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O problema da suposta inexistência de liberais

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Muito recentemente, foi-me dito que não existiam governos liberais. Questionei: como assim? Que queria o interlocutor dizer com isso? Ele respondeu algo como: “todos os governos acabam sendo pressionados pelo lobby das forças políticas e corporativistas. Não existe e nunca existiu nenhum governo liberal, tampouco qualquer político liberal”.

Subentendida na explicação do meu interlocutor estava a premissa de que um político ou governo liberal no mundo só o seria se rigorosamente todas as suas realizações e todos os fatos que se dessem dentro de sua atuação obedecessem aos ditames de uma agenda liberal. Melhor dizendo: do que o meu interlocutor entendesse como sendo a agenda liberal.

No caso específico, é fácil pontuar que um governo social democrata, liberal ou conservador, eleito por defender e representar aquela determinada agenda ou aquela determinada pauta, não pode, dentro de um Estado de Direito e de um sistema representativo, implementar plenamente apenas a sua plataforma. O sistema político e as regras de convivência que o constituem impõem necessariamente negociações e relativizações. As oposições obtêm vitórias e medidas são aprovadas de acordo com as circunstâncias e as manifestações dos interesses envolvidos.

Só seria diferente disso em duas situações: um Paraíso de seres iluminados ou uma ditadura totalitária, em que inexistissem instrumentos para contrabalançar a vontade do governante. É, em essência, sumamente liberal o entendimento de que os liberais não teremos mesmo, dentro de um regime liberal-democrático, tudo que queremos. É o preço a pagar por sermos diferentes, imperfeitos e convivermos em sociedade.

Isso não quer dizer que o político eleito para o cargo em questão não seja liberal, assim como um social democrata obrigado pelas circunstâncias orçamentárias a fazer privatizações não deixa de ser um social democrata em virtude disso. Infelizmente, na defesa e divulgação das ideias políticas, existe um vício perigoso, oriundo de uma distorção do significado (meritório por si só) da fidelidade aos princípios gerais do pensamento que se quer sustentar: uma espécie de fundamentalismo “purista” cego ao fato, no caso do liberalismo, de que este é um fenômeno histórico, com suas tendências internas e diversidades.

O fundador do Instituto Liberal, Donald Stewart Jr., enfatizava que isso não queria dizer que o liberalismo seja uma ideia desarticulada e sem substância, adaptável ao gosto do freguês. Evidentemente, vozes que se proponham a desfraldá-lo e defendê-lo não poderiam concordar com isso. Contudo, pela sua própria natureza de abertura, crítica e ceticismo, por não ser produto de uma única obra ou de um único autor, o liberalismo contempla uma pluralidade que não pode ser afastada das considerações a seu respeito.

Para além do “purismo” exibido pelo interlocutor acima mencionado, tenho visto muitos analistas negarem o liberalismo alheio em razão de certas opiniões circunstanciais, relativas a acontecimentos contemporâneos, medidas políticas ou à afinidade ou falta de afinidade com o governo de ocasião. Em vez de desvendar o conjunto e observar os elementos delineadores do liberalismo em seu processo de desenvolvimento histórico, estamos travando guerras fratricidas com base em questões meramente episódicas. Não me parece, com sinceridade, que isso será útil à causa do enraizamento do liberalismo no Brasil.

Do ponto de vista teórico, poucos questionarão o papel de John Locke na história do liberalismo; poderiam, entrementes, sendo propositadamente anacrônicos, dizer que ele não é liberal por sua relativa tolerância, à época, com a escravidão e sua intolerância em relação aos ateus. Outros podem dizer que Adam Smith não era liberal, por sua admissão de certas medidas protecionistas em relação a adversários de guerra.

Pode-se dizer que François Guizot não foi um importante liberal doutrinário francês por algumas medidas tomadas em seu ministério ou por sua oposição ao sufrágio universal. Alguns, ao contrário, que preferem atacar a democracia, poderão considerar Tocqueville um deturpador do liberalismo por tê-la admitido. Pode-se apontar Mises como um deturpador do liberalismo por ter aceitado menos funções do Estado que muitos liberais clássicos ou Hayek por ter aceitado mais – mesmo medidas emergenciais em contextos de defesa da nação ou combate a doenças.

Pode-se negar a Milton Friedman o seu valor por adotar o imposto de renda negativo ou por defender um sistema de auxílio estatal na educação e na saúde, o voucher. Pode-se negar a Roberto Campos sua atuação prodigiosa pela causa liberal na Constituinte e na Nova República, alegando que não é liberal quem atuou em um regime militar. Pode-se fazer algo parecido com Helio Beltrão ou Eugênio Gudin.

Pode-se dizer que José Guilherme Merquior, que frequentava os círculos do Instituto Liberal, era apenas um “tucano” ou um esquerdista dissimulado. Pode-se dizer, ao contrário, que o embaixador Meira Penna, crítico de Merquior, era conservador demais para ser considerado parte da tradição liberal, mesmo também frequentando os círculos do Instituto.

Pode-se dizer até, como alguns têm dito, que liberais estão deturpando o liberalismo por não darem ouvidos a autores libertários e anarcocapitalistas – muitos deles, diga-se de passagem, como Hans-Hermann Hoppe, abertamente tendo dito que “superaram” o liberalismo clássico em vez de dar-lhe continuidade, o que, ora bolas, os desautoriza a ensinar liberalismo aos liberais.

Pode-se fazer tudo isso, mas, a meu ver, trata-se de pobreza de espírito e, ao fim das contas, concluiríamos que, por não nos agradarem em todos os aspectos, não existem realmente liberais. Seria o leitor, afinal, o único liberal sobre a Terra? Ou talvez eu, que ora escrevo este texto? Essa seria a conclusão, se quiséssemos encaixar a todos em absolutamente uma única cartilha e negássemos seus qualificativos de liberais por assim não ser possível fazer.

Trata-se de incompreensão do que foi a história do liberalismo, do que são seus eixos e qual é a sua missão. Justamente por entender que, até para compreender essa diversidade do liberalismo e a impossibilidade de um pensamento liberal globalmente baseado de forma exclusiva no nosso autor de preferência, é preciso entender o que torna todas essas escolas e todos esses autores comuns a uma mesma categoria, tenho concluído que a necessidade mais premente nos dias que correm é voltar aos fundamentos e aprofundá-los.

Mais do que meramente reagir às disputas e intempéries da política caótica do cenário contemporâneo, aos jogos de interesse do momento, é preciso qualificar a formação do pensamento liberal de nossos líderes e ativistas. Não parece haver atalhos. É a essa tarefa, pois, que precisamos, mais do que nunca, nos dedicar.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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