O Homem do Sistema
JOÃO LUIZ MAUAD*
No atacado, concordo com a tese de que não se poderia jogar o ônus das indenizações sobre os bancos, que nada mais fizeram do que cumprir a lei. Se houve algum culpado por aquela barafunda, esse alguém é exclusivamente o governo. Punir os bancos, nessa altura do campeonato, sob a alegação de que têm condições de pagar a conta, porque ganham muito, não é fazer justiça, mas justiçamento no velho estilo Robin Hood. Decisão nesse sentido só faria recrudescer o sentimento de insegurança jurídica e institucional que predomina no país e piorar ainda mais o ambiente para investimentos internos e externos.
Poderiam os bancos ter agido de forma diferente, à revelia da lei? Haveria algum argumento jurídico, ou mesmo moral, que justificasse uma conduta dos bancos diferente da que foi adotada à época? Não creio. Os bancos foram meros executores de ordens expressas emanadas do governo. Ainda que invocássemos algum argumento moral, já imaginaram o que aconteceria, no dia seguinte, se algum banco resolvesse, por sua própria conta e risco, continuar remunerando os poupadores pelos critérios anteriores às leis? Provavelmente, além de arcar com as penalidades legais, ainda teria de suportar a ira popular, já que seriam vistos como inimigos da nação, recusando-se a colaborar com os esforços do governo para debelar a inflação (lembram-se dos fiscais do Sarney?).
Todavia, apesar disso tudo, eu ainda enxergava um aspecto positivo nesse imbróglio. De alguma maneira, esse julgamento serviria para mostrar aos governos, atuais e futuros, que há certos limites para suas ações arbitrárias. Serviria, em resumo, para ensinar-lhes que o governo não pode tudo. Qual não foi o meu espanto, portanto, ao ler, no artigo de Serra, uma defesa escrachada dessa suposta legitimidade. Segue o trecho:
Por diversos motivos os planos fracassaram, mas foram tentativas de salvar a moeda e a própria Nação. Representaram uma ação legítima do Estado em defesa da sua integridade. Note-se que a experiência acumulada desses fracassos, bem como o do Plano Cruzado (1986), foi essencial para a formulação e o êxito do Plano Real (1994). Os planos fracassaram no combate à inflação, mas ao menos mantiveram uma economia superinflacionária em funcionamento.
Qual a legitimidade do Estado para interferir nos contratos privados, ainda que seja para “tentar salvar” uma moeda moribunda que os sucessivos governos trataram de esculhambar através da gastança desenfreada e da emissão descontrolada? Ora, senhor Serra, o próprio Plano Real, citado por V.Sa., demonstrou que, para debelar a inflação, não era necessário meter a mão no dinheiro dos correntistas, punir poupadores, congelar preços e salários, ou invocar outras soluções heterodoxas. Pelo contrário. Mostrou que um governo agindo às claras, sem necessidade de mistérios ou medidas repentinas, pode ser muito mais eficiente.
O libelo de José Serra em defesa dos malfadados planos econômicos, alguns dos quais produzidos por seus companheiros de academia e de partido, é como a confissão de um intervencionista empedernido, para quem os governos podem tudo, desde que as boas intenções estejam por trás. Serra é, sem dúvida alguma, o estereótipo perfeito daquele que Adam Smith chamou de “o homem do sistema“:
“O homem do sistema … fica tão encantado com a suposta beleza de seu próprio plano ideal de governo, que não pode tolerar o menor desvio de qualquer parte dele … Ele parece imaginar que pode organizar os diferentes membros de uma grande sociedade com tanta facilidade como a mão dispõe as diferentes peças sobre um tabuleiro de xadrez. Ele não considera que, no grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana, cada peça tem movimento próprio, de modo geral diferente daquele que o legislador pode escolher imprimir sobre dele”. (Teoria dos Sentimentos Morais, Parte VI, Seção II, Capítulo II)
*ADMINISTRADOR DE EMPRESA E DIRETOR DO INSTITUTO LIBERAL