento liberal até o talo.

É importante que proclamemos algumas verdades urgentes: devemos, sim, como nunca, defender a liberdade contra o autoritarismo do Supremo Tribunal Federal e de figuras como Alexandre de Moraes, que deveria ter sofrido impeachment quando a revista Crusoé foi censurada – medida que defendi ardorosamente por diversas vezes, enquanto outros, bem, nem uma mísera CPI da Lava Toga pretendiam abrir, mas agora se proclamam arautos da democracia contra a tirania…

Devemos, também, defender os valores da liberdade contra o discurso obtuso de quem enaltece o AI-5, que cassou Carlos Lacerda, suspendeu o direito ao habeas corpus e implantou de vez uma ditadura que ninguém havia pedido nas ruas em 1964. Não se iludam; por diversas vezes eles grasnam, abertamente, que o liberalismo é uma idiotice infantil e uma antessala do comunismo; para que continuarmos a “trocar figurinhas” com eles? O que se ganha com isso? Da mesma forma, é claro, devemos nos posicionar contra os idiotas que pregam o “paredão” para os conservadores ou que defendem a revolução do proletariado até em colunas da Folha de São Paulo – belicistas doentios que não recebem a mesma atenção do STF e quejandos, porque nunca parece existir “extrema esquerda” na face da Terra.

Faço questão de estar contra todos eles. Se não estivermos contra todos eles, tenho convicção, a tradição liberal será mais uma vez sufocada em seu esforço de respirar por si própria. Continuaremos sempre a reboque de quem não dá nenhum valor real às nossas bandeiras.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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